Crônicas Margarete Hülsendeger

“Diálogo de surdos”

Margarete Hülsendeger

 

O fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca de novas regras.

Thomas Kuhn

 

A expressão que dá título a este texto foi retirada de uma das obras mais conhecidas da filosofia da ciência, A estrutura das revoluções científicas (1962), do físico norte-americano Thomas S. Kuhn (1922-1996). Nesse livro, ao discutir conceitos como paradigma, ciência normal e revolução científica, o autor defende a tese de a ciência ser uma atividade concreta que se dá ao longo do tempo, apresentando peculiaridades e características próprias de acordo com cada época histórica. A obra, ao mesmo tempo que causou muita polêmica, também abriu espaço para todo um novo campo de estudos preocupado com a forma como a ciência progride e se desenvolve.

De acordo com Kuhn, quando a ciência passa por um processo de mudança, ao contrário do que se poderia pensar, isso não ocorre de forma suave e tranquila. Na verdade, os cientistas se dividem, com uma parte defendendo o modelo de ciência (paradigma) já existente, enquanto outros lutam para impor suas próprias ideias e, portanto, seu próprio modelo. Durante esse período conflituoso, os dois lados “discordam sobre o que é um problema e o que é uma solução”, de tal forma que “inevitavelmente travarão um diálogo de surdos ao debaterem os méritos relativos dos respectivos paradigmas”[1]. Esse período de “surdez” não tem um prazo de validade, tudo depende dos argumentos e das provas que forem apresentadas durantes os inúmeros debates. Segundo Kuhn, esse processo é parte constitutiva, não só da ciência, mas também da natureza de uma forma geral. E, sendo da natureza, é possível aplicar esses conceitos a outras áreas do conhecimento e até mesmo ao que ocorre no nosso entorno.

Depois de um período de relativa tranquilidade, o mundo parece estar passando por uma crise na qual se percebe o surgimento de uma mentalidade contrária a quaisquer mudanças de caráter político, social e moral. Esse comportamento se mostra na forma de declarações defendendo a volta de uma estrutura patriarcal, onde a mulher não tem voz, rejeitando propostas educacionais que valorizam o respeito à diferença e que incentivam a crítica e o debate e desprezando as conquistas alcançadas nas questões ambientais, com a liberação de pesticidas comprovadamente prejudiciais à saúde. O paradigma no qual estão imersos os indivíduos que defendem essas posições há muito foi superado pelas nações mais desenvolvidas que aplicam grandes somas na melhoria de seu sistema educacional, na defesa dos direitos humanos e no desenvolvimento de tecnologias que preservem a natureza.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

Por conta disso, podemos observar o surgimento de uma acentuada polarização, onde de um lado vamos encontrar aqueles que querem manter as coisas como estão e do outro os que desejam avançar na busca de valores que nos levem a uma sociedade mais justa e igualitária. Usando a expressão de Thomas Kuhn, hoje trava-se um verdadeiro “diálogo de surdos”, com argumentos razoáveis esbarrando em ouvidos que mais parecem paredes de concreto. A impressão é a de estarmos andando em direção a uma época na qual impera a ignorância e a caça a supostas bruxas está não só liberada, mas plenamente justificada. Tudo se resume a ser contra ou a favor, independente das consequências que determinadas ações possam ocasionar a direitos arduamente conquistados.

Essa onda reacionária, que vem varrendo o mundo, não poupou nem mesmo a ciência. Sob os olhares estupefatos dos cientistas, teorias obsoletas e completamente equivocadas estão ressurgindo. Indivíduos sem nenhum conhecimento científico fazem declarações absurdas baseando-se, muitas vezes, em lendas que devem ser encaradas apenas pelo que realmente são: fantasias. E o mais impressionante e assustador é a forma como muitas pessoas estão comprando essas histórias, quando bastaria olhar através de uma luneta para comprovar as inverdades dessas ideias. É como se todos esses séculos de pesquisas e estudos nunca tivessem existido e voltássemos a acreditar na presença de deuses e monstros que vigiam as bordas da terra.

Diante desse panorama, surge a pergunta: o que fazer? Thomas Kuhn, em seu livro, diz que a “escolha entre paradigmas em competição demonstra ser uma escolha entre modos incompatíveis de vida comunitária”[2]. A palavra que eu destacaria é “incompatíveis”, pois uma visão de mundo necessariamente exclui a outra. Desse modo, é impossível permanecer neutro diante de tal cenário, comportando-se como um avestruz que enterra a cabeça na areia e dizendo-se que qualquer que seja a escolha o resultado será o mesmo. Isso não é verdade, a sua opção vai determinar qual paradigma sobreviverá; em outras palavras, qual concepção de mundo prevalecerá e, principalmente, se você deseja caminhar para frente ou para trás. Por essa razão, você não pode pensar apenas nas suas necessidades porque a sua decisão, com certeza, afetará, pessoas que, apesar de você não conhecer, precisam também ter seus direitos garantidos. Portanto, por favor, não pense com o umbigo, se informe, vá além das “notícias” que você recebe pelo whatts e perceba o tamanho da sua responsabilidade.

[1] KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Editora Perspectiva, p. 144.

[2] KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Editora Perspectiva, p. 127.

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