ENSINO DE HISTÓRIA DOS ANOS INICIAIS E A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR: A FALSA IDEIA DE HARMONIA ENTRE OS POVOS*
Luana Maciel do Nascimento**
RESUMO
O presente artigo faz uma análise documental da terceira versão da BNCC, com foco no ensino de História dos anos iniciais, sendo fruto da disciplina de Construção do Conhecimento em História. Teço reflexões a respeito dos conteúdos relacionados às diferentes culturas presentes no território brasileiro. Em um cenário neoliberal, que tem respondido à lógica do Mercado e no cerne do impeachment, concluo que a terceira versão da BNCC é Eurocêntrica, hegemônica e homogeneizadora, o que pouco contribui para a superação de estereótipos e melhoria da Educação.
Palavras-chave: Base Nacional Comum Curricular, História, Ensino, Pluralidade Cultural.
ABSTRACT
That article does a documentary analysis of the third version of the Common National Curricular Basis (BNCC), focusing on the teaching of History in the early years. I make reflections about the different cultures present in the Brazilian territory. In a neoliberal scenario, which has responds to the logic of the market and at the heart of impeachment, I conclude that the third version of BNCC is Eurocentric, hegemonic and homogenizing, which does little helps to overcome stereotypes and improve education.
Keywords: National Common Curriculum Base; History; Teaching; Cultural Plurality.
RESUMEN
El presente artículo hace una análisis documental de la tercera versión de la Base Nacional Común Curricular (BNCC), con foco en la enseñanza de Historia de los años iniciales. Tejo reflexiones acerca de las diferentes culturas presentes en el territorio brasileño. En un escenario neoliberal, que ha respondido a la lógica del Mercado y en el centro del impeachment, concluyo que la tercera versión de la BNCC es Eurocéntrica, hegemónica y homogeneizadora, lo que poco contribuye a la superación de estereotipos y mejora de la Educación.
Palabras clave: Base Nacional Común Curricular; Historia; Enseñanza; Pluralidad Cultural.
A educação escolar é um campo de disputas que vem sofrendo influências da classe dominante, que historicamente lidera importantes cargos na conjuntura política brasileira. O ensino de História desde a invenção do Brasil sofreu mudanças de acordo com o ideal de seus dirigentes, correspondendo a diferentes métodos e abrangendo conteúdos distintos.
Vivenciamos nos últimos anos mudanças expressivas no campo político, principalmente o impeachment da presidenta que, eleita democraticamente, desempenhava seu segundo mandato, sendo o quarto mandato consecutivo no qual Partido dos Trabalhadores (PT) estava no poder. Essa mudança impactou diretamente a composição do Ministério da Educação (MEC), Conselho Nacional da Educação (CNE), dentre outros órgãos ligados à educação.
Dentro disso esse trabalho se propõe a analisar o ensino de História dos anos iniciais (1º ao 5º ano) expresso na terceira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), publicada em abril de 2017. A Base foi homologada em 20 de dezembro de 2017 pelo MEC, após terem sido realizadas cinco audiências públicas (uma em cada região do país).
Sabemos que a Educação não é “um fenômeno neutro, mas sofre os efeitos do jogo de poder, por estar envolvida na política” (ARANHA, 2006, p. 24), dentro disso, Bittencourt (2015) aponta que, ao longo da trajetória da educação brasileira, existiram diferentes enfoques no ensino de história.
A partir da década de 1980, com as reformas curriculares, marcadas pelas lutas de grupos minoritários, traz consigo, expressa nos Parâmetros Curriculares Nacionais, a concepção da diversidade identitária existente no Brasil, sendo assim, além da cultura europeia, devem-se estudar a cultura das sociedades indígenas e dos povos africanos (BITTENCOURT, 2015, p. 114)
A pluralidade cultual presente no Brasil foi enfatizada, principalmente, nas Leis 10.639/03 e 11.645/08, que tratam da obrigatoriedade do ensino da História da África e da Cultura Brasileira; e da história e cultura afro-brasileira e indígena, respectivamente, no Ensino Fundamental e Médio de todas as escolas públicas e privadas do território brasileiro.
Dentro disso, é perceptível que os conteúdos presentes nas propostas curriculares carregavam até o final do século passado uma ideologia homogênea de sociedade, subalternizando grupos que não correspondessem ao padrão cultural do “homem heterossexual, branco, patriarcal, cristão, militar, capitalista e europeu” (GROSFOGUEL, 2009, apud SILVA JÚNIOR & SOUSA, p, 77).
Com relação à BNCC, diferentes documentos oficiais relacionados à Educação fizeram menção a um currículo comum nacional, são eles: o Artigo 210 da Constituição Federal (CF, 1988); o Inciso IV, do Artigo 9º da Lei de Diretrizes e Bases (LDB, 1996); as Diretrizes Curriculares Nacional (DCN, 2010); a meta 7.1 do Plano Nacional de Educação (PNE, 2014), que estabelece como estratégia de elevação do Índice de Desenvolvimento da Educação (IDEB) a elaboração de uma base comum curricular.
Em dezembro de 2017 foi encaminhado pelo CNE o parecer e o projeto de resolução da Base para o MEC, o qual realizou sua homologação e instituiu a BNCC como norma da educação brasileira. A terceira versão da Base foi publicada em abril de 2017, sob a qual foram realizadas cinco audiências públicas de caráter consultivo (uma em cada região do país) entre julho e setembro de 2017.
Entre 2013 (início da elaboração da Base) e 2017 (publicação da terceira versão da BNCC) as cadeiras do CNE sofreram expressivas mudanças, principalmente por conta do impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef (Partido dos Trabalhadores – PT) e sua substituição pelo atual presidente Michel Temer (Partido da Social Democracia Brasileira – PMDB). Esse processo caracterizado como um golpe à democracia brasileira impactou diretamente a elaboração da Base, tanto na forma, quanto no conteúdo.
A terceira versão da BNCC possui 392 páginas e é dividida nas seguintes sessões: Apresentação; Introdução (princípios, tramites legais e as dez competências gerais); Estrutura da BNCC (definições dos códigos); Etapa da Educação Infantil (direitos de aprendizagem, campos de experiência e objetivos de aprendizagem); Etapa do Ensino Fundamental (competências específicas por disciplinas e áreas de conhecimento); Ficha técnica. Ela encontra-se disponível no Portal do MEC, com um site específico denominada Base Nacional Comum[1], que conta com informações complementares, como versões anteriores, o processo de construção da Base, perguntas frequentes, dentre outras informações.
Tratando-se da Educação Básica, vale refletir a respeito da ausência do Ensino Médio, já que em sua primeira versão, por apresentar um caráter tecnicista, similar ao adotado no Regime Militar, foi popularmente rejeitada.
A Base anseia “ajudar a superar a fragmentação das políticas educacionais, ensejar o fortalecimento do regime de colaboração entre as três esferas de governo e ser balizadora da qualidade da educação” (MEC, 2017, p. 8). Sendo assim, ela não toma características de um currículo, mas define competências e habilidades a serem adquiridas pelas/os estudantes, por meio de conteúdos básicos, que, por sua vez, assumem funções de intermediação, sendo as competências e habilidades os objetivos finais da aprendizagem.
Os conteúdos definidos na Base devem representar 60% (sessenta por cento) dos conteúdos curriculares, no entanto, nas avaliações externas, que seguirão as diretrizes da Base, darão ênfase aos conteúdos gerais. Portanto, apesar da flexibilidade oferecida pelo documento, a maior parte das escolas se aterão em ensinar apenas os conteúdos cobrados pelas avaliações externas que, historicamente, impactam diretamente o currículo, como enfatizado pela Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (Anped) e a Associação Brasileira de Currículo (ABdC) em ofício de novembro de 2015 encaminhado ao CNE:
O atrelamento da BNCC as avaliações externas, bem como seu caráter prescritivo fortalecem instâncias de controle do trabalho docente com a adoção de um modelo de gestão de inspiração abertamente empresarial, não-participativo, que concentra poderes nas mãos dos diretores e autoridades externas as escolas, tanto na gestão administrativa quanto pedagógica (ANPED; ABDC, 2015, p. 5)
A Base também possui “caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica” (MEC, 2017, p. 7). É possível identificar características Neoliberais, controladoras e homogeneizadoras, no qual o Estado se atém a elaborar documentos e manuais de implementações para a Educação Básica, em um processo dito democrático, que carrega consigo ideologias da classe dominante.
A respeito da homogeneização implícita na Base, Macedo (2015, p. 904), com base em Sais (1978) e Bhabha (2003), declara que “já há muito a literatura pós-colonial vem destacando que esse ‘um’ foi erigido sobre a redução da diferença à diversidade que classifica, assimila e exclui”.
Sendo a Educação um campo de disputa, atingido diretamente pela lógica Capitalista e pela onda de privatizações diretas e indiretas, atualmente ela tem sido influenciada por métodos empresariais de acompanhamento, com estabelecimentos de metas, que incentivam a competição e exige produtividade (FRIGOTTO, 1995, apud ARCE, 2001, p. 255).
No que tange à área de Ciências Humanas, que abrange o ensino de História e de Geografia, o documento apresenta sete competências específicas, dentre elas, reconhecer diferentes identidades, analisar os impactos das intervenções do ser humano e comparar acontecimentos. A Base destaca que essa área deve propiciar a interpretação do mundo, a compreensão de “processos e fenômenos sociais, políticos e culturais e de atuar de forma ética, responsável e autônoma diante de fenômenos sociais e naturais” (MEC, 2017, p. 308).
Com relação ao ensino de História no Ensino Fundamental, a Base estabelece nove competências específicas, dentre elas, organizar cronologicamente acontecimentos históricos, analisar documentos e problematizar os conceitos historiográficos. Para os anos iniciais o documento enfatiza, sobretudo, a construção da identidade da/o estudante, dentro disso apresenta 13 Unidades Temáticas, contendo 33 Objetos de Conhecimento e integrando 53 Habilidades, que estão distribuídas entre o 1º e o 5º ano do Ensino Fundamental.
Com relação aos conteúdos a serem trabalhados, apesar de estarem em consonância às Leis 10.639/03 e 11.645/08, elencando a abordagem da história dos povos indígenas e africanos, ainda apresentam a cronologia dos acontecimentos da Europa, partindo de uma visão eurocêntrica. A Base também não deixa clara a pluralidade existente até mesmo no interior das populações indígenas, o que contribui para uma visão folclórica e unificadora desses povos, não dando ênfase à sua existência e às mudanças culturais vividas desde o século XVI.
De acordo com Martins (2009, p. 166), a escola pode contribuir para a desconstrução dos estereótipos que existem em torno desses povos. Podendo, assim, “ajudar a firmar a ideia da diferença, que nos faz, nem melhores, nem piores, mas únicos e particulares, e aptos a compreender que histórias particulares fazem parte da história coletiva”. Infelizmente a Base pouco, ou em nada, contribui para esse ideal.
Vale destacar que com a linearidade presente na organização dos conteúdos, o ensino de História fornece uma falsa percepção de que a humanidade está constantemente caminhando para o progresso e evolução, quando vivemos em um cenário marcado por retrocessos e contradições.
Os termos utilizados na Base, assim como em todos os documentos que regem a Educação e a sociedade brasileira como um todo, generaliza a pessoa para o masculino, o que reflete a sociedade patriarcal e machista na qual vivemos. Tal posicionamento não contribui para a superação da visão que historicamente inferioriza a mulher e todas as pessoas que não se enquadram no perfil tido como “padrão” e “normal”.
No que diz respeito aos diferentes grupos, o documento refere-se apenas ao termo étnico, não utilizando a nomenclatura de raça que, apesar de o reconhecemos como fictício, o conceito de raça traz consigo uma história repleta de lutas, disputas e conflitos, pelo qual, desde o século XIX, os povos indígenas e africanos foram inferiorizados com a adoção de tal conceito. A esse respeito Silva Junior & Sousa (2016, pp. 41-42), ao defenderem a manutenção do conceito de raça reafirmam que ela “tem relação com o poder, uma vez que provoca efeitos no imaginário social e na produção das identidades”. É importante destacar que a utilização do termo étnico-racial representa uma maneira de não esquecimento da história, o que impede a falsa ideia de que, apesar das diferenças existentes no território brasileiro, somos todos iguais.
Com relação às propostas metodológicas, o documento sugere trabalhar do que está próximo para o mais distante, utilizando uma abordagem diferente dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em um formato de círculos concêntricos ao invés do trabalho a partir de Eixos Temáticos. Tal organização de conteúdos pode construir conhecimentos desconexos e acríticos, o que dificulta uma formação política, significativa e autônoma, capaz de contribuir para a melhoria da vida dos diferentes grupos existentes no território brasileiro.
A BNCC, assim como os demais documentos normativos do MEC, denunciam as avaliações externas, que direta e indiretamente impactam o currículo real. Sendo assim, a proposta de avaliação desse documento está ligada intrinsecamente com os ideais Capitalistas e Neoliberais, submetendo a Educação aos interesses do Mercado, objetivando a formação de mão de obra.
Por fim, apesar de destacar a presença da cultura dos povos indígenas, africanos e quilombolas no território brasileiro, há uma tentativa de se fazer esquecer toda luta desses povos e conflitos do passado e da atualidade, fundamentando-se em um discurso pluralista e multicultural. Tal abordagem não contribui para a superação de preconceitos e visões etnocêntricas, que dificultam a construção da identidade afro-brasileira, Walimanai, Tikmu’un, Borum, Mebêngôkre, dentre outras identidades de povos que sobrevivem, subsistem e resistem dentro de um cenário excludente, eurocêntrico e padronizador.
Esse trabalho buscou analisar os componentes curriculares dos anos iniciais da disciplina de História elencados na terceira versão da Base Nacional Comum Curricular, publicada em abril desse ano. Busquei destacar que a Base lida de maneira superficial no que tange às diferentes culturas presentes no Brasil, imprimindo um ideal homogeneizador, com a tentativa de redução das pessoas ao um da nação.
Percebo um retrocesso no ensino de História, que reforça o eurocentrismo e a organização cronológica dos conteúdos, além do engessamento da escola. Alicerçada em ideais Neoliberais, a Educação brasileira encontra-se rendida à lógica do capital e a um Estado Avaliador que imprime métodos de controle mercadológicos e rende o ensino escolar às avaliações externas, que estão vinculadas aos programas de financiamento (OLIVEIRA & CYPRIANO, 2014).
Vale refletir a respeito do real propósito e legitimidade da construção de uma base curricular nacional dentro de um cenário marcado pelo impeachment de uma presidenta eleita democraticamente e substituída por um presidente que, no geral, tem proposto e aprovado leis impopulares, que contribuem para a manutenção das desigualdades e injustiças sociais.
Questiono a respeito do potencial de uma Base Nacional Comum Curricular na melhoria do ensino, garantia da igualdade e da justiça, em um cenário no qual a escola pública enfrenta restrições e cortes orçamentários expressivos, impulsionados pela Emenda Constitucional nº 45 de 2016, que congela o investimento público na Educação e Saúde pelos próximos 20 anos. Acredito que a BNCC só fará sentido quando realmente for construída coletivamente, evidenciando as singularidades de cada grupo étnico-racial.
REFERÊNCIAS
ARANHA, Maria de Arruda Aranha. História e história da educação. In.: História da educação e da Pedagogia Geral e Brasil. São Paulo: Moderna, 2006.
ARCE, Alessandra. Compre o kit neoliberal para a educação infantil e ganhe grátis os dez passos para se tornar um professor reflexivo. Educ. Soc., vol.22, n.74, p. 251-283, 2001.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO; ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CURRÍCULO. Ofício n.º 01/2015/GR. Exposição de Motivos sobre a Base Nacional Comum Curricular. 2015. Disponível em: <http://www.anped.org.br/sites/default/files/resources/Of_cio_01_2015_CNE_BNCC.pdf>. Acessado em: 25 12 2017.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF, 2017.
BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo, Cortez, 2004.
MACEDO, Elizabeth. Base nacional comum para currículos: direitos de aprendizagem e desenvolvimento para quem?. Edu. Soc, v. 39, n. 133, p. 891-908, out.-dez., 2015.
MARTINS, Maria Cristina Bohn. As sociedades indígenas, a história e a escola. Antítese, vol 2, n. 3, jan-jun, p. 153-167, 2009.
OLIVEIRA, Elisangela dos Santos de; CYPRIANO, Alessandra Martins Constantino. O planejamento educacional no Brasil nos séculos XX e XXI: aspectos históricos. IV Congresso Ibero-Americano, 2014.
SILVA Junior, Astrogildo Fernandes da; SOUSA, José Josberto Montenegro. O ensino de história e a educação para relações étnico-raciais: diálogos com os estudos descoloniais. Revista Grifos, n. 41, p. 57-80, 2016.
Como citar esse artigo:
NASCIMENTO, Luana Maciel do. Ensino de História dos anos iniciais e a Base Nacional Comum Curricular: A falsa ideia de harmonia entre os povos. Revista P@rtes. São Paulo, ano.
* Esse trabalho é fruto das discussões realizadas ao longo da disciplina de Construção do Conhecimento em História, ministrada pelo Dr. Astrogildo Fernandes da Silva Junior, do curso de Pedagogia, da FACIP/UFU.
** Luana Maciel do Nascimento. Discente em Pedagogia pela Faculdade de Ciências Integradas do Pontal (FACIP/UFU). E-mail: luana.maciel@ufu.br
[1] Documento completo disponível em: < http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/linha-do-tempo-2017-dezembro/BNCCpublicacao.pdf >. Visto em: 25/12/2017.