QUANDO ESQUECER NÃO É UMA OPÇÃO
Margarete Hülsendeger
O Estado não tem rosto nem sentimentos, é opaco e perverso. Sua única fresta é a corrupção. Mas às vezes até essa se fecha por razões superiores. E então o Estado se torna maligno em dobro, pela crueldade e por ser inatingível. Isso ele sabia muito bem.
Bernardo Kucinski
Em carta escrita a Oscar Pollak, Franz Kafka diz: “Acho que só devemos ler a espécie de livros que nos ferem e trespassam. Se o livro que estamos lendo não nos acorda com uma pancada na cabeça, por que o estamos lendo?”. Essa declaração de Kafka pode ser considerada por algumas pessoas um pouco exagerada; afinal, muitas vezes, não estamos dispostos a receber pancadas, desejamos apenas nos desconectar, não querendo assumir riscos de nos afetarmos por palavras escritas em uma folha de papel. No entanto, essa escolha não diminui a verdade por trás da declaração do autor checo, já que existem livros que realmente nos fazem estremecer e nos obrigam a parar e a refletir sobre o que estamos lendo. Isso aconteceu comigo quando li K[1].
K é o título de um pequeno livro (apenas 176 páginas) cujo o tema principal poderia ser resumido como a busca de um pai por sua filha desaparecida durante a ditadura militar no Brasil. A letra que dá nome ao livro é a inicial do sobrenome no autor, Bernardo Kucinski. Por conta disso, a obra, sob muitos aspectos, é considerada um relato autobiográfico já que a filha desaparecida seria a irmã do autor. Contudo, essa informação se perde completamente quando o leitor mergulha na história; e eu digo que se perde porque é como se entrássemos em um túnel e nossa visão ficasse limitada as páginas de papel e ao sofrimento com o qual elas estão impregnadas.
Mais do que o relato de um pai desesperado em busca de uma filha que simplesmente desapareceu, K é o retrato de uma época na qual “as pessoas desapareciam sem deixar vestígios”, como se se volatilizassem. Um período negro da história brasileira para o qual não há justificativas ou explicações e que tentou ser apagado usando como desculpa a anistia dada a todos aqueles que nela estiveram envolvidos, civis e militares, torturados e torturadores. E o esforço de apagamento, ou silenciamento, em alguma medida deve ter dado resultado, já que há bem pouco tempo assistimos pela TV pessoas pedindo pela volta dos militares ao governo do Brasil.
Kucinski recria essa época a partir de uma narrativa que mescla diferentes vozes, que por sua vez nos trazem as diferentes versões dos envolvidos. Existe K, o pai, que descobre que a filha, uma professora de química na Universidade de São Paulo, mantém uma vida dupla, envolvida, junto com o marido, em atividades políticas clandestinas. Existe a amante do torturador, que procurada por uma mãe em busca de seu filho, não entende como “é que um homem assim, tão bom comigo, pode ser tão ruim com outros”. Há também Jesuína Gonzaga que quer uma licença médica porque não consegue dormir e sofre de alucinações, resultado de seu trabalho como faxineira quando fazia “uns serviços para o Fleury”, responsável pelo então chamado “esquadrão da morte”. E há, é claro, os torturadores sem nome envolvidos em um sem fim de mortes brutais, mas que se mostram preocupados, até afligidos, com o destino de uma cadela, única testemunha do sequestro de um casal, no caso a filha de K e o seu marido. E ainda há os jogos de gato e rato a que foram submetidos pais, mães, esposas, esposos, filhos e filhas em busca de seus entes queridos porque mesmo que as esperanças já não mais existam era preciso saber o que aconteceu, colocar um ponto final, conseguir um encerramento.
Todas essas histórias, e muitas outras, se misturam para formar um cenário de horror e brutalidade. Kucinski fala do silêncio, do medo e da alienação. O silêncio que caía sobre os desaparecidos, como uma pá de cal sobre um caixão, sem o benefício de uma lápide ou qualquer marca que indicasse onde eles haviam caído. O medo sempre presente daqueles que ficaram, medo de falar, medo de perguntar, medo de respirar. E a alienação porque, enquanto as celas e os porões estavam cheios de homens e mulheres de todas as idades e classes sociais, o restante da sociedade fingia que a vida continuava normal, com todos fazendo de conta que nada estava acontecendo.
K, apesar de curto, não é um livro para se ler em uma tarde, pelo menos para mim foi impossível. Precisei parar várias vezes, respirar profundamente, andar um pouco, descontrair os músculos que ficaram tensionados. K não foi um soco na cabeça foram vários, a cada página virada eu sentia como se a respiração me faltasse. Na minha mente, repetia que se tratava de ficção, não era real, mas, no fundo, eu sabia que tudo aquilo fora real, muito real. O que só me faz questionar a sanidade dessas pessoas que vão para as ruas pedir, ou melhor, clamar pela volta dos militares, como se naquela época tudo fosse melhor. Realmente, não consigo entender. Talvez, ao longo desses anos, tenha faltado mais livros como K, mais discussão do que aconteceu e porque aconteceu. Talvez, a necessidade do brasileiro de dar um “jeitinho” tenha sido o principal fator dessa ignorância que leva gente as ruas para pedir pela saída de uma presidenta eleita democraticamente e que considere com nostalgia os quase trinta anos da ditadura militar.
K é um livro para ler e refletir. Refletir sobre o que aconteceu e sobre o que pode ainda acontecer. Pensar na forma como lidamos com a história, com a nossa história, a que pessoas prestamos homenagens e a quais não prestamos. Homenagens que podem passar pela simples nomeação de uma rua e avenida que, segundo K, passa pelo problema de “quando o personagem é herói para uns e vilão para outros”. De qualquer maneira, tenho a convicção que a literatura, a boa literatura, é uma das formas de propiciar esse tipo de reflexão e a leitura de K definitivamente te obriga a pensar, pois ninguém consegue ficar indiferente ao soco na cabeça com o qual Bernardo Kucinski nos atinge. Se você não tem medo e quer saber, leia K.
[1] KUCINSKI, Bernardo. K: relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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