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Quando o “comum” se torna literatura

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QUANDO O “COMUM” SE TORNA LITERATURA

Margarete Hülsendeger

La memoria del cuerpo no cae nunca en minucias. Cada cuerpo recuerda del otro lo que le da placer, no aquello que lo disminuye. Es una memoria entrañable, más, mucho más generosa que el tacto ya desgastado de las manos, harto contaminadas de rutina cotidiana[1].

Mario Benedetti

É porque a intensidade mais perturbadora da vida é a morte. É porque a morte é tão injusta. É porque, para quem provou a vida, a morte não parece nem sequer natural. Eu pensava — e, em segredo, tinha certeza — que a vida continuava.

Philip Roth

Quem já não deve ter ouvido, ou dito, a frase: “Minha vida daria um livro!”. Os escritores esbarram frequentemente com esse tipo de declaração sendo, muitas vezes, forçados a explicar que escrever um romance (ou um conto), não é simplesmente copiar a realidade tal como ela se apresenta. Como diz o escritor mexicano Carlos Fuentes (1928-2012), a literatura, em especial a escrita de romances, não tem como objetivo refletir a realidade, mas sim criá-la, de tal maneira que qualquer efeito social provocado por uma obra literária se dá primeiro pela linguagem e pela imaginação.

Isso não quer dizer que não se possam escrever bons romances tendo como inspiração homens e mulheres comuns. Indivíduos que, ao se tornarem personagens, nos lembram não só pessoas conhecidas mas, principalmente, a nós mesmos. Esse “efeito de real”[2] é usado com extrema maestria por diferentes autores de ficção, desde os realistas mais ferrenhos até aqueles que introduzem em seus textos elementos fantásticos e aparentemente irreais. Essa qualidade de criar uma realidade, a partir do comum, pode ser encontrada em dois livros de autores oriundos de tradições literárias diferentes: Homem comum[3] (2006), do americano Philip Roth (1933-2018), e A borra do café[4] (1992), do uruguaio Mario Benedetti (1920-2009).

Homem comum inicia diante de uma sepultura, em um antigo cemitério judeu mal cuidado, de uma pequena comunidade chamada Elizabeth. Logo, Roth não tem qualquer problema em começar a história pelo fim, ou seja, pela morte do seu protagonista, um publicitário aposentado ao qual o autor não dá nome. A questão da ausência do nome pode chamar atenção no começo, mas conforme a história prossegue, o leitor logo percebe que saber, ou não, o nome desse personagem torna-se completamente desnecessário diante da forma como Roth narra os acontecimentos de sua vida. O autor não deixa nada de fora, desde a infância até o momento no qual ele perde a consciência e nunca mais desperta.

Há na história de Roth uma força narrativa que “pega” o leitor do início ao fim. Desde a descrição da infância, ajudando o pai na loja da família, passando pelo o tempo de faculdade, o ingresso na profissão, os casamentos fracassados e sua saúde sempre precária, sabe-se que se está diante de um homem que não assume, em nenhum momento, o papel de herói ou de mártir. Seus conflitos, ansiedades, preocupações e dúvidas são as mesmas que qualquer homem poderia ter ao longo de uma vida que cobriu sete décadas de existência. Seus erros também são aqueles que cometeríamos se estivéssemos, quem sabe, sujeitos às mesmas circunstâncias do personagem, fato que ele reconhece ao dizer “Não há como refazer a realidade. O jeito é enfrentar. Segurar as pontas e enfrentar”. E é exatamente o que faz esse homem sem nome: ele enfrenta, na maioria das vezes sozinho, o colapso de seu próprio corpo, sentindo sua força se extinguir até chegar o tempo no qual ele não se vê mais como um ser humano completo. No entanto, não pense que a história é depressiva ou pessimista; na verdade, ela é uma espécie de ode à vida, uma vida que, apesar de todas as adversidades, foi plena de desejos e realizações. Uma vida que valeu muito a pena ser vivida.

Em A borra de café[5], Benedetti também segue a trajetória de um homem, mas de forma mais linear. Não há cemitérios à vista, não para o personagem principal, pelo menos. Escrita praticamente toda em primeira pessoa, percorre a vida, da infância até a maturidade, do pintor Claudio. Nesse périplo, Benedetti traça um mapa não apenas da vida desse personagem, mas do que está acontecendo na sua cidade natal, Montevidéu, e no mundo. Com um perfil itinerante, a família de Claudio vive em meio a mudanças, não parando muito tempo em um mesmo lugar. Há, portanto, na sua vida, um número significativo de casas, mas ele opta por falar apenas daquelas nas quais ocorreram coisas importantes. Com seu estilo poético, Benedetti vai descrevendo essas “casas” apontando os acontecimentos mais significativos na sua vida de menino, adolescente e depois de homem adulto. Há espaço na sua prosa para descrição de sonhos, experiências amorosas transcendentais, encontros e desencontros que beiram ao fantástico e até mesmo para o compartilhamento de trechos do diário escrito pelo pai, repleto de pequenas revelações sobre a intimidade de um homem calado e pouco afeito a demonstrações de carinho.

Claudio, o homem comum de Benedetti, cresceu para se tornar um pintor obcecado pelos relógios e por uma hora determinada: 3h10min. Os relógios carregam um erotismo próprio com os ponteiros dos minutos e dos segundos representando homens e mulheres nus no ato de fazer o amor. O horário assume um caráter místico porque muitos dos eventos que marcaram o personagem ocorreram às 3 horas e 10 minutos: a morte da mãe, seu encontro com uma menina/mulher misteriosa chamada Rita, sua iniciação sexual. Esse momento no tempo era tão especial que Claudio, apesar de não se considerar supersticioso, ficava alerta, esperando que algo inesperado pudesse ocorrer: “Se estava dormindo a sesta, nessa hora despertava sobressaltado ou, se continuava dormindo, entrava rapidamente em um sonho singular ou em um pesadelo atroz”[6]. O leitor, diante de tais “estranhezas”, não questiona e nem duvida, pois tudo faz parte da história. Em A borra de café não há a última palavra, ou um fim definitivo, pois essa narrativa é feita de uma pluralidade de verdades nas quais estão presentes a imaginação e a realidade.

O homem sem nome de Philip Roth e o pintor Claudio de Mario Benedetti são personagens de ficção, ou seja, são feitos de palavras, criações da mente de dois grandes escritores. No entanto, quão verdadeiros eles são! É quase impossível não ler Homem comum e A borra de café e não se emocionar com as aventuras e desventuras desses dois seres. É difícil não se identificar com as diferentes facetas que os personagens desses dois romances nos apresentam. Em ambos há o desejo, tipicamente humano, de transcender o corpo físico, de ir além das limitações que a idade nos impõe, de buscar, não importa por quais meios, a felicidade. A morte está presente, mas a vida também, é como escreve Benedetti: “É certo que a morte faz parte da vida, mas não podemos enviá-la de férias? Afinal, ela trabalha tanto que merece usufruí-las. E não sintamos a sua falta porque de qualquer modo ela voltará e quando volte nos tocará no ombro”[7].

Nos dois romances a preocupação com o tempo, representado pela presença de relógios, é evidente. Em Homem Comum, o pai do protagonista é o dono de uma relojoaria, local onde o menino sem nome vai aprender não só a consertar relógios, mas a apreciá-los e respeitá-los, a ponto de só tirar o “velho Hamilton” do pulso (lembrança do pai relojoeiro) quando ingressa no hospital para realizar a sua última cirurgia. Em A borra de café, Claudio usa os relógios como fonte de inspiração para suas pinturas, atividade que começou na infância quando soube da doença terminal da mãe. Nos dois romances o tempo estabelece o ritmo da narrativa, um ritmo inexorável, independente de desejos ou vontades dos personagens. A emoção ao ler essas duas obras é a mesma, pois nos transporta àqueles instantes de nossas vidas quando, ao nos sentirmos vulneráveis e sozinhos, confiamos na “sorte” para escolher o melhor caminho. Portanto, se você se vê como um homem ou mulher comum, leia esses dois livros e faça parte dessas vidas que poderiam ser a sua se você fosse o personagem de um romance.

[1] “A memória do corpo não se detém nunca em detalhes. Cada corpo recorda do outro o que lhe deu prazer e não o que o diminuiu. É uma memória íntima, mas, muito mais generosa que o tato já gasto das mãos contaminadas pela rotina cotidiana” (Tradução minha).

[2] Expressão utilizada pelo crítico francês Roland Barthes.

[3] ROTH, Philip. Homem comum. Tradução Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[4] BENEDETTI, Mario. A borra de café. Tradução Joana Angélica d’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

[5] Eu li a versão em espanhol, por essa razão, as traduções são de minha autoria.

[6] Tradução minha.

[7] Tradução minha.

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