A leitura da criança: um ato compartilhado entre famílias e escolas
Roberta Poltronieri
A aquisição da leitura bem como o ato de ler constitui um processo fundamental na vida de crianças, jovens e adultos. Em diversas pesquisas que focalizam o processo de leitura na escola, consta-se envolvida a dimensão social que estende-se pela vida da criança. Entre as dimensões que fazem parte dos processos pedagógicos educativos figuram famílias e escolas como interlocutoras destes processos em desenvolvimento, as quais, significados e sentimentos com relação a leitura e escrita permanecem em troca constante. A família, núcleo inicial de toda criança e eixo da socialização primária, constitui local em que as primeiras leituras do mundo começam a ser feitas pela criança ainda bebê.
É importante compreender que a leitura não se restringe somente a um local como a família ou escola. Apesar da criança iniciar seus primeiros processos de interação com o mundo na família, sua integração com os estímulos do mundo social a possibilita, desde cedo, a interpretação do mundo ao seu redor. Desse modo, quando inicia seu processo de escolarização, carrega consigo experiências sobre suas interações por meio da fala, da observação, brincadeiras, conversas e situações no mundo coletivo. Nesse sentido, cabe ainda, revalidar a noção de leitura enquanto prática social conforme analisa Kleiman (2005) que faz referência ao Letramento como inerente a criança tanto dentro como fora da escola. Letramento não é um método nem tampouco sinônimo de alfabetização ou etapas que algumas crianças chegam e outras não. Letramento é leitura social das crianças sobre a dimensão do mundo que as circundam, os sentidos que atribuem a informações constantes na sociedade que assim a fazem mesmo antes de tornarem-se leitoras autônomas (KLEIMAN, 2005).
No entanto, as instituições sociais envolvidas com o ato de ler como a família e escola tornam-se interlocutoras da leitura que a criança faz de si e do mundo. Mesmo não havendo consenso das variáveis que envolvem o quanto cada família participa deste ato em desenvolvimento ou já desenvolvido, sabe-se que é dentro das famílias, primeiramente, que a influência e o gosto pela leitura podem ser construídos.
Com a entrada nas primeiras séries do Ensino Fundamental e a inserção da criança na leitura autônoma, o ato de ler adquire na família uma possível continuidade da escola. Neste caso, a variável da família interfere de forma considerável no sentido de influenciar a leitura de forma indireta e direta. Dessa forma, diante das contribuições de Bourdieu (2002) a família pode cultivar a leitura na vida de crianças e seus membros como herança cultural herdada por meio do que Bourdieu chamou de Capital Cultural. Nesta variação de interações, o ato de ler, não pode ser considerado como totalmente invisível, porém, desenvolvido em diferentes proporções pelos membros que compõem uma mesma família. O que será determinante para o ato de ler fora da escola tornar-se um comportamento estranho ou natural.
Compreende-se família como espaço em que ocorre a reprodução humana de novas gerações e vínculos de descendência e afinidade, (DURHAM, 1983). Sendo também, reflexo da construção cultural da sociedade em que permanece. Os membros que integram uma mesma família estabelecem relações mútuas com seus membros e o mundo social, de forma a modificar ou atualizar-se constantemente, conforme seus membros levam para dentro da família novas concepções e incorporações de suas experiências.
Nas últimas décadas a reestruturação da vida urbana nos grandes centros norteada pelo acirramento do capitalismo e o mundo do trabalho, formas diversas de relacionamento entre famílias e escolas passaram a ser observadas. Tem-se percebido conforme afirma Terrail (1997, p.68) uma certa “imbricação de territórios” em que a delimitação exata do território da família e da escola não exista. Para Montandon (2001) “A criança constituiu e continua a constituir um duplo investimento para a família, instrumental e afetivo, e ambas as dimensões mantêm a sua importância ainda que tenham sofrido algumas transformações” (p. 15).
Famílias e escolas constam atualmente como duas instituições interdependentes que relacionam-se de formas variáveis a depender do meio social proveniente. Se antigamente a frequência da família era notada apenas na reunião de pais pelos pais (pai, mãe ou ambos) para examinar notas nos boletins, hoje, a frequência tem diversificação maior com relação as parentelas que comparecem a reuniões. As políticas públicas integraram na gestão democrática a participação dos pais na escola, não somente em momento de reuniões dos filhos, mas a exercer participação, inclusive, nas decisões do colegiado escolar.
Concomitantemente, a dimensão econômica que envolve a vida das famílias influenciará nesta participação na medida em que horários e critérios de importância do comparecimento a escola faça sentido. O que levanta outra questão a ser discutida sobre a cultura de participação das famílias na escola como ato construído. Nesse sentido, Nogueira (2006) assinala que não há mais fronteiras delimitadas em relação a família e escola como em décadas anteriores. E, sim, a interferência das ações escolares na família e na escola, por sua vez, a participação da família em questões que antes delimitavam como funções apenas da escola.
Ambas as instituições estão envolvidas com o ato de ler, entretanto, alguns pesquisadores notaram que em algumas práticas ainda tende a prevalecer a lógica da escola (MONTANDON; PERRENOUD, 2001). O que acaba por reverenciar a razão única da escola em uma relação que supostamente deveria permanecer como colaborativa. Nesse ponto, para o desenvolvimento da leitura, atividade que permeia a trajetória de crianças, posteriormente jovens, em toda sua trajetória escolar, ainda é duvidosa a afirmação de que ambas as instituições (família e escola) possam relacionar-se em situação harmoniosa e horizontal. Esta é uma relação que muitas vezes pode ser tensa, marcada por momentos de vigilância e constante avaliações. Entre os limites e formas dessa interação é que Perrenoud (1995) denominou a criança nesta interação como go-between ou “a criança mensageira e a mensagem”. Considerando que as práticas que envolvem a relação família-escola é também executada pela criança (estudante) subjetivamente.
Para além do espaço escola, quando a leitura está envolvida com as “tarefas” de casa ou “deveres” de casa como lições que estende-se ao ambiente doméstico, aspectos e ponderações devem ser relembrados como a relação com a escolarização da criança que as famílias estabelecem. A ajuda de um adulto para as lições e o grau de escolaridade dos pais (DIOGO, 1998; MONTANDON, 2001; GLASMAN, 2005), podem também influenciar neste processo na esfera doméstica. Da mesma forma, é importante pontuar o papel do professor no desenvolvimento das primeiras e fundantes práticas de leitura da criança. Se por um lado os processos de ensino e aprendizagem que envolvem a repetição de palavras e frases de forma mecânica, restritas ao livro didático engendram a leitura do aluno, por outra, o espaço para diversas leituras de textos que envolvem a vida social do contexto cultural da criança, o lúdico e a proximidade com a criança como cidadã possibilita a construção de uma leitura libertária e autônoma.
Neste processo de ler, a influencia pedagógica do professor influencia até mesmo nos processos posteriores que a criança vier a envolver-se pois, seu desenvolvimento, em parte, está marcado pelas práticas de leitura e escrita colocadas em cena durante sua formação. Assim, é possível afirmar que o espaço de aprendizagem que dê condições para criança vincular-se a leitura e escrita respeitando suas concepções de mundo e o letramento do mundo social tornam-se primordiais para o processo leitor autônomo da criança enquanto sujeito social.
Portanto, as vias de acesso ao ato compartilhado de ler envolve múltiplas e variáveis sociais que encontra-se imersa à criança, entre famílias, escolas e outras instituições sociais. Todavia, são nestas duas principais instâncias em que adultos da família e professores influenciam prática social do ato de ler. Ademais, é na sociedade de forma geral, que a criança passa a ocupar o lugar de sujeito leitor autônomo, transformar a si e a outras crianças ao mesmo tempo, em que seu processo histórico-social-cultural desenvolve-se permeando a família, escola e outras tantas relações que irão compor a transcendência que o ato de ler comporta no mundo social.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. Em NOGUEIRA, M. A. e CATANI, A. (orgs.) Escritos de Educação. 4ªed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
DIOGO, Ana Matias. Famílias e escolaridade. Lisboa: Colibri. 1998.
DURHAM, Eunice Ribeiro. “Família e reprodução humana”. In: DURHAM et al. Perspectivas antropológicas da mulher 3. R.J. Zahar, p. 13-44. 1983
GLASMAN, Dominique. Parents and children’s homework in France. In: DESLANDES, R. (Orgs). International perspectives on student outcomes and homework: fammily-school-community partnearship. Londres/Nova Youk: Routledge, p. 39-46. 2009.
KLEIMAN, Angela. Preciso “ensinar” o letramento? Não basta ler e escrever? Linguagem e letramento em foco. Campinas: Cefiel/IEL/Unicamp, 2005.
MONTANDON, Cléopâtre. “O desenvolvimento das relações família-escola”. In: MONTANDON, C., PERRENOUD, P. Entre pais e professores, um diálogo impossível? Oeiras: Celta, p.13-28. 2001.
MONTANDON, Cleoprâtre. PERRENOUD, Philippe. Entre pais e professores, um diálogo impossível? Oeiras: Celta. 2001.
NOGUEIRA, Maria Alice. Família e escola na contemporaneidade: os meandros de uma relação. Educação & Realidade. Vol.31, n2, jul-dez, p155-169. Porto Alegre. 2006.
PERRENOUD, Philippe – Entre a família e a escola, a criança mensageira e mensagem. In: PERRENOUD, Philippe – Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto Editora. Pág. 29-56. 1995.