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O estranho mundo chamado África

 

O ESTRANHO MUNDO CHAMADO ÁFRICA

Margarete Hülsendeger

 

Ninguém identifica um escravo e lida melhor com ele

do que outro escravo.
S. Naipul

 

Em 2019 estreia o remake de um filme que marcou uma geração. O original é de 1994 e foi, segundo os críticos de cinema, uma adaptação de uma das obras mais famosas de Shakespeare, Hamlet. O remake vem acompanhado de uma grande expectativa, pois todos querem saber se a nova versão vai conseguir superar a primeira já que dessa vez será usada uma tecnologia cinematográfica virtual superior a utilizada no The Jungle Book. Se você ainda não descobriu de que remake estou falando, vou lhe dar uma pista: “Hakuna Matata!”. Sim, é esse mesmo, “O Rei Leão”.

Ao som de belas músicas que marcaram a infância de muita gente, “O Rei Leão” apresenta uma África livre da influência humana, com animais de diferentes espécies vivendo em relativa harmonia, pelo menos até a trágica morte do Rei. A cena inicial, quando Simba é apresentado à “sociedade” do alto daquela enorme pedra, ao som de “The circule of life”, cantado por Elton John, até hoje deixa adultos e crianças emocionados em igual medida. E nem vou comentar o momento arrasador da morte do Rei Mufasa e o desespero profundo no qual mergulha Simba até ser salvo por Timão e Pumba. Enfim, teremos de esperar até julho de 2019 para verificar se essa nova versão consegue superar a primeira. No entanto, se você quer conhecer uma outra África, recomendo a leitura de Uma curva no rio[1] (1979), de V. S. Naipul (1932-2018).

Naipul foi Prêmio Nobel de Literatura em 2001 e nasceu em Trindad Tobago, nas Caraíbas. Confesso: Uma curva no rio é o primeiro livro que leio dele e, definitivamente, a África ali apresentada nada tem a ver com a produção da Disney. O livro está dividido em quatro partes e escrito em primeira pessoa, sendo seu narrador um homem de descendência indiana (Salim), mas que faz questão de dizer que a África é o seu lar, como fora da sua família durante séculos. O mapa desenhado ao longo da obra mostra um continente geograficamente dividido em dois: o litoral e a selva. Enquanto o primeiro não é considerado propriamente africano, o segundo, com seus muitos quilômetros de savana e deserto, são o que Salim chama de a “verdadeira África”. A história começa após os movimentos de independência e a consequente retirada dos “colonizadores” europeus. Um povo que, segundo o narrador, podia fazer uma coisa e dizer outra completamente diferente e que, no auge do seu poder, foi capaz de “exprimir os lados de sua civilização”, conseguindo com isso o ouro e os escravos que tanto desejava.

A narrativa está cheia de personagens interessantes que refletem as diferentes faces desse continente ainda estranho aos “civilizados” europeus. Há Zabeth, a mulher africana, misto de feiticeira e varejista, que percorria quilômetros de selva e rio desde sua aldeia até a cidade, para comprar frigideiras de alumínio, panelas de ferro, utensílios esmaltados e bacias. Uma típica habitante da selva africana que untava seu corpo com óleo para cheirar mal e assim afastar os homens que quisessem sequestrá-la, violá-la ou as duas coisas. Além de Zabeth, há também Nazruddin, outro indiano nascido na África que, ao seguir as antigas rotas comerciais árabes, acabou no centro do continente, “na curva do grande rio”. Uma figura exótica que sabia ler as palmas das mãos e se acreditava possuidor de uma sorte infalível, realizando negócios com enorme sucesso.

No entanto, Uma curva no rio não é feito apenas de figuras exóticas. É possível perceber que a trajetória do protagonista tem relação com a trajetória do próprio continente, feita, na maior parte do tempo, de altos e baixos, com lutas raciais sangrentas, tomadas de poder por homens que se dizem guardiães dos costumes da “velha África”. No livro, esses homens estão representados na figura do Grande Homem, que, ao se tornar presidente, derruba monumentos, apaga os nomes europeus das ruas e das cidades, expressando o desejo “de acabar com as coisas antigas, varrer a memória do invasor”. Nesses momentos, diz Salim, era possível perceber a profundidade da raiva africana, “a vontade de destruir a qualquer preço”.

A ascensão do Grande Homem mostra como uma ideia, ou um ideal, pode ser manipulado até se tornar uma forma de domínio e controle, assim como uma maneira de alimentar ódios, rancores e, consequentemente, a violência que não vê cor, credo ou raça. A maneira como o Grande Homem alcança o poder segue a mesma fórmula ou esquema de todo o ditador em qualquer parte do mundo: a aparente subserviência aos antigos senhores e sua cultura, a gradativa transformação dessa cultura em algo que tivesse a ver com o imaginário africano na tentativa de conquistar seguidores e partidários e, finalmente, a necessidade de impor esses “novos valores”, mesmo que seja à força. Seguindo o manual maquiavélico, o Grande Homem soube escolher o momento certo para transformar uma afronta à sua autoridade em uma forma que iria acentuá-la, exibindo-se como amigo do povo e no processo aproveitando para punir seus inimigos.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

Com certeza, a África de Uma curva no rio é bem diferente daquela que a Disney costuma apresentar em suas produções cinematográficas. V. S. Naipul nos traz uma África dividida, imersa em guerras tribais, rancorosa em relação aos seus antigos colonizadores, sofrendo com a fome e as doenças endêmicas. Uma África feita de homens negros, mas também de brancos que lá nasceram e que, muitas vezes, preferem ficar de costas para a “verdadeira África”. Nesse sentido, o próprio narrador reflete essa divisão, apresentando-se como um homem atormentado pela dúvida e a incerteza, devendo decidir entre a vontade de permanecer na terra que conhece e a necessidade de fugir. Ficar com o conhecido, mas que se desintegra sob as mãos do Grande Homem, ou tentar viver em outro lugar correndo o risco de sentir-se eternamente um estrangeiro? Essa é a dúvida de Salim, assim como de milhares de homens e mulheres que, ao longo dos séculos (e nos dias de hoje), viram-se diante da mesma encruzilhada.

Uma curva do rio, considerada a Magnum opus do escritor, foi escrita em 1979, mas, como toda a obra literária de valor, não perdeu a sua atualidade. Ao contrário. Esse país africano fictício poderia ser chamado de Síria, Afeganistão, Venezuela ou Uganda e pouca coisa mudaria. Você não precisa decidir entre “O Rei Leão” e Uma curva no rio. Pode assistir ao primeiro e ler o segundo. A emoção não será a mesma, mas a experiência vale a pena.

[1] NAIPUL, V. S. Uma curva no rio. Tradução Carlos Graibe. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 (320 páginas).

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