ENTRE MUNDOS
Margarete Hülsendeger
How many roads must a man walk down.
Before you can call him a man?
Yes, and how many seas must a white dove sail
Before she sleeps in the sand?
Yes, and how many times must cannonballs fly
Before they’re forever banned?
The answer, my friend, is blowin’ in the wind
The answer is blowin’ in the wind[1]
Bob Dylan
Faz parte da natureza de um prêmio estar mergulhado em polêmicas: há os que aprovam, os que reprovam, os que aplaudem, os que se enfurecem, mas poucos conseguem ficar indiferentes. Esse carrossel de emoções está muito presente quando se trata, por exemplo, do Prêmio Nobel. Apesar de nas escolhas dos agraciados existir componentes das mais diferentes ordens (social, econômico, político e até de influências completamente desconhecidas dos leigos), muitas vezes, os integrantes das comissões julgadoras conseguem acertar. Esse foi o caso da escolha de Bob Dylan, em 2016, para o Nobel de Literatura.
Mesmo que muitas pessoas não tenham compreendido porque um músico norte-americano, neto de imigrantes judeus russos, tenha recebido essa honraria, o fato é que a Academia estava dando um recado: o conceito de literatura deve se ampliar, não podendo permanecer fechado à ideia de que apenas quem escreve livros merece ser chamado de escritor. Qual a diferença entre os poemas de Pablo Neruda, ganhador do Nobel de Literatura em 1971, e Bob Dylan? O primeiro escrevia poesia, sem o ritmo da música, enquanto Dylan impregnou seus poemas com os ritmos do folk, demonstrando a possibilidade de existir novas formas de expressão poética no quadro da tradição da música americana.
Em 2017, no entanto, o Nobel de Literatura voltou as mãos de um escritor “tradicional”: o nipo-britânico Kazuo Ishiguro. Confesso que, até a premiação, não conhecia o autor e, consequentemente, nunca havia lido nenhum livro dele. Contudo, as palavras da comissão julgadora do Nobel, elogiando a grande força emocional de seus romances – capazes de revelar o “abismo sobre o nosso ilusório sentido de conexão com o mundo” – chamaram minha atenção, levando-me a buscar obras de sua autoria.
O primeiro livro que chegou as minhas mãos chama-se The buried gigant (2015). No Brasil ele recebeu o nome de O gigante enterrado e foi, posso dizer, uma surpresa. Trata-se de uma história passada em uma época posterior ao reinado do legendário rei Artur, onde uma dragão fêmea (ou dragonesa) está provocando uma espécie de amnésia coletiva. Nessa história fantástica, encontraremos como protagonistas um casal de idosos que saem à procura de um filho que não veem há muito tempo. Na sua jornada encontram um antigo cavaleiro da Távola Redonda, um guerreiro saxão e um menino supostamente mordido por um demônio.
O leitor, assim como os personagens do romance, também fica imerso nessa neblina fantasmagórica resultante da respiração do dragão. O mistério que se tece em torno da narrativa vai sendo revelado aos poucos, com pequenas informações que o autor deixa escapar, mas que só ficarão completas quando o quebra-cabeça estiver concluído. Os personagens estão inter-relacionados de alguma forma e a ação ocorre sempre no sentido de superar o esquecimento no qual todos estão mergulhados.
Não se engane, O gigante enterrado, não é uma releitura dos Senhor dos Anéis, é algo completamente diferente. O tema central é o esquecimento ou a falta da memória, não só dos pequenos acontecimentos do dia-a-dia, mas dos grandes eventos que podem marcar todo um povo. Os protagonistas desse romance descobrirão em primeira mão que, muitas vezes, o preço por lembrar é muito mais alto do que o de esquecer.
Never let me go (2005) – no Brasil recebeu o título de Não me abandone jamais – foi o segundo livro de Kazuo Ishiguro que li e o que mais me impactou. A história é narrada em primeira pessoa, a partir do ponto de vista de uma mulher chamada Kathy H. que durante sua infância e adolescência viveu em uma escola no interior da Inglaterra chamada Hailsham. No decorrer da narrativa o leitor vai sendo apresentado a outros personagens, residentes nessa mesma escola, e aos poucos dá-se conta de que existe nessa história muito mais do que está sendo contado por Kathy. Como ocorre em O gigante enterrado, as informações vão sendo entregues aos poucos, dando tempo para que o leitor se acostume, não só aos personagens, mas a sua dinâmica dentro do romance.
Em determinados momentos a névoa se levanta e é possível ver além da narrativa ingênua de Kathy. Hailsham não é uma escola qualquer, nela os alunos são estimulados a desenvolver seus dotes artísticos como pintar, esculpir e escrever poesias. Os melhores trabalhos são recolhidos por uma personagem misteriosa chamada “Madame” e levados para uma suposta galeria. Quando atingem a idade de 18 anos todos são transferidos a outras instalações, mais precárias e primitivas, onde esperam suas designações como “cuidadores” e, posteriormente, como “doadores”. Se você está pensando em clonagem, você está absolutamente certo. No entanto, mais do que falar sobre clones, Não me abandones jamais, fala da natureza humana, uma natureza que está presente mesmo naqueles que foram criados apenas para servir como gado. Os clones de Kazuo Ishiguro têm alma e isso fica “provado” nas obras de arte produzidas e recolhidas mensalmente pela “Madame”.
No que esse livro se diferencia de outros romances que tratam do mesmo tema? A meu juízo, pela aparente banalização com que o autor trata o assunto. Toda a situação é aceita pelos personagens como parte normal de suas vidas, não há questionamentos ou qualquer tipo de revolta para com o futuro que os espera. É dado a entender que nunca é revelado tudo aos clones, mas quando a revelação ocorre e percebem que não há maneira de fugir ao seu destino, pois, nada, realmente, muda; tudo segue para o seu fim inevitável, “concluir”, ou seja, deixar de existir.
Kazuo Ishiguro nasceu dia 08 de novembro de 1954, na cidade japonesa de Nagasaki. Para quem esse nome não lembra nada, quero informar que se trata da cidade onde, no dia 08 de agosto de 1945, foi lançada uma das duas únicas bombas atômicas utilizadas em guerra; a primeira foi dois dias antes, em Hiroshima. Portanto, um local trágico, no qual milhares de vidas pereceram em questão de minutos e muitas das que sobreviveram vieram a morrer mais tarde pelos efeitos da radiação. Essa informação parece deslocada quando se está falando de ficção, mas se pensarmos que Ishiguro viveu com um pé na cultura japonesa e outra na inglesa, perceberemos que esses dois romances podem ser uma metáfora não só dessa grande tragédia, mas também da visão de mundo do povo japonês.
Em O gigante enterrado há uma neblina encobrindo o passado de um povo, gerada pela respiração de um dragão que faz as pessoas esquecerem que em algum momento um governante ordenou a morte de milhares de homens, mulheres e crianças. Essa névoa, causa do esquecimento, só se levantaria se o dragão fosse morto o que necessariamente não significa a punição daqueles que deram a ordem. Já em Não me abandones jamais o autor traz à tona a questão da clonagem, da indiferença diante do assassinato consentido, mas principalmente da inevitabilidade do destino. Quando a personagem Kathy H conta sua história não se percebe qualquer tipo de reação. Ao contrário. Ela acredita que independentemente do que o futuro lhe reserva o “trabalho” deve ser feito da melhor maneira possível: crescer, tornar-se “cuidador”, depois “doador” e, finalmente, “concluir”, em silêncio e aceitando o que lhe foi destinado.
Para entender melhor essas duas histórias só há um caminho: lê-las. É o que eu sempre recomendo, pois, uma leitura nunca é igual a outra e, como consequência, as interpretações são sempre diferentes. Talvez, você encontre por debaixo dessas duas narrativas muito mais do que eu encontrei. Talvez o estilo de Kazuo Ishiguro não lhe agrade como a mim me agradou. Mas você só vai saber se tudo isso é verdade ou mentira se abrir o livro e começar a ler. Levante a névoa, vença o gigante, mate o dragão, leia!
[1] “Quantas estradas um homem precisará andar/ Até que possam chamá-lo de homem?/ Sim, e quantos mares uma pomba branca precisará sobrevoar/Até que ela possa dormir na areia?/Sim, e quantas balas de canhão precisarão voar/Até serem para sempre banidas?”
A resposta, meu amigo, está soprando ao vento/A resposta está soprando ao vento” (Trecho da música Blowin’ in the win)
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