O Poder nu*
Por Bertrand Russell
*Texto escrito em português clássico
À MEDIDA que a crença e os hábitos que mantiveram o poder tradicional decaem, vão cedendo gradualmente lugar ou ao poder baseado em alguma crença nova, ou ao poder “nu”, isto é, à espécie de poder que não implica aquiescência alguma por parte do súdito. Êsse é o poder do carniceiro sôbre o rebanho, de um exército invasor sôbre uma nação vencida e da polícia sôbre os conspiradores desmascarados. O poder da Igreja Católica sôbre os católicos é tradicional, mas o seu poder sôbre os hereges que são perseguidos é um poder nu. O poder do Estado sôbre os cidadãos leais é tradicional, mas o seu poder sôbre os rebeldes é um poder nu. As organizações que mantêm o poder durante muito tempo passam, cm regra, por três fases: primeira, a da crença fanática, mas não tradicional, que conduz à conquista; depois, a do assentimento geral ao novo poder, que se torna ràpidamente tradicional e, finalmente, aquela em que o poder, sendo usado agora contra todos os que rejeitam a tradição, se torna de novo nu. O caráter de uma organização sofre grandes transformações ao passar por essas fases.
O poder conferido pela conquista militar deixa de ser, depois de um período maior ou menor de tempo, meramente militar. Tôdas as províncias conquistadas pelos romanos, exceto a Judéia, se tornaram logo leais ao Império, deixando de sentir qualquer desejo de independência. Na Ásia e na África, os países cristãos conquistados pelos maometanos submeteram-se, com pouca relutância, a seus novos governantes. O País de Gales submeteu-se, aos poucos, ao domínio inglês, ao passo que a Irlanda não o fêz. Depois que os hereges albigenses foram sobrepujados pela
fôrça militar, seus descendentes se submeteram tanto interior como exteriormente à autoridade da Igreja. A conquista normanda produziu, na Inglaterra, uma família real que, depois de algum tempo, foi considerada como possuidora de um Direito Divino ao trono. A conquista militar só é estável quando seguida da conquista psicológica, mas os casos em que isso ocorreu são muito numerosos.
O poder nu, no govêrno interno de uma comunidade não recentemente submetida a uma conquista estrangeira, nasce de duas circunstâncias diferentes: primeiro, onde duas ou mais doutrinas fanáticas lutam pelo predomínio; segundo, onde tôdas as crenças tradicionais decaíram, sem que fôssem substituídas por novas crenças, de modo que não há limites para a ambição pessoal. O primeiro caso não é puro, já que os adeptos de um credo predominante não estão sujeitos ao poder nu. Examinarei êste ponto no capítulo seguinte, ao tratar do poder revolucionário. Limitar-me-ei, por ora, ao segundo caso.
A definição do poder nu é psicológica, sendo que um govêrno pode agir a descoberto em relação a alguns de seus súditos e não em relação a outros. Os exemplos mais cabais de que tenho notícia, à parte os de conquista estrangeira, são os das últimas tiranias gregas e os de alguns dos Estados italianos da Renascença.
A história grega nos fornece, como num laboratório, um grande número de experimentos em pequena escala que são de grande interêsse para os que estudam o poder político. Os governos monárquicos hereditários da época homérica chegaram ao fim antes do comêço dos registros históricos, sendo sucedidos por uma aristocracia hereditária. Na altura em que começa a história digna de crédito das cidades gregas, havia uma luta entre a aristocracia e a tirania. Com exceção de Esparta, a tirania foi vitoriosa, durante certo tempo, em tôda a parte, mais foi substituída pela democracia ou por uma restauração da aristocracia, às vêzes sob a forma de plutocracia. Esta primeira época de tirania abrangeu uma grande parte dos séculos VII e VI A. C. Não foi uma época de poder nu, como ocorreu no período posterior, de que me ocuparei de modo especial. Não obstante, preparou o caminho para a desordem e a violência das épocas posteriores. A palavra “tirano” não implicava, originàriamente, quaisquer qualidades más no governante, mas apenas ausência de um título legal ou tradicional. Muitos dos primeiros tiranos governaram sabiamente, com o assentimento da maioria de seus súditos. Seus únicos inimigos implacáveis, regra geral, eram os aristocratas. A maioria dos primitivos tiranos era constituída de homens muito ricos, que compravam o poder e se mantinham mais devido a meios econômicos do que militares. Devem ser comparados mais aos Medieis que aos ditadores de nossos dias.
Os primeiros tempos de tirania foram aqueles em que a cunhagem de moeda passou a ser usada, sendo que isso teve o mesmo efeito, quanto ao aumento do poder dos homens ricos, que o crédito e o papel-moeda em tempos recentes. Tem-se afirmado – embora eu não seja competente para julgar se com razão ou não – que a introdução da moeda estava ligada ao aparecimento da tirania; a posse de minas de prata, certamente, era uma ajuda para o homem que ambicionava tornar-se tirano. O uso do dinheiro, quando recente, perturba profundamente os costumes antigos, como
se poderá ver em regiões da África que não se acham há muito sob domínio europeu. Nos séculos VII e VI antes de Cristo, tal efeito foi aumentar o poder do comércio e diminuir o das aristocracias territoriais. Antes do domínio da Ásia Menor pelos persas, as guerras, no mundo grego, eram poucas e sem importância, sendo que apenas uma pequena parte do trabalho cie produção era executada por escravos. As circunstâncias eram ideais para o poder econômico, que debilitou o domínio da tradição do mesmo modo que o industrialismo a fêz no século XIX.
Enquanto houve possibilidade de que todos fôssem prósperos, o enfraquecimento da tradição foi mais benéfico do que prejudicial. Produziu, entre os gregos, um progresso mais rápido da civilização do que jamais ocorrera antes -com a possível exceção dos quatro últimos séculos. A liberdade da arte, das ciências e da filosofia gregas é a de uma época próspera, que não sofreu os entraves da superstição. Mas a estrutura social não possuia o vigor requerido para resistir ao infortúnio, e os indivíduos não tinham os padrões morais necessários para evitar
crimes desastrosos, quando a virtude não mais conduzia ao êxito. Uma longa série de guerras diminuiu a população livre e aumentou o número de escravos. A própria Grécia caiu, finalmente, sob o domínio da Macedônia, enquanto que a Sicília helênica, apesar de revoluções cada vez mais violentas, guerras civis e tiranias, continuou a lutar contra o poder de Cartago e, depois, de Roma. As tiranias de Siracusa merecem a nossa atenção, tanto por apresentar um dos exemplos mais perfeitos de poder “nu”, como por haver influenciado Platão, que teve uma disputa com o velho Dionísio e procurou fazer com que o mais jovem se tornasse seu discípulo. As opiniões dos gregos posteriores, de tôdas as épocas subseqüentes, sôbre os tiranos gregos em geral, foram grandemente influenciadas pelos contactos infortunados dos filósofos com Dionísio o Antigo e seus sucessores nos maus governos siracusanos.
“A maquinaria da fraude – diz Grote – pela qual o povo era enganado e levado à submissão temporária, como um prelúdio da maquinaria da fôrça, pela qual a submissão deveria ser perpetuada sem o seu assentimento, era coisa corriqueira entre os usurpadores gregos”. Até que ponto as primitivas tiranias eram perpetuadas sem o assentimento popular, é coisa sôbre a qual pode haver dúvidas, mas, quanto ao que se refere às tiranias posteriores, isso é, sem dúvida, verdadeiro. Tomemos, por exemplo, a descrição de Grote, baseada em Diodoro, do momento crítico da ascensão de
Dionísio, o Antigo. As armas de Siracusa haviam sofrido derrotas e desgraças sob um regime mais ou menos democrático, e Dionísio, o líder escolhido pelos campeões de uma guerra vigorosa, exigia a punição dos generais vencidos.
“Em meio do silêncio e da inquietude que reinavam na Assembléia de Siracusa, Dionísio foi o primeiro que se ergueu para dirigir-lhe a palavra. Discorreu longamente sôbre um tema apropriado tanto para o temperamento de seus ouvintes como para seus próprios propósitos. Denunciou com veemência os generais que, segundo êle, haviam traído a segurança de Siracusa ante os cartagineses – apontandoos como culpados da ruína de Agrigento e do perigo iminente em que todos se achavam. Expôs seus crimes, reais ou supostos, não apenas com acrimônia e
abundância de pormenores, mas, também, com uma violência feroz, ultrapassando todos os limites de um debate legítimo, procurando condená-los a um assassínio ilegal, como a morte dos generais ocorrida recentemente em Agrigento. “Tendes aí os traidores! Não espereis um julgamento ou um veredicto legais, mas lançai mão dêles incontinenti infligindo-lhes uma justiça sumária”. Essa exortação, brutal, era uma ofensa não só contra a lei como contra a ordem parlamentar. Os magistrados que presidiam a Assembléia censuraram Dionísio como perturbador da ordem e o
multaram, como a lei lhes permitia. Mas seus partidários acorreram, ruidosos, em seu apoio. Filisto não só pagou imediatamente a multa, como declarou, em público, que continuaria pagando, durante todo o dia, as multas semelhantes que pudessem ser impostas – e incitou Dionísio a que persistisse em tal linguagem, que lhe parecia apropriada. O que começara como uma ilegalidade, agravava-se agora com um desafio aberto à lei. No entanto, tão debilitada se encontrava a autoridade dos magistrados, e era tão veemente o alarido que se erguia contra êles, na situação em
que se achava a cidade, que não lhes era possível castigar ou fazer com que o orador se calasse. Dionísio prosseguiu em sua arenga em tom ainda mais inflamado, não só acusando os generais de haver traído, corruptamente, Agrigento, mas, também, denunciando os cidadãos mais destacados e ricos como oligarcas que exerciam um predomínio tirânico, que tratavam a maioria com desdém e se beneficiavam com os infortúnios da cidade. Siracusa – afirmou -jamais poderia ser salva, a menos que homens de caráter inteiramente diferente fossem investidos de autoridade – homens, não escolhidos pela riqueza ou par sua situação, mas de nascimento humilde, pertencentes ao povo pela sua posição e bondosos, em sua conduta, pela consciência
de sua própria fraqueza”.
E, assim, se tornou tirano; mas a história não se refere a nenhuma vantagem que os pobres e os humildes hajam tido com isso. Confiscou, é verdade, as propriedades dos ricos, mas foi aos seus guardas pessoais que êle as deu. Sua popularidade logo se dissipou, mas não o seu poder. Poucas páginas adiante, deparamos com Grote a dizer:
“Sentindo mais do que nunca que o seu domínio repugnava aos siracusanos, e que se baseava apenas na fôrça nua e crua, cercou-se de precauções provàvelmente mais fortes que as acumuladas por qualquer outro déspota grego”.
A história grega é peculiar quanto ao fato de que, exceto em Esparta, a influência da tradição era extraordinàriamente fraca na Grécia. Ademais, quase não havia moralidade política. Heródoto afirma que nenhum espartano sabia resistir a um subôrno. Em tôda a Grécia, era inútil fazer-se objeção a um político sob alegação de que êle recebia subornos do rei da Pérsia, pois seus adversários também o faziam, quando se tornavam suficientemente poderosos para que valesse a pena comprá-los. O resultado disso era uma luta desordenada pelo poder pessoal, conduzida pela
corrupção, arruaças e assassínios. Neste assunto, os amigos de Sócrates e Platão estavam entre os mais inescrupulosos. O resultado final, como se poderia prever, foi a subjugação por potências estrangeiras.
Era costume lamentar-se a perda da independência grega, pensando-se nos gregos como se fôssem todos semelhantes a Solon e Sócrates. Quão pouca razão havia para se deplorar a vitória de Roma é coisa que se pode ver pela história da Sicília helênica. Não conheço melhor exemplo do poder nu do que a carreira de Agátocles, contemporâneo de Alexandre o Grande, que viveu de 361 a 289 A. C. e foi tirano de Siracusa durante os últimos vinte anos de sua vida. Siracusa era a maior das cidades gregas e, talvez, a maior cidade do Mediterrâneo. Sua única rival era Cartago, com a qual estava sempre em guerra, salvo durante curtos períodos, depois de alguma séria derrota sofrida por uma das combatentes. As outras cidades gregas da Sicília colocavam-se ora do lado de
Siracusa, ora de Cartago, segundo a maré da política partidária. Em cada cidade, os ricos eram a favor da oligarquia, e, os pobres, da democracia. Quando os partidários da democracia saíam vitoriosos, seu líder, habitualmente, conseguia converter-se em tirano. Muitos dos que pertenciam ao partido derrotado seguiam para o exílio e uniam-se aos exércitos das cidades em que o seu partido estava no poder. Mas o grosso cias fôrças armadas consistia de mercenários, na maioria não helênicos.
Agátocles era um homem de origem humilde, filho de um oleiro. Devido à sua beleza, tornou-se o favorito de um rico siracusano chamado Demas, que lhe deixou todo 0 seu dinheiro e com cuja viuva êle casou. Tendo-se distinguido na guerra, pensava-se que éle aspirasse à tirania. Foi, por conseguinte, exilado, transmitindo-se ordens para que fôsse assassinado durante sua viagem. Mas êle, prevendo tal coisa, mudou de roupa com um pobre homem, que foi morto, por equívoco, pelos assassinos mercenários. Formou, então, um exército no interior da Sicília, o qual
atemorizou tanto os siracusanos que êstes fizeram um tratado com êle: foi readmitido e jurou, no templo de Ceres, que nada faria em prejuízo da democracia.
O governo de Siracusa parece ter sido, nessa época, uma mistura de democracia e oligarquia. Havia um conselho constituído de seiscentos membros, escolhidos entre os homens mais ricos . Agátocles esposou a causa dos pobres contra a dos oligarcas. No decurso destes últimos ele sublevou os soldados e fez com que os quarenta fossem assasinados, dizendo que havia uma conspiração contra a sua pessoa. Conduziu, depois, o exército para a cidade, ordenando-lhe que saqueasse todos os seiscentos. Os soldados assim o fizeram, massacrando os cidadãos que saíam de suas casas para ver o que estava ocorrendo. No fim um grande número de pessoas foi assassinado pelos soldados que se entregavam à pilhagem. A respeito, diz Diodoro: “Não, não havia segurança para os que fugiam para os templos, sob o abrigo dos deuses; a piedade para com os deuses, pelo contrário, foi esmagada e calcada aos pés pela crueldade dos homens. Os gregos lutavam contra os gregos em seu próprio país, os parentes contra os parentes em tempo de paz, sem consideração alguma pelas leis da natureza, ou pelas ligas, ou pela reverência devida aos deuses -sendo tudo isso audaciosamente cometido. Ante uma tal situação, não apenas os amigos, mas os próprios inimigos, bem como todos os homens sensatos, não podiam deixar de sentir piedade pela miserável condição dêsse povo infortunado”.
Os partidários de Agátocles passavam o dia entregues à matança e, à noite, voltavam a atenção para as mulheres.
Depois de dois dias de massacre, Agátocles retiniu os prisioneiros e os matou a todos, com exceção de seu amigo Dinocrates. Reuniu, depois, a assembléia, acusou os oligarcas e disse que expurgaria a cidade de todos os amigos da monarquia, e que êle próprio iria retirar-se para a vida privada. Despiu, pois, o seu uniforme e vestiu um traje à paisana. Mas os que haviam roubado sob a sua chefia desejavam que êle se conservasse no poder, e foi eleito único general. “Muitos dos mais pobres, dos que tinham dívidas, ficaram muito satisfeitos com essa revolução”, pois Agátocles
prometeu a remissão das dívidas e a repartição das terras entre os pobres. Depois disto, agiu com moderação durante algum tempo.
Na guerra, Agátocles era engenhoso e bravo, mas temerá -rio. Houve um momento em que parecia que os cartagineses acabariam completamente vitoriosos: assediavam Siracusa e sua armada ocupava o pôrto. Mas Agátocles, com um grande exército, partiu para a África, onde queimou seus navios, para evitar que êstes caissem nas mãos dos cartagineses. Temendo uma revolta em sua ausência, levou consigo crianças como reféns. Depois de algum tempo, seu irmão, que o representava em Siracusa, exilou oito mil adversários políticos, que contavam com a amizade dos
cartagineses. Na África, Agátocles foi, a princípio, surpreendentemente bem sucedido: capturou Túnis e assediou Cartago, cujo govêrno ficou alarmado, ordenando que se realizassem cerimônias propiciatórias no templo de Moloc.
Verificou-se que os aristocratas, cujos filhos deviam ser sacrificados ao deus, haviam adquirido o hábito de comprar crianças pobres para substituílos. Tal prática foi, então, severamente reprimida, pois se sabia que agradava mais a Moloc o sacrifício de crianças aristocráticas. Depois desta reforma, a sorte dos cartagineses começou a melhorar.
Agátocles, sentindo necessidade de reforços, enviou emissários a Cirene, que pertencia então aos Ptolomeus e era governada por Ophelas, um dos capitães de Alexandre. Os emissários tinham ordens de dizer que, com a ajuda de Ophelas, Cartago poderia ser destruída; que Agátocles desejava apenas estar seguro na Sicília, pois não tinha ambições na África – e que tôdas as conquistas que fizessem juntos na África pertenceriam a Ophelas. Tentado por estas ofertas, Ophelas marchou, através do deserto, com o seu exército e, após grandes dificuldades, uniu-se a Agá tocles.
Sem perda de tempo, Agátocles assassinou-o, declarando a seu exército que a única esperança de salvação consistia em colocar-se sob o comando do assassino de seu excomandante.
Sitiou, a seguir, Utica, onde, chegando inesperadamente, capturou trezentos prisioneiras no campo de batalha, colocando-os diante de suas máquinas de assédio, de modo que os soldados de Utica, para defender-se, tiveram de matar seus próprios concidadãos. Embora bem sucedido nessa empresa, sua situação era difícil, sobretudo porque tinha razões para temer que o seu filho Archagathus estivesse suscitando descontentamento no exército. De modo que fugiu secretamente de volta à Sicília, e o exército, furioso com a sua deserção, assassinou não só Archagathus
como o seu outro filho. Isto o enfureceu tanto, que matou todos os homens, mulheres e crianças de Siracusa que tivessem parentesco com qualquer soldado do exército revoltoso.
Seu poder na Sicília, durante algum tempo, sobreviveu a tôdas essas vicissitudes. Capturou Aegesta, matou todos os indivíduos do sexo masculino mais pobres da cidade e torturou os ricos até que revelassem onde suas riquezas estavam escondidas. As jovens e as crianças foram por êle vendidas, como escravas, aos bruttii, no continente.
Sua vida familiar, lamento dizê-lo, não era inteiramente feliz. Sua espôsa teve um caso amoroso com o seu filho, um de seus dois netos assassinou o outro, induzindo depois um criado do velho tirano a envenenar os palitos do avô. O último ato de Agátocles, quando viu que ia morrer, foi convocar o Senado e exigir vingança contra o neto. Mas suas gengivas, devido ao veneno, tinham-se tornado tão doloridas que não podia falar. Os cidadãos sublevaram-se, levaram-no apressadamente à pira funerária antes que êle estivesse morto, seus bens foram confiscados e, segundo nos
dizem, a democracia foi restaurada.
A Itália renascentista apresenta um paralelo que se aproxima muito da Grécia antiga, mas a confusão é ainda maior. Havia repúblicas comerciais oligárquicas, tiranias segundo o padrão grego, principados de origem feudal e, além disso tudo, os Estados da Igreja. O Papa, exceto na Itália, impunha respeito, mas seus filhos não o faziam, e César Bórgia teve de lançar mão do poder nu.
César Bórgia e seu pai, Alexandre VI, são importantes não devido apenas às suas pessoas, mas por terem inspirado Maquiavel. Um incidente da vida de ambos, c.rrientado por Creighton, servirá para dar um exemplo da época em que viveram. Os Colonnas e os Orsinis haviam sido a desgraça dos Papas durante séculos; os Colonnas já haviam caído, mas os Orsinis permaneciam. Alexandre VI fêz um tratado com êles, convidando o seu chefe, o Cardeal Orsiní, para o Vaticano, ao ter notícia de que César aprisionara, traiçoeiramente, dois Orsinis importantes. O Cardeal Orsini foi prêso logo que chegou à presença do Papa; sua mãe pagou ao Papa dois mil ducados pelo privilégio de enviar alimentos ao filho, e sua amante presenteou Sua Santidade com uma pérola de alto valor, que êle cobiçava. Não obstante, o Cardeal Orsini morreu na prisão – por haver bebido, segundo se disse, vinho evenenado que lhe fôra servido por ordem de Alexandre VI. Os comentários de Creighton sôbre esta ocorrência ilustram o caráter de um regime de poder nu:
“É surpreendente que essa ação traiçoeira não haja despertado nenhum protesto, sendo, pelo contrário, tão bem sucedida; mas, n a política artificial da Itália, tudo dependia da habilidade dos que se entregavam a tal jôgo. Os condottieri representavam apenas a si próprios, e quando eram afastados, por quaisquer meios, embora traiçoeiros, não restava nada. Não havia partido algum, nem qualquer interêsse, que se sentisse prejudicado pela queda dos Orsinis e dos Vitellozos. Os exércitos dos condottieri eram formidáveis enquanto seguiam os seus generais; quando os generais eram afastados, os soldados se dispersavam e entravam para o serviço de outros . . . A maioria dos cidadãos admirava a consumada frieza de César quanto a esta questão… Nenhum prejuízo fôra causado à moralidade corrente… Quase todos, na Itália, aceitavam como suficiente a observação de César a Maquiavel: “É bom enganar aqueles que se revelaram mestres na traição”. A conduta de César foi julgada pelo seu êxito”.
Na Itália renascentista, como na Grécia antiga, um nível muito elevado de civilização se unia a um nível moral muito baixo: ambas as épocas revelaram as maiores alturas do gênio e as maiores profundidades da canalhice e, em ambas, os canalhas e os homens de gênio não são, de modo algum, antagônicos uns aos outros.
Leonardo construiu fortificações para César Bórgia; alguns dos discípulos de Sócrates se achavam entre os piores dos trinta tiranos; os discípulos de Platão andavam metidos em ações vergonhosas em Siracusa, e Aristóteles casou com a neta de um tirano. Em ambas as idades, depois que a arte, a literatura e o assassínio floresceram, lado a lado, durante cêrca de cento e cinqüenta anos, foram extintos juntos, por nações menos civilizadas, mas mais coesas, do Ocidente e do Norte. Em ambos os casos, a perda da independência política não implicava apenas decadência cultural, mas perda da supremacia comercial, seguida de um empobrecimento catastrófico.
Os períodos de poder nu são, habitualmente, breves. Terminam, em geral, de um ou de outro modo, entre três modos diversos. O primeiro é a conquista estrangeira, como nos casos da Grécia e da Itália que já foram por nós examinados. O segundo é o estabelecimento de uma ditadura estável, que logo se torna tradicional.
(Disto, o exemplo mais notável é o império de Augusto, depois dos períodos das guerras civis, de Mario até a derrota de Antonio.) O terceiro é o advento de uma nova religião, empregando-se a palavra em sua acepção mais ampla. O exemplo mais óbvio disso é a maneira pela qual Maomé uniu as tribos da Arábia, anteriormente inimigas. O reinado da fôrça nua nas relações internacionais, depois da Grande Guerra, poderia ter terminado com a adoção do comunismo por tôda a Europa, se a Rússia dispusesse, na ocasião, de um excedente exportável de víveres.
Onde o poder é nu, não só internacionalmente, mas no govêrno interno de Estados separados, os métodos de adquirir poder são muito mais implacáveis do que em outras partes. Êste tema foi tratado, de uma vez por tôdas, por Maquiavel.
Tomemos, por exemplo, o seu relato laudatório das medidas adotadas por César Bórgia a fim de proteger-se no caso da morte de Alexandre VI:
“Êle decidiu agir de quatro maneiras. Primeiro, exterminando as famílias dos senhores a quem havia espoliado, a fim de afastar êsse pretexto do Papa. Segundo, conquistando para si todos os grandes senhores de Roma, para poder dobrar o Papa com a sua ajuda. Terceiro, convertendo o colégio mais para o seu lado. Quarto, adquirindo uma tal quantidade de poder, antes que o Papa morresse, que lhe permitisse resistir, com suas próprias medidas, ao primeiro choque. Dessas quatro, tinha realizado três, por ocasião da morte de Alexandre. Pois matou tantos cavalheiros espoliados quantos foram aqueles sôbre os quais conseguiu deitara mão, sendo que poucos escaparam”, etc. O segundo, terceiro e quarto dêsses métodos poderiam ser empregados a qualquer tempo, mas o primeiro chocaria a opinião pública num período de govêrno ordenado. Um Primeiro Ministro inglês poderia esperar consolidar a sua posição mediante o assassínio do líder da oposição. Mas onde o poder é nu, tais restrições morais se tornam inoperantes.
O poder é nu quando os seus súditos o respeitam sòmente porque se trata de um poder, e não por qualquer outra razão. Assim, uma forma de poder que tenha sido tradicional se torna nua logo que a tradição deixa de ser aceita. Segue-se daí que os períodos de pensamento livre e de crítica vigorosa tendem a transformar-se em períodos de poder nu. Foi assim tanto na Grécia como na Itália, durante a Renascença. A teoria adequada ao poder nu foi exposta por Platão no primeiro livro da República, pela bôca de Trasímaco, que ficou agastado com Sócrates devido às
suas amáveis tentativas para encontrar uma definição ética de justiça. “Segundo a minha doutrina – diz Trasímaco – a justiça é simplesmente o interêsse do mais forte”.
E prossegue:
“Cada govêrno arquiteta suas leis de modo a servir seus próprios interesses: uma democracia, fazendo leis democráticas; um autocrata, leis despóticas, e assim por diante. Ora, mediante êsse procedimento, tais governos declaram que o que é de seu interêsse é justamente do interêsse de seus súditos; e, quem quer que se afaste disso, é por êles castigado, sob acusação de ilegalidade e injustiça. Portanto, meu bom senhor, o que quero dizer é que, em tôdas as cidades, a mesma coisa, isto é, o interêsse do govêrno estabelecido, é justa. A fôrça superior, segundo presumo, deve
encontrarse do lado do govêrno. De modo que a conclusão a que se chega, através de um raciocínio correto, é a de que a mesma coisa, isto é, o interêsse do mais forte, é, em tôda a parte, justa”.
Sempre que esta opinião é geralmente aceita, os governantes deixam de estar sujeitos a restrições morais, já que o que fazem a fim de conservar o poder não é considerado chocante, exceto por aqueles que sofrem diretamente as conseqüências de seus atos. Os rebeldes, igualmente, só se contêm por temor do fracasso; se podem ter êxito através de meios implacáveis, não precisam temer que a sua implacabilidade os torne impopulares.
A doutrina e Trasímaco, nos lugares em que é geralmente aceita, torna a existência de uma comunidade organizada inteiramente dependente da fôrça física indireta que se acha à disposição do govêrno. Torna, assim, inevitável a tirania militar. Outras formas de govêrno podem ser estáveis onde haja alguma crença comum que inspire respeito pela distribuição existente do poder. As crenças que, a êste respeito, foram bem sucedidas, são, em geral, de tal ordem que não podem permanecer de pé ante a crítica intelectual. O poder, em várias épocas, limitou-se, com assentimento geral, às famílias reais, aos aristocratas, aos homens ricos, aos homens em oposição às mulheres, e aos brancos em oposição aos homens de qualquer outra côr. Mas a difusão da inteligência entre os súditos fêz com que êstes rejeitassem tais limitações, e os detentores do poder viram-se obrigados a ceder ou a confiar na fôrça nua. Para que um govêrno ordenado possa contar com o consentimento geral, deve ser encontrado algum meio de persuadir a maioria da humanidade a que -aceite uma doutrina diferente da de Trasímaco.
Deixo para um capítulo posterior as considerações sôbre os métodos de se conquistar o consentimento geral, quanto a uma forma de govêrno, por outra maneira que não a superstição, mas, a esta altura, são oportunas algumas observações preliminares. Em primeiro lugar, o problema não é essencialmente insolúvel, pois que já foi solucionado nos Estados Unidos. (Dificilmente poderia dizer-se que foi resolvido na Grã-Bretanha, já que o respeito pela Coroa tem sido um elemento essencial da estabilidade britânica.) Em segundo lugar, as vantagens de um govêrno
ordenado devem ser compreendidas por todos; isso implica, habitualmente, a existência de oportunidades para que os homens enérgicos se tornem ricos ou poderosos por meios constitucionais. Nos lugares em que alguma classe, que contenha indivíduos dotados de energia e capacidade, é excluida de carreiras desejáveis, há um elemento de instabilidade que tem probabilidade de conduzir, mais cedo ou mais tarde, à rebelião. Em terceiro lugar, haverá necessidade de alguma convenção social deliberadamente adotada no interêsse da ordem, e que não seja tão flagrantemente injusta a ponto de despertar uma oposição generalizada. Uma tal convenção, se fôr bem sucedida durante algum tempo, logo se tornará tradicional e ,terá todo o poder inerente ao poder tradicional.
O “Contrato Social” de Rousseau, para um leitor moderno, não parece muito revolucionário, e é difícil de ver-se por que razão chocou tanto os governos. A razão principal disso, creio eu, é ter procurado basear o poder governamental numa convenção adotada por motivos racionais, e não uma reverência supersticiosa pelos monarcas. O efeito das doutrinas de Rousseau sôbre o mundo mostra a dificuldade de fazer-se com que os homens concordem com uma base não supersticiosa quanto ao govêrno. Talvez isto não seja possível quando a superstição é afastada de maneira
demasiado súbita: alguma prática quanto à cooperação voluntária é necessária como adestramento preliminar. A grande dificuldade é que o respeito pela lei é essencial à ordem social, mas é impossível sob um regime tradicional que já não conta com o assentimento dos governados, sendo necessàriamente menosprezado numa revolução. Mas, embora o problema seja difícil, tem de ser resolvido, para que a existência das comunidades ordenadas seja compatível com o livre exercício da inteligência.
A natureza dêste problema não é, às vêzes, compreendida. Não basta encontrar-se, em pensamento, uma forma de govêrno que, para os teóricos, não pareça proporcionar nenhum motivo adequado para revolta; é necessário encontrar uma forma de govêrno que possa ser realmente posta em prática e, ainda, que, se existir, mereça suficiente lealdade para que possa suprimir ou impedir a revolução.
Ëste é um problema prático da ciência de governar, no qual devem levarse em conta tôdas as crenças e preconceitos da população em apreço. Há os que acreditam que um grupo qualquer de homens, uma vez que se haja apoderado da maquinaria do Estado, possa, por meio da propaganda, assegurar o assentimento geral. Há, todavia, limitações óbvias quanto a esta doutrina. A propaganda do Estado tem-se mostrado, nos últimos tempos, impotente, ao opor-se ao sentimento nacional, como, por exemplo, na Índia ( antes de 1921) e na Irlanda. Tem tido dificuldade em predominar sôbre fortes sentimentos religiosos. Até que ponto e até quando poderá prevalecer contra os interesses da maioria é ainda uma questão duvidosa. Deve-se admitir, no entanto, que a propaganda do Estado se torna cada vez mais eficiente; o problema de assegurar a aquiescência dos governados está-se tornando, por conseguinte, mais fácil para os governos. As questões que vimos suscitando serão analisadas, de modo mais amplo, em capítulos ulteriores; por ora, basta que as tenhamos em mente.Estado se torna cada vez mais eficiente; o problema de assegurar a aquiescência dos governados está-se tornando, por conseguinte, mais fácil para os governos. As questões que vimos suscitando serão analisadas, de modo mais amplo, em capítulos ulteriores; por ora, basta que as tenhamos em mente.
Falei, até aqui, do poder político, mas, na esfera econômica, o poder nu é, pelo menos, de igual importância. Marx considerava tôdas as relações econômicas, exceto na comunidade socialista do futuro, como sendo governadas inteiramente pelo poder nu. Por outro lado, o extinto Élie Halévy,historiador do benthumismo, afirmou que, de um modo geral, aquilo que um homem recebe pelo seu trabalho é o que êle considera que o seu trabalho vale. Estou certo de que isto não é verdade com respeito aos autores: verifiquei sempre, em meu próprio caso, que quanto mais eu achava que
um livro valia, tanto menos me pagavam por êle. E se os homens de negócios que tiveram êxito acreditam, realmente, que o seu trabalho vale aquilo que lhes proporciona em dinheiro, devem ser ainda mais estúpidos do que parecem. Não obstante, há um elemento de verdade na teoria de Halévy. Numa comunidade estável, não deve haver nenhuma classe considerável que sinta um vivo sentimento de injustiça; é de supor-se, pois, que, onde não há grande descontenta mento econômico, a maioria dos homens não se sinta grande mente mal remunerada. Nas comunidades pouco desenvolvidas, em que a subsistência do homem depende antes de um status que de um contrato, êle, regra geral, achará justo tudo o que seja habitual. Mas, mesmo neste caso, a fórmula de Halévy inverte causa e efeito: o costume é a causa do sentimento do homem quanto ao que é justo, e não vice-versa. Neste caso, o poder econômico é tradicional; só se torna nu quando os costumes antigos são perturbados ou, por alguma -razão, se tornam objeto de crítica.
Na infância do industrialismo não havia costume album que regulamentasse os salários que deviam ser pagos e os em, pregados não se achavam ainda organizados. Por conseguinte, as relações existentes entre empregador e empregado se baseavam no poder nu, dentro dos limites permitidos pelo Estado e, a princípio, esses limites eram muito amplos. Os economistas ortodoxos haviam ensinado que os salários dos trabalhadores não especializados deviam sempre tender a cair até o nível da subsistência individual , mas não perceberam que isso dependia da exclusão dos
assalariados quanto ao poder político e os benefícios da união entre os mesmos. Marx viu que a questão era uma questão de poder, mas penso que ele subestimou o poder político, em comparação com o econômico. Os sindicatos, que aumentaram incomensuravelmente o poder de negociação dos assalariados, podem ser suprimidos, se os assalariados não participarem do poder político; numa série de decisões legais os teria paralisado na Inglaterra, não fosse o fato de que , de 1868 em diante, os trabalhadores urbanos passaram a ter direito ao voto. Dada a organização
dos sindicatos, os salários não são mais determinados pelo poder nu, mas por negociação, como na compra e venda de utilidades.
O papel desempenhado pelo poder nu na economia é muito maior do que se julgava antes de a influência de Marx ter-se tornado operante. Em certos casos, isto é óbvio. Os haveres subtraídos de sua vítima por um salteador de estrada, ou os despojos capturados de uma nação vencida por um conquistador, são, evidentemente, uma questão de poder nu. O mesmo ocorre com a escravidão, quando o escravo não aquiesce devido a um longo hábito. Um pagamento é extorquido pelo poder nu, se tiver de ser feito apesar da indignação da pessoa que o faz. Tal indignação existe em
dois casos: quando o pagamento não é habitual, e nos lugares em que, devido a uma mudança de ponto de vista, o que é costumeiro passou a ser considerado injusto.
Antigamente, o homem tinha domínio completo sôbre os bens da espôsa, mas o movimento feminista produziu revolta contra êsse costume, o que levou a uma modificação da lei. Antigamente, os patrões não eram responsáveis pelos acidentes ocorridos com os seus empregados. Aqui, também, o sentimento mudou, produzindo modificação na lei. Exemplos como êstes são inumeráveis.
Um operário que seja socialista poderá achar injusto o fato de ganhar menos do que o seu patrão; neste caso, é o poder nu que o obriga à aquiescência. O antigo sistema de desigualdade econômica é tradicional e não desperta, por si só, indignação, salvo naqueles que se sentem revoltados contra a tradição. Assim, à medida que se difunde o ponto de vista socialista, ó poder do capitalista se torna mais nu., Um caso análogo é o da heresia e o do poder da Igreja Católica. Há, como vimos, certos males que são inerentes ao poder nu, em oposição ao poder que
conquista a aquiescência. Por conseguinte, o aumento da opinião socialista tende a tornar o poder capitalista mais prejudicial, exceto na medida em que a sua implacabilidade possa ser mitigada pelo mêdo. Dada uma comunidade organizada inteiramente de acôrdo com o modelo marxista, em que todos os assalariados fossem socialistas convictos e todos os outros fôssem, igualmente, defensores convictos do sistema capitalista, o partido vitorioso, qualquer que pudesse ser, não teria outra saída senão o exercício do poder nu com relação aos seus oponentes. Esta situação,
profetizada por Marx, seria muito grave. A propaganda de seus discípulos, na medida em que é bem sucedida, tende a produzi-la.
A maioria das grandes abominações, na história da humanidade, está relacionada com o poder nu – não apenas as que estão associadas com a guerra, mas outras igualmente terríveis, embora menos espetaculares. A escravidão e o comércio de escravos, a exploração do Congo, os horrores do primitivo industrialismo, as crueldades contra crianças, as torturas judiciais, as leis criminais, prisões, hospícios, perseguições religiosas, o tratamento atroz dos judeus, as frivolidades impiedosas dos déspotas, a iniqüidade incrível no tratamento dos adversários políticos na Alemanha
e na Rússia de nossos dias – todos êsses são exemplos do emprêgo do poder nu contra vítimas indefesas.
Muitas formas de poder injusto, profundamente enraizadas na tradição, devem ter sido, em alguma época, formas do poder nu. As esposas cristãs, durante muitos séculos, obedeceram os maridos porque São Paulo disse que deviam fazê-lo; mas a história de Jason e Medéia nos dá um exemplo das dificuldades que os homens devem ter tido antes de que a doutrina de São Paulo fôsse aceita geralmente pelas mulheres.
Tem de existir tanto o poder dos governos como o dos aventureiros anárquicos.
Tem de haver mesmo o poder nu, enquanto houver rebeldes que ajam contra o govêrno, ou mesmo criminosos comuns. Mas, para que a vida humana possa ser, para a massa da humanidade, algo melhor que uma triste miséria pontilhada de momentos de vivo terror, deve haver n menor poder nu possível. O exercício do poder, para que possa ser algo melhor que a imposição de caprichosas torturas, deve ser limitado pelas salvaguardas da lei e do costume, e só deve ser permitido depois de uma deliberação devida, sendo confiado a homens que sejam estreitamente fiscalizados,
no interêsse dos que estão a êles sujeitos.
Não pretendo dizer que isto seja fácil. Implica, entre outras coisas, a eliminação da guerra, pois tôda guerra é um exercício do poder nu. Implica um mundo livre das opressoes intoleráveis que provocam as rebeliões. Implica a elevação do padrão de vida em todo o mundo – particularmente na Índia, China e Japão – pelo menos até o nível que foi atingido nos Estados Unidos antes da
depressão. Implica instituições análogas às dos tribunos romanos, não para o povo como um todo, mas para cada parte da população que esteja sujeita á opressão, como as minorias e os criminosos. Implica, sobretudo, uma opinião pública vigilante, que tenha oportunidade de verificar os fatos.
É inútil confiar-se na virtude de alguns indivíduos ou de grupos de indivíduos. O rei filósofo foi há muito posto de lado como um sonho ocioso, mas o partido dos filósofos, embora igualmente falaz, é saudado como sendo uma grande descoberta. Nenhuma solução real do problema do poder pode ser encontrada no govêrno irresponsável de uma minoria, nem mediante qualquer outro atalho. Mas a discussão mais ampla desta matéria deve ser deixada para um capítulo posterior.