Políticas Migratórias no Brasil: O papel da Igreja frente à omissão do Estado
Matheus Lira Bento[1]
Geisibel Chim Gouveia[2]
RESUMO: O presente trabalho objetiva analisar a situação migratória atual no Brasil. Nesse contexto, foi estudado o papel do Estado e seus deveres nas questões migratórias, a situação vivida no Brasil e as ações desempenhadas pela igreja. Constatou-se a ausência de políticas migratórias estatais que visem a inclusão dos imigrantes, por outro lado observou-se a ação da igreja buscando minimizar os efeitos da exclusão e denegação de direitos aos imigrantes.
PALAVRAS-CHAVE: política migratória; igreja; Estado; migrações.
ABSTRACT: This article has as its goal to analyze the current Brazilian migration scenario. In this context, the role of the State and its duties in migratory issues, as well as the situation lived in Brazil and the actions performed by the church were studied. It was verified the absence of state public policies aimed at the inclusion of imigrantes. On the other hand, it was observed the church’s action seeking to minimize the effects of the exclusion and denial of rights to the immigrants.
KEY WORDS: migration policy; church; State; migrations.
O presente trabalho versa sobre a aparente omissão do Estado em promover políticas migratórias a fim de realizar de forma satisfatória a integração social dos imigrantes, com o consequente protagonismo das instituições religiosas, que suprem a carência deixada pelo Estado em relação a papel originariamente seu.
Tendo como ponto de partida o resultado de pesquisa realizada junto a imigrantes senegaleses na cidade de Rio Grande, no interior sul do Estado do Rio Grande do Sul, busca-se relacionar as situações observadas e os dados coletados aos pensamentos de Zygmunt Bauman, José Luiz Bolzan de Morais, dentre outros autores.
- O Estado e as Políticas Migratórias
A pesquisa que originou o presente estudo foi realizada através de entrevistas semiestruturadas na cidade de Rio Grande/RS em 18 e 19 de março de 2015. O grupo Gemigra (de estudos em políticas migratórias e direitos humanos), com o apoio da Pastoral do Migrante, entrevistou 20% dos imigrantes senegaleses em Rio Grande, a fim de verificar qual a participação do poder público e da igreja na inserção desses imigrantes na sociedade riograndina.
Na visita aos alojamentos de senegaleses em Rio Grande pode-se sinalizar o descaso do poder público no que tange ao acolhimento desses imigrantes. Pode-se averiguar que o senegalês vem em busca de uma nova oportunidade de vida baseada na incerteza e na insegurança de uma vida nova. A vida precária nos remete a um mundo líquido.
A liquidez é a metáfora utilizada por Bauman para explicar o sentido da pós-modernidade. “A vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incertezas constantes” (BAUMAN, 2000, p.8). A passagem de uma vida segura para uma vida precária em busca de mudanças em um mundo em contínuo movimento faz com que os senegaleses abandonem sua cultura, sua família e sua religiosidade para se depararem com o desafio do novo, em uma sociedade e uma cultura estranha ao seu povo.
Os senegaleses participam do grupo em que estão inseridos, mas sem se sentirem pertencentes a ele. A sua essência continua pertencendo ao grupo de raízes do seu país de origem.
Ainda, a omissão do Estado, deixando de promover políticas públicas, agrava a vulnerabilidade dos imigrantes e demonstra o quanto o poder público falha no que tange às garantias constitucionalmente previstas, revelando um cenário de crise do Estado.
Sobre esse tema, segundo José Luis Bolzan de Morais em seu livro “As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Especial dos Direitos Humanos”, a crise dificulta a conceituação do Estado. Seus elementos clássicos ou sofreram alteração de significado ou não conseguem mais caracterizar o Estado de forma completa e satisfatória.
Os elementos constitutivos do Estado (povo, soberania e território) já não são o bastante. A própria soberania precisa ter seu conceito revisto, diante da nova realidade mundial. Afirma o professor: “Falar em soberania, nos dias que correm, como um poder irrestrito, muito embora seus limites jurídicos, parece mais um saudosismo do que uma avaliação lúcida dos vínculos que a circunscrevem” (BOLZAN DE MORAIS, 2011).
Além da problemática da crise do Estado, o imigrante também enfrenta a negação de seus direitos e políticas sociais porque não é visto como um igual no Estado receptor. Diante disso, Flávia Piovesan refere que “é no princípio da dignidade humana que a ordem jurídica encontra o próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, para a hermenêutica constitucional contemporânea”. (2010, p.30)
A dignidade humana, em uma linguagem filosófica, pode-se definir como sendo “o princípio moral de que o ser humano deve ser tratado como um fim e nunca como um meio”. Verdadeiramente, é longa a caminhada empreendida pela humanidade até chegar-se ao reconhecimento e estabelecimento da dignidade da pessoa humana como direito essencial.
A vulnerabilidade do imigrante também está relacionada à falta de um vínculo jurídico-político com o território, de maneira que a nacionalidade ainda é vista, em que pese a globalização, como requisito indispensável para o exercício de uma cidadania plena.
Bauman retrata a nacionalidade como:
O “nós” do credo patriótico/nacionalista significa pessoas como nós, “eles” significa pessoas que são diferentes de nós. Não que “nós” sejamos idênticos em tudo, há diferenças entre “nós”, ao lado das características comuns, mas as semelhanças diminuem, tornam difuso e neutralizam seu impacto. O aspecto em que somos semelhantes é decididamente mais significativo que o que nos separa; significativo bastante para superar o impacto das diferenças quando se trata de tomar posição. E não que “eles” sejam diferentes de nós em tudo; mas eles diferem em um aspecto que é mais importante que todos os outros (…); (….) as fronteiras que “nos” separam “deles” estão claramente traçadas e são fáceis de ver, uma vez que o certificado de “pertencer” só tem um rubrica, e o formulário que aqueles que requerem uma carteira de identidade devem preencher contém só uma pergunta, que deve ser respondida “sim ou não”. (2000, p. 202).
A nacionalidade une as pessoas pertencentes àquela nação, tornando-as semelhantes em suas diferenças. “Aqueles” que não pertencem à ela, tornam-se diferentes de “nós”, portanto, não tem unicidade com o mesmo grupo.
Ainda em Bauman (2000, pág.203):
O nacionalismo tranca as portas, arranca as aldravas e desliga as campainhas, declarando que apenas os que estão dentro têm direito de aí estar e acomodar-se de vez. E, no entanto, o resultado último é, quase sempre, notavelmente semelhante. Nem o credo patriótico nem o nacionalista admitem a possibilidade de que as pessoas possam se unir mantendo-se ligadas às suas diferenças, estimando-as e cultivando-as, ou que sua unidade, longe de requerer a semelhança ou promovê-la como um valor a ser ambicionado e buscado, de fato se beneficia da variedade de estilos de vida, ideais e conhecimentos, ao mesmo tempo em que acrescenta força e substância ao que faz o que são – e isso significa ao que as faz diferentes.
A sociedade no sentimento nacionalista que fala Bauman, desenvolvendo posturas xenófobas, contribui para que os governos se intimidem no desenvolvimento de políticas migratórias de inclusão, delegando à igreja e organismos não governamentais em geral um papel que é originário do Estado.
- A Atuação da Igreja Católica diante da omissão do Poder Público
Com base na análise do cenário migratório brasileiro atual, é de fácil percepção o protagonismo da Igreja em relação ao amparo para com os migrantes e refugiados, seja oferecendo atendimento assistencial e jurídico, ou maior integração social, principalmente através de inclusão em políticas públicas que muitas vezes o grupo não possui acesso, por barreiras impostas pelo idioma ou de qualquer natureza.
Dentre uma rica gama de entidades religiosas que prestam apoio aos migrantes, pode-se destacar as performances do Instituto Migrações e Direitos Humanos e da Cáritas Brasileira.
Fundado em 1999 pelas Irmãs Rosita Milesi, Maria Luiza Shimano e pelo Padre Virgilio Leite Uchoa, o Instituto Migração e Direitos Humanos (IMDH), pertence à Congregação das Irmãs Scalabrinianas e tem sede em Brasília, Distrito Federal (IMDH, 2015).
Segundo o portal online da associação, encontramos como sua missão:
“Promover o reconhecimento da cidadania plena dos migrantes e dos refugiados, no respeito à sua dignidade, atuando na defesa de seus direitos, na assistência sócio-jurídica e humanitária, em sua integração social, e demandando sua inclusão em políticas públicas, com especial atenção às situações de maior vulnerabilidade.” (IMDH, 2015)
Diante da relevância e notoriedade dos serviços prestados aos imigrantes e refugiados, recebeu os prêmios de Direitos Humanos 2005 e o Prêmio Solidário, em 2006, concedido pelo ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas ( IMDH, 2015). Além disso, participa como membro integrante do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), a título de observador. Percebe-se, pelas atas das reuniões do conselho, a atuante participação do Instituto dentro do órgão definidor das políticas públicas.
Dentre diversas atividades exercidas pelo IMDH, pode-se destacar as “Ações Diretas”, como orientação jurídica, acolhida imediata em regiões fronteiriças, acomodação em albergues e pousadas, assistência psicológica, a “Atuação por políticas públicas”, como participação no Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), além de diversas publicações de artigos feitas em parceria com o ACNUR e outras instituições. (MILESI, 2007).
Em 2003, durante a realização da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fora criado o Setor Pastoral da Mobilidade Humana, abrangendo as Pastorais de Refugiados, Migrantes, Nômades, Marítimos, Turismo, Pescadores e Estrada/Rodoviária. (MILESI, 2007).
Com o intento de fomentar a constituição de novos projetos e incentivar as atividades já desempenhadas pelas Igrejas em relação ao mais amplo sentido de Mobilidade Humana, o setor realiza conferências, congressos e estudos, dando maior visibilidade à situação problemática em que o Brasil se encontra no momento.
Em parceria com O Alto Comissariado das Nações Unidas (ACNUR), a associação encontrou a possibilidade de organizar e formar uma rede de cooperação, a Rede Solidária para Migrantes e Refugiados, onde as parcerias firmadas, através do mútuo apoio e intercâmbio de informações e pesquisas, visam assegurar a proteção, dignidade e exercício de plena cidadania pelos migrantes.
Presente em todos os Estados do território nacional, a rede conta com cerca de 45 instituições parceiras (90% delas vinculadas à Igreja Católica), todas dotadas de autonomia, estrutura, objetivos e formas de atuação próprias, apenas sendo lideradas pela IMDH e apoiadas pelo ACNUR. (MILESI, 2007).
Depreende-se, assim, a dimensão do Instituto Migrações e Direitos Humanos, bem como a sua importância em termos de garantia dos Direitos Humanos e inclusão social, suprindo o papel que o Estado deveria desempenhar.
Entretanto, não incumbe somente à instituição brasiliense preencher a omissão e o descaso da administração pública brasileira. A Cáritas Brasileira desempenha papel importante no âmbito dos deslocamentos, embora esse não seja seu único objetivo e missão.
Pertencente à Rede Cáritas Internacional, a Cáritas Brasileira foi fundada em 1956 e atualmente conta com 178 entidades membros e mais de 15 mil agentes (Cáritas, 2015). Objetivando a construção de uma sociedade mais igualitária, auxiliando no acesso das camadas sociais mais vulneráveis aos seus direitos mínimos, a entidade realiza trabalho de imensurável apreço junto aos migrantes.
Focando seus projetos ao grupo dos Refugiados, a Rede possui o Centro de Acolhida de Refugiados, com sede na Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro e na Cáritas Arquidiocesana de São Paulo (Cáritas, 2015). Além de possuir o apoio do ACNUR, conta com parceria do Ministério da Justiça, realizando programas de acolhimento, proteção legal e integração local dos imigrantes.
Por fim, salientando que entidades de apoio à migrantes não são exclusividade da região Sudeste e Centro do Brasil, cumpre voltar a referir a Pastoral do Migrante e o seu papel no acolhimento dos imigrantes senegaleses em Rio Grande, cidade do sul do estado do Rio Grande do Sul, atividade que vem sendo acompanhada de perto pelo Grupo de Políticas Migratórias e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas (GREMIGRA).
Coordenada pela Ir. Ariete D’Agostini, a entidade é igualmente vinculada à Igreja Católica e preza pela defesa e garantia dos direitos fundamentais dos senegaleses deslocados para o Brasil, encontrando-se fora de sua cultura e costumes, em busca de melhor qualidade de vida, tendo em vista as oportunidades de emprego ofertadas na região, que são abundantes se comparadas ao seu país de origem.
As atividades desenvolvidas pela instituição, que vão desde a acolhida direta até a ajuda no encaminhamento de documentação perante os órgãos competentes para regularização migratória, passando, inclusive, por aulas de língua portuguesa, disponibilizadas gratuitamente, têm papel fundamental na incorporação social desse grupo, impedindo que ocupem posição à margem da sociedade e garantindo o exercício pleno de seus direitos.
Porém, mesmo diante de sólidas barreiras, como de ordem financeira e baixo número de colaboradores, a Pastoral do Migrante em Rio Grande realiza trabalho de suma importância para com a comunidade de senegaleses, muitas vezes auxiliando na proteção de seus direitos mais fundamentais, como a busca por emprego formal, inserção social e cultural e alojamentos de baixo custo.
Durante as entrevistas realizadas pelo grupo de pesquisa, verificou-se que a totalidade dos imigrantes senegaleses em Rio Grande que foram entrevistados era muçulmana. Percebeu-se, ainda, o respeito para com a religião destes e, embora não professando a fé católica, os imigrantes possuem grande apreço e vínculo de amizade e afeto com os membros da Pastoral.
Por fim, diante das reflexões ora propostas, observa-se que o descaso do poder público é evidente quando se trata de políticas públicas nas questões migratórias.
Perante a atual situação a igreja assume o papel do Estado, amenizando as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes que se deslocam de uma localidade na qual estão inseridos culturalmente e partindo em busca de uma vida nova, com inúmeros desafios e barreiras, tais como, a linguística, a exclusão social e, novamente, a escassez de políticas públicas que sirvam para a sua real integração social.
Assim, a participação da Igreja Católica se mostra fundamental na promoção de direitos e na redução das desigualdades, construindo uma sociedade mais justa e igualitária, embora cumprindo papel que não seja originariamente seu, e sim do Estado.
Referências
BAUMANN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Jorge Zahar Editor, 2001.
BOLZAN DE MORAIS. José Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
CÁRITAS. Centro de Acolhida a Refugiados. 2014. Disponível em <http://caritas.org.br/projetos/programas-caritas/refugiados>. Acessado em: 15 de abril de 2015.
IMDH. O IMDH. 2014. Disponível em <http://www.migrante.org.br/migrante/index.php?option=com_content&view=article&id=110&Itemid=1197>. Acessado em: 15 de abril de 2015.
_____Histórico do IMDH. 2014. Disponível em
<http://www.migrante.org.br/migrante/index.php?option=com_content&view=article&id=111&Itemid=1196>. Acessado em: 15 de abril de 2015.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Saraiva : 11ed. 2011.
MILESI, Ir. Rosita. A atuação Pastoral junto aos Refugiados no Brasil, Brasília, DF. 15 de março de 2007.
[1] Advogado inscrito na OAB/RS nº 106150. Pós-graduado em Direito Internacional pela Universidade Estácio de Sá.
[2] Advogada inscrita na OAB/RS nº 113608. Graduada pela Universidade Católica de Pelotas.