Educação Povos Indígenas

NARRATIVAS PAITER & IKOLEN DE RONDÔNIA COMO EXERCÍCIOS DE ESCRITA DECOLONIAL NA PÓS-GRADUAÇÃO: aprendendo a dizer a sua palavra

NARRATIVAS PAITER & IKOLEN DE RONDÔNIA COMO EXERCÍCIOS DE ESCRITA DECOLONIAL NA PÓS-GRADUAÇÃO: aprendendo a dizer a sua palavra

Josélia Gomes Neves[*]

Zacarias Kapiaar Gavião*

Joaton Pagater Surui*

Luiz Weymilawa Surui*

 

Resumo: Esta escrita resulta de uma reflexão coletiva produzida no Mestrado Profissional em Educação Escolar (MEPE) da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) em 2017, em Porto Velho-RO. Por meio da pesquisa autobiográfica e bibliográfica foi possível sistematizar processos de educação formais entre os povos Paiter Surui e Gavião Ikolen. Um registro decolonial (WALSH, 2009; FREIRE, 1987) que pode contribuir para as áreas de Alfabetização Intercultural Indígena e a História da Educação Escolar nas aldeias da Amazônia.

Palavras-chave: Pedagogias Freireanas. Interculturalidade Crítica. Ikolen. Paiter.

 

Resumen: Esta escritura resulta de una reflexión colectiva producida en el Máster Profesional en Educación Escolar (MEPE) de la Universidad Federal de Rondônia (UNIR) en 2017, en Porto Velho-RO. Por medio de la investigación autobiográfica y bibliográfica fue posible sistematizar procesos de educación formales entre los pueblos Paiter Surui y Gavião Ikolen. Un registro decolonial (WALSH, 2009, FREIRE, 1987) que puede contribuir a las áreas de Alfabetización Intercultural Indígena y la Historia de la Educación Escolar en las aldeas de la Amazonia.

Palabras clave: Pedagogías Freireanas. Interculturalidad Crítica. Ikolen. Paiter 

 

 

Introdução

Quanto mais investigo o pensar do povo com ele, tanto mais nos educamos juntos. Quanto mais nos educamos, tanto mais continuamos investigando. Educação e investigação temática, na concepção problematizadora da educação, se tornam momentos de um mesmo processo. (FREIRE, 1987, p. 65).

Josélia Gomes Neves Doutora em Educação Escolar, atua na Licenciatura em Educação Básica Intercultural da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Ji-Paraná e na Pós-Graduação em Educação Escolar – Mestrado Profissional (MEPE/UNIR), Porto Velho. É líder do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA). joselia.neves@pq.cnpq.br

As escritas ancoradas na memória são cada vez mais utilizadas para a produção do conhecimento crítico em perspectiva decolonial, principalmente no que diz respeito aos Povos Indígenas e sua larga trajetória de tradição oral. É um mecanismo mobilizador de lembranças, pois transporta para o papel lembranças de uma temporalidade pretérita assumindo um caráter formativo e de empoderamento na medida em que produzem rupturas com a ”cultura do silêncio”, ocupando espaço no mundo da escrita, pois: “[…] Aprender a dizer a sua palavra é toda a pedagogia, e também toda a antropologia” (FIORI, 1987, p. 12).

Os estudos autobiográficos (CUNHA, 1997) sinalizam para uma forma outra de elaboração do conhecimento e em função disso, questionam as pedagogias coloniais (WALSH, 2009) por possibilitar um pensar de iniciativa dos povos originários na historiografia da América Latina, inaugurando uma relação intercultural crítica por meio de outras formas de produção do conhecimento, tendo como ponto de partida suas trajetórias de vida em contextos coloniais.

Nesta direção, a pesquisa autobiográfica possibilita ainda, no caso específico deste texto, o conhecimento das trajetórias de aprendizagens formais percorridas por indígenas Ikolen e Paiter no inicio da escolarização. Estes elementos são importantes para aprofundar áreas da formação docente como a Didática, a Alfabetização Intercultural (NEVES, 2009) e a História da Educação Escolar Indígena no estado de Rondônia, pois a história pessoal permanentemente dialoga com a história social.

Essa perspectiva propiciou a invenção de um campo interdisciplinar de estudos que temos chamado de Antropologia Etnopedagógica no âmbito do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA), tendo como inspiração o pensamento crítico de Paulo Freire (1987). Os estudos e ações que desenvolvemos partem da premissa que a principal tarefa política do/a intelectual é a radicalidade na luta pela transformação social por meio da educação como forma de intervenção no mundo:

O radical, comprometido com a libertação dos homens [e das mulheres], não se deixa prender em “círculos de segurança”, nos quais aprisione também a realidade. […], se inscreve nesta realidade para, conhecendo-a melhor, melhor poder transformá-la. […]. Não teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o crescente saber de ambos. Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com eles lutar. (FREIRE, 1987, p. 18). (grifo nosso).

A partir destas considerações, apresentamos três narrativas indígenas sobre o contato com a escola e a escrita. Evidenciam como a recorrência aos processos próprios de aprendizagem de seus povos (tradição) funcionou como um importante dispositivo de atribuição de sentido ao objeto do ‘outro’, neste caso o ambiente escolar e o ato de escrever (tradução), (HALL, 2006). A articulação entre estes dois conceitos permite explicar os permanentes deslocamentos das identidades culturais no atual contexto da globalização.

Tenho observado no convívio de quase 15 (quinze) anos com os Povos Indígenas que há um conjunto de narrativas saudosas de uma vida anterior ao contato com as sociedades ocidentais. Este sentimento é interpretado pelos Estudos Culturais como um recurso para a manutenção de suas diferenças, uma forma de resistência a própria concepção de globalização como algo que tende a homogeneização cultural: “[…] algumas identidades gravitam ao redor daquilo que […] chamamos de ‘Tradição’, tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas” (HALL, 2006, p. 87).

Mas por outro lado, verifico que o estabelecimento do contato, ação colonizadora sobre os povos indígenas colocou estes sujeitos diante de uma nova realidade cultural com impactos para suas identidades que “[…] estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou “puras”” (HALL, 2006, p. 87). Para compreender este “novo” elas precisam utilizar mecanismos de tradução, formas de negociações culturais com repercussões em seus modos de vida.

A relação entremundos, explicitada no binômio tradição/tradução é uma compreensão teórica importante na medida em que reconhece as relações de poder, mas há um “[…] pensamento de fronteira [que] se preocupa com o pensamento dominante, mantendo-o como referência, […], mas sujeitando-o ao constante questionamento e introduzindo nele outras histórias e modos de pensar”. (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 11).

Significa afirmar que estes dois mundos, são observados em um espaço que fica metaforicamente no meio das duas culturas, é o entre-lugar (BHABHA, 1998).   O entre-lugar é uma elaboração teórica importante uma vez que possibilita a mobilidade identitária e a produção da resistência, ou seja, “estou aqui, mas também sou de lá”. Uma estratégia cultural de insurgência que evita a adoção total da nova cultura, filtrando apenas os elementos dos quais precisa e ao mesmo tempo um mecanismo de manter à lealdade aos valores da tradição e da valorização de sua diferença.

Assim, se por um lado estas identidades passam por processos de alteração cultural, por outro, conservam aspectos que consideram importantes envolvendo narrativas de origem, guerras, rituais de cura, utilização das línguas maternas e costumes que coexistem com os contextos nos quais se encontram por meio da estratégia da Tradução, que explica as identidades de pessoas que por determinadas razões, não se encontram mais em seus territórios tradicionais, mas que:

[…] retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa” particular). (HALL, 2006, p. 24).

Compreender que o encontro entre culturas diferentes e em contextos assimétricos produz processos permanentes de tradução representa um mecanismo importante para entender as relações entre o ‘eu’ e o ‘outro’, que temos observado no comportamento entre indígenas e não indígenas em Rondônia.

O pensamento freireano (1987; 1989), os estudos decoloniais de pesquisadores indígenas, Gavião Kapiaar (2015); Suruí Pagater (2015) Suruí, Weymilawa (2015) e os Estudos Culturais (WALSH, 2009) constituem uma lente teórica explicativa que melhor se aproxima do que ocorre na atualidade amazônica.

Neste sentido, inferimos que as relações culturais existentes entre indígenas e não indígenas, não se resumem a uma mera mistura de conhecimentos: a tradição está ali e a tradução é o meio de negociar, significar os elementos oriundos do novo modo de viver. Foi o mecanismo que permitiu atribuir sentidos à escola e à escrita evidenciados nas narrativas indígenas ora apresentadas.

  1. Escola-igreja e a busca da interculturalidade crítica inspirada nas aprendizagens no Bekãh

O povo Gavião vive na Terra Indígena Igarapé Lourdes, localizada entre a margem direita do rio Machado e a divisa com Mato Grosso, no município de Ji-Paraná. […]. Nesta área vive também o povo Arara. O povo Gavião tem uma população de aproximadamente 700 pessoas, ainda com a cultura viva. A língua materna é falada por toda a comunidade. […]. (GAVIÃO KAPIAAR, 2015, p. 11).

Zacarias Kapiaar Gavião – Mestrando na Pós-Graduação em Educação Escolar – Mestrado Profissional (MEPE/UNIR), Porto Velho. Docente na EEEF Mavguvehj (SEDUC-RO), Aldeia Castanheira, T. I. Igarapé Lourdes, Ji-Paraná-RO. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA). gaviaokapeaar@gmail.com

Meu nome é Zacarias Kapiaar Gavião. Aos oito anos de idade comecei a estudar com os missionários de um grupo evangélico chamado Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) na língua materna. Quando eu comecei a frequentar a escola, os missionários, com a ajuda dos caciques já tinham definido a ortografia da língua Gavião, como o alfabeto, os sinais e os tons das palavras. Éramos um grupo relativamente grande de estudantes com idades diferentes.

Na época o principal objetivo dos missionários não era que tivéssemos o direito à educação, mas sim alfabetizar os indígenas para a evangelização. A ideia deles era traduzir a bíblia na língua Gavião, para que assim os indígenas pudessem pregar para os seus parentes na própria língua. Essa compreensão, os indígenas mais velhos foram elaborando no decorrer do processo que envolvia tanto a aprendizagem escolar como a aprendizagem do contexto, confirmando que: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, […]. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. […] implica a percepção das relações entre o texto e o contexto”. (FREIRE, 1989, p. 9).

Mas naquela época eu ouvia algo sobre os reais interesses missionários, mas era apenas uma criança curiosa, não compreendia o processo na totalidade. No momento em que me encontro em um curso de pós-graduação, analiso que: ’[…]. O discurso construído sobre esse diálogo é que torna possível transformá-lo numa situação profundamente pedagógica. A linguagem, aí, é uma poderosa aliada da formação (CUNHA, 1997, p. 36). As lembranças deste tempo ganham mais sentido e ajudam a compreender os objetivos das missões nos territórios indígenas.

Lembro que estudei por meio das duas línguas, o português com a professora “branca” e a língua materna com o missionário. Estes falavam na língua Gavião e a professora “branca”, a não indígena, só falava em língua portuguesa. No entanto, fora da escola no tempo de uma determinada festa, a comunidade reservava um espaço próprio da tradição para fazer os preparativos necessários, para conseguir realizar aquele acontecimento, momento em que pude compreender algo muito importante, pois, entendi, ”[…] que existia um espaço de ensinar. […] Eu percebi que não era só o branco que tinha um espaço central de ensino, minha comunidade também possuía uma forma de educar. Eu participava das duas, tanto da escola que a FUNAI montou, quanto do Bekáh”. (GAVIÃO KAPIAAR, 2015, p. 11).

Saber que nós Povos Indígenas também tinham formas de ensinar e aprender foi muito bom. E nas aulas eu dava exemplo de coisas da minha aldeia para compreender os conteúdos, eu fazia tradução cultural (HALL, 2006). Assim, eu aprendi a ler e escrever quase no mesmo tempo as duas línguas, a Gavião e a portuguesa. E nesse tempo 90% da comunidade se tornou evangélica. Já havia algumas palavras traduzidas da bíblia em Gavião e vários parentes passaram a evangelizar para seus familiares na sua própria língua. Outros povos viveram situações parecidas, sendo atribuído a isso o descaso do Estado brasileiro para com as comunidades indígenas, espaço que foi cada vez mais ocupado pela igreja iniciado na educação formal:

Em Rondônia, áreas como a Suruí, a Gavião, a Tupari resistiram anos à religião de fora e à conversão. […]. Agora, como que vencidos, o número de crentes e pastores índios vem aumentando. […]: a conversão e acordos com o governo depois do alcoolismo, dos massacres, do cansaço das derrotas nas guerras pelo território, do desespero com a vida miserável nas reservas. (MINDLIN, 1994, p. 249).

As duas escritas, na língua indígena e a portuguesa foram muito importantes até porque depois de alguns anos utilizei esses dois conhecimentos para ensinar. Quando a maioria dos parentes foram para a igreja na aldeia Igarapé Lourdes, muitas atividades da cultura mudaram. O colonialismo religioso provocou uma devastação: a autoridade dos mais velhos foi questionada, a atuação do Cacique fragilizada e os rituais do Pajé proibidos.

 Tudo isso em uma velocidade tão grande que mal deu tempo para o Povo entender o que estava acontecendo. Na linguagem era impossível criar palavras novas para tantas coisas, talvez por isso fizemos tantos empréstimos linguísticos de algumas situações que não eram necessárias. Mas apesar de tudo isso, desta relação de poder, alguns aspectos da tradição Gavião de forma quase invisível resistem. Negociamos e elaboramos as traduções (HALL, 2996) necessárias e assim temos encontrado um jeito de viver circulando nestes dois universos.

  1. Educação formal e conhecimento escrito: entre colonialismos e buscas por traduções culturais

O meu Povo Paiter Suruí vive na Terra Indígena Sete de Setembro, localizada entre os estados de Mato Grosso […] e de Rondônia numa área de mais de 247 mil hectares. O nosso primeiro contato ocorreu em 1969 e de lá para cá estamos convivendo e aprendendo a viver com a população não indígena que tem causado profundas mudanças e alterações sociais, econômicas e culturais em nossa identidade étnica. (SURUI PAGATER, 2015, p. 12).

Joaton Pagater Surui – *Mestrando na Pós-Graduação em Educação Escolar – Mestrado Profissional (MEPE/UNIR), Porto Velho. Docente na EEEFM Sertanista José do Carmo Santana (SEDUC-RO), Aldeia Gapg̃ir, T. I. Sete de Setembro, Cacoal-RO. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA). pagatergapgir@gmail.com

Sou Joaton Pagater Surui. O meu primeiro contato com a escola foi aos 10 (dez) anos de idade. As primeiras atividades eram de coordenação motora, depois as primeiras sílabas, aprendizagens construídas na Escola Sertanista José do Carmo Santana, na época aldeia Posto Indígena (P.I), Linha 14, Terra Indígena Sete de Setembro, em Cacoal-RO. Nesta escola fui alfabetizado inicialmente na língua portuguesa em 1988 por meio da atuação docente de funcionários contratados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). No entanto, só fui aprender a ler e escrever em português mais aprofundado depois de certo tempo.

Hoje avalio que a parte boa do meu acesso à educação escolar é que pude ter contato com outros saberes e culturas diferentes da minha observados na ação docente. Já a parte ruim era a difícil relação com os docentes que frequentemente nos deixavam de castigo ajoelhados ou trancados em sala de aula. Às vezes, até nos batiam quando não sabíamos responder ou interpretar a língua portuguesa no processo de alfabetização da forma como esperavam, não consideravam nossa realidade nos conteúdos e nem as orientações didáticas que destacam que um bom: “[…] programa da alfabetização deveriam vir do universo vocabular dos grupos populares, […] carregadas da significação de sua experiência existencial e não da experiência do educador”. (FREIRE, 1989, p. 9).

Assim, percebia que a educação escolar era diferente da educação que eu vivenciava em casa, com meus pais, irmãos, irmãs, onde aprendi na língua indígena as histórias e as brincadeiras da cosmologia Paiter. Depois comecei a caçar, imaginar e pensar o mundo para tornar meus sonhos em realidade. Assim no chão da aldeia, foi que: “[…]. engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras”. (FREIRE, 1989, p. 9). Uma experiência da tradição muito diferente da que eu vivenciava no ambiente escolar formal. Mas algo me incentivava a continuar.

Depois de muito tempo repetindo a mesma série na escola indígena saí de lá em 1992 e fui estudar na escola não indígena de nome Andradina, da rede municipal de Cacoal. A escola ficava na zona rural, saia da minha aldeia e caminhava mais de sete quilômetros para chegar até a escola. Ali consegui concluir o quinto ano do Ensino Fundamental. Como esta escola não tinha o sexto ano, tive que pedir transferência para a escola Família Agrícola Pr. Ezequiel Ramin em Cacoal cerca de quarenta e cinco km da minha aldeia.

Passava quinze dias na escola e quinze com meus pais. Muitas vezes caminhava a pé ou pegava carona para chegar até em casa. Ali estudei durante quatro anos, fiz o Ensino Fundamental, na época, 5ª à 8ª série. Depois cursei a formação dos professores indígenas de Rondônia, o Projeto Açaí I e após dois anos ingressei na educação superior, Licenciatura em Educação Básica Intercultural na Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Campus de Ji-Paraná.

Na Universidade, as inquietações continuaram referentes as vivências no processo de escolarização. Avaliei que aquele jeito de ensinar era inadequado ao Paiter. Tenho aprendido que nossas insatisfações diante de determinadas situações da vida nos pressionam para pensar outras alternativas, pois: “[…] Aí se encontram as raízes da educação […], como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a educação um que-fazer permanente”. […]. (FREIRE, 1989, p. 47).

Por concordar com o entendimento de Paulo Freire que o ser humano é inacabado, nunca está pronto, pois sempre tem perguntas para responder e por isso precisa aprender e ensinar sempre desenvolvi na graduação um estudo com base na realidade Paiter, um currículo específico e diferenciado para os anos iniciais do ensino fundamental (SURUI PAGATER, 2015). Acredito que a decisão por este estudo seja também resultado dos memoriais feitos no Açaí e na Universidade sobre minha escolarização, confirmando que: “A narrativa provoca mudanças na forma como as pessoas compreendem a si próprias e aos outros“. (CUNHA, 1997, p. 2).

Como havia escrito em 2015, reafirmo agora na Pós-Graduação que a educação escolar deve levar em consideração as diferenças culturais que temos para que assim possamos formar indígenas conhecedores tanto dos saberes da sociedade não indígena, mas acima de tudo, ter domínio dos conhecimentos tradicionais do nosso povo, de modo que resulte em uma interculturalidade de verdade, crítica (WALSH, 2009).

  1. A luta pela escola: da educação colonial à educação libertadora e intercultural

Somos Paiter, ou seja, ‘nós mesmos’. No início do contato os não indígenas observaram outros grupos indígenas da região nos chamando de yory, então confundiram o som de yory e nos deram o nome de Surui. Dizemos yory yway ey, aqueles que têm risco no rosto principalmente para os mais velhos. Os Paiter vivem na Terra Indígena Sete de Setembro, localizada entre os estados de Rondônia e Mato Grosso,[…]. […] a aldeia G̃apg̃ir está localizada na linha 14, há 55 km do Município de Cacoal Rondônia. (SURUI WEYMILAWA, 2015, p. 23).

Luiz Weymilawa Surui – Mestrando na Pós-Graduação em Educação Escolar – Mestrado Profissional (MEPE/UNIR), Porto Velho. Docente na EEEFM Sertanista José do Carmo Santana (SEDUC-RO), Aldeia Gapg̃ir, T. I. Sete de Setembro, Cacoal-RO. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA). luizsurui@yahoo.com.br

Pertenço ao clã G̃apg̃ir, do povo indígena Paiter, sou Luiz Weymilawa Surui. Nasci e cresci na aldeia G̃apg̃ir da Linha 14 a 60 quilômetros do município de Cacoal, no estado de Rondônia. Foi neste local que aprendi as primeiras leituras do mundo, o mundo Paiter, através do “[…] universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores. […]”. (FREIRE, 1989, p. 9). Mas este contexto era bem diferente das leituras que eu encontrei na escola no inicio da escolarização.

Quando comecei a estudar não sabia falar na língua portuguesa, falava apenas na língua Paiter. Devido a essa barreira linguística não compreendia o que a professora “branca” ensinava. Estudei nessa instituição até o terceiro ano, em uma turma multisseriada, só tinha essa sala de aula na escola. A estrutura era de madeira e mais distante da aldeia. Não havia lanche, apenas quando levávamos um pouco de arroz, cará e mandioca que era feita a merenda. Aprendi muito pouco nos três primeiros anos de estudo e hoje consigo avaliar isso, pois: “Quando uma pessoa relata os fatos vividos por ela mesma, percebe que reconstrói a trajetória percorrida dando lhe novos significados”. (CUNHA, 1997, p. 2).

Prosseguindo minha escolarização, estudei a 4ª série no Riozinho distrito de Cacoal, na casa do meu irmão na escola Nossa Senhora do Carmo. Ainda não dominava a língua portuguesa e por isso me comunicava pouco, ainda era um desafio aprender os conteúdos trabalhados na escola, mas minha insistência em estudar assuntos na maioria das vezes tão sem sentido para mim talvez já fosse uma pista que eu de algum modo já compreendia que aquela situação não era permanente, pois: “Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão”. (FREIRE, 1987, p. 19).

Com o passar do tempo e com muito esforço, ampliei minha compreensão sobre a língua não indígena e os conteúdos trabalhados no ambiente escolar, prosseguindo até a antiga sexta série. No entanto, não foi suficiente, pois neste ano reprovei e minha mãe me levou de volta para a aldeia. Perdi o ano, fiquei parado sem estudar. Hoje reflito sobre aquela reprovação e penso que ocorreu porque talvez a preocupação maior deste ensino era com a memorização, a “[…] ‘“sonoridade’ da palavra e não sua força transformadora. Quatro vezes quatro, dezesseis; Pará, capital Belém, que o educando fixa, memoriza, repete, sem perceber o que realmente significa […]” (FREIRE, 1987, p. 37).

A partir do segundo semestre voltei a frequentar a escola urbana, tinha um ônibus que ia buscar e levar todos os dias para a escola da cidade. Saía da aldeia as quatro horas da tarde e à escola depois das seis horas. O retorno era longo, chegava à aldeia, as quatro horas da manhã depois de dormir um pouco no ônibus na trajetória de volta. Devido ao sofrimento que enfrentava parei de estudar novamente, ainda na sexta série.

Mas insisti e no ano seguinte fui estudar na antiga escola agrícola “Auta Raupp”, atual Instituto Federal Campus Cacoal (IFRO) localizado na BR 364 onde ficava quinze dias estudando e quinze dias na aldeia. Nessa escola consegui concluir o Ensino Fundamental e já conseguia me comunicar bem melhor na língua portuguesa. Depois dai prossegui meus estudos, o curso do ensino médio, a graduação específica para indígenas – a Licenciatura em Educação Básica Intercultural na UNIR do município de Ji-Paraná.

O próximo desafio foi o acesso ao curso de Mestrado, uma trajetória importante que aprofundarei em outra oportunidade. Nessa caminhada tenho compreendido por meio da educação crítica, tanto das leituras do mundo Paiter como das leituras do mundo ocidental que: “[…]. O Brasil foi ‘inventado’ de cima para baixo, autoritariamente. Precisamos reinventá-lo em outros termos”. (FREIRE, 1989, p. 9). Por isso pretendo continuar aprendendo os saberes da minha tradição, a nossa cosmologia Paiter, assim como os saberes ocidentais, pois entendo que há necessidade de compreender os elementos culturais destes dois mundos.

 

Considerações Finais

A escrita a partir das lembranças foi o principal elemento que mobilizou a elaboração deste texto. Este formato tem possibilitado o exercício de auto-reflexão na medida em que possibilita o exercício de aventurar-se em narrativas que evidenciam pistas sobre as práticas pedagógicas, concepções de aprendizagem, no âmbito das diferenças culturais, resultando em novos conhecimentos.

Em diálogo com as contribuições de Paulo Freire e dos Estudos Culturais, as narrativas explicitam a compreensão do inacabamento humano e a partir disso em um contexto de subalternidade a busca pela humanização. Evidenciam processos dialógicos entre o mundo da tradição e após o contato, o mundo moderno, do “branco”, por meio da tradição, recurso para compreender os novos elementos culturais. Um entendimento que demonstra que não é possível em um contato prolongado trocar totalmente uma cultura pela outra, pois dois desejos estão postos: de um lado, retornar à cultura ancestral e de outro, ficar e conhecer as novidades.

Foi possível observar que a educação escolar chegou às aldeias Ikolen por meio da ação missionária sob a conivência do Estado brasileiro. E que o direito a educação diferenciada não era o principal objetivo dos grupos religiosos – católicos e protestantes, mas a atividade catequizadora ou evangelizadora. No entanto, não é possível afirmar que houve substituição da educação da tradição pela educação ocidental, uma vez que os indícios apontam que há possíveis resignações, mas há também resistências.

Nas aldeias Paiter, a escola chega pela ação estatal, através da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Possivelmente em função da ausência de formação, o despreparo em sala de aula fica evidente. A não aprendizagem é considerada como uma responsabilidade exclusiva do estudante indígena. Essa visão unilateral levará a ações drásticas que possibilitarão a recusa a esta educação colonial e a elaboração futura de uma nova forma de educar na escola.

As narrativas evidenciam ruptura com a “cultura do silêncio”, na medida em que materializaram escritos onde puderem “dizer a sua palavra”, expressões de Paulo Freire para evidenciar o processo de busca pela humanização por meio da educação. Assim podemos inferir que os Povos Indígenas, a partir de seus escritos transitam em uma fronteira, um entre-lugar considerando a existência dos dois mundos: ora recorrem à tradição para a manutenção de sua identidade, pertencimento e diferença, ora apreendem com o novo, selecionando elementos em complexas negociações com as demandas oriundas da vida contemporânea.

 

Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

CUNHA, Maria Isabel da. Conta-me agora! As narrativas pedagógicas na pesquisa e no ensino. Rev. Fac. Educ. São Paulo, v. 23, n. ½, p. 185-195, jan./dez. 1997.

FIORI, Ernani Maria. Aprender a dizer suas palavras. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

_______ . A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.  São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

GAVIÃO KAPIAAR, Zacarias. Bekáh: o lugar da educação tradicional Gavião. 2015. 40 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia). Universidade Federal de Rondônia. Ji-Paraná – Rondônia.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2006.

NEVES, J. G. Cultura Escrita em Contextos Indígenas. 2009. 369 f. Tese (Doutorado em Educação Escolar). UNESP – Campus de Araraquara/SP, Araraquara, 2009.

OLIVEIRA Luiz Fernandes de; Vera Maria Ferrão Candau. Pedagogia Decolonial e Educação Antirracista e Intercultural no Brasil. Educ. em Revista, Belo Horizonte, v. 26, nº 1, p. 15-40, abr. 2010.

SURUI PAGATER, Joaton. Metar Et Ah: uma proposta de educação escolar indígena diferenciada para o Povo Surui Paiter de Rondônia. 2015. 67 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia). Universidade Federal de Rondônia. Ji-Paraná – Rondônia.

SURUI, WEYMILAWA, Luiz. Toy Je Or Ewe Same: notas da História do Povo Paiter da Aldeia Gapgir na Linha 14. 2015. 94 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia). Universidade Federal de Rondônia. Ji-Paraná – Rondônia.

WALSH, Catherine. Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e reviver. In. CANDAU, Vera Maria (Org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 12-43.

Como citar este artigo:

NEVES, J. G.; KAPIAAR GAVIÃO, Z.; PAGATER SURUI, J.; WEYMILAWA SURUI, L. Narrativas Paiter & Ikolen de Rondônia como exercícios de escrita decolonial freireana na pós-graduação: aprendendo a dizer a sua palavra. Rev. Partes [online]. Jan. 2019. Disponível em <https://www.partes.com.br ISSN 1678-8419

 

 

 

[*]Doutora em Educação Escolar, atua na Licenciatura em Educação Básica Intercultural da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Ji-Paraná e na Pós-Graduação em Educação Escolar – Mestrado Profissional (MEPE/UNIR), Porto Velho. É líder do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA). joselia.neves@pq.cnpq.br

*Mestrando na Pós-Graduação em Educação Escolar – Mestrado Profissional (MEPE/UNIR), Porto Velho. Docente na EEEF Mavguvehj (SEDUC-RO), Aldeia Castanheira, T. I. Igarapé Lourdes, Ji-Paraná-RO. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA). gaviaokapeaar@gmail.com

*Mestrando na Pós-Graduação em Educação Escolar – Mestrado Profissional (MEPE/UNIR), Porto Velho. Docente na EEEFM Sertanista José do Carmo Santana (SEDUC-RO), Aldeia Gapg̃ir, T. I. Sete de Setembro, Cacoal-RO. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA). pagatergapgir@gmail.com

*Mestrando na Pós-Graduação em Educação Escolar – Mestrado Profissional (MEPE/UNIR), Porto Velho. Docente na EEEFM Sertanista José do Carmo Santana (SEDUC-RO), Aldeia Gapg̃ir, T. I. Sete de Setembro, Cacoal-RO. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA). luizsurui@yahoo.com.br

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