Cultura Livros Margarete Hülsendeger Resenha

Mulheres de vermelho

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MULHERES DE VERMELHO

Margarete Hülsendeger

 

Você não conta uma história apenas para si mesma. Sempre existe alguma outra pessoa. Mesmo quando não há ninguém.

Margaret Atwood

 

Segundo o dicionário Houaiss distopia é “qualquer representação ou descrição de uma organização social futura caracterizada por condições de vida insuportáveis, com o objetivo de criticar tendências da sociedade atual, ou parodiar utopias, alertando para os seus perigos”. O dicionário até cita dois autores que escreveram distopias que se tornaram famosas: Aldous Huxley e seu Admirável mundo novo (1932), e George Orwell, com 1984 (1949).

Nas duas histórias estamos diante de uma sociedade que de alguma forma, como diz o dicionário, procura representar situações nas quais o homem se encontra restringido em seus direitos mais elementares: em Admirável mundo novo está-se diante de uma sociedade que limita o nascimento de crianças e valoriza o sistema de castas; em 1984, tem-se a presença do “Grande Irmão”, um ente incorpóreo que vigia a população e quer sustentar-se indefinidamente no poder. Huxley e Orwell, na verdade, representam em suas narrativas muitos dos anseios e preocupações de suas épocas, marcadas por duas grandes guerras que mudaram o rumo da história e trouxeram à tona o que de pior existe na natureza humana.

Portanto, a escrita de distopias não é nenhuma novidade, estando representada também na literatura infanto-juvenil[1]. Contudo, dependendo da abordagem, uma história distópica ainda é capaz de surpreender e, consequentemente, de mobilizar leitores. Esse foi o caso do livro O Conto da Aia[2], da autora canadense Margaret Atwood, publicado pela primeira vez em 1985. Em suas mais de trezentas páginas vamos nos deparar com uma sociedade na qual as mulheres perderam seus direitos mais fundamentais, sendo, inclusive, divididas em castas para serem melhor controladas: as Esposas, as Tias, as Marthas, as Econoesposas e, é claro, as Aias. As leis que regularizam essa submissão estariam baseadas em normas pseudo-religiosas severas, que veem o corpo da mulher como algo vergonhoso que precisa, não só ser escondido, mas, de preferência ignorado. O sexo, nessa sociedade, é permitido apenas para fins de procriação.

A história é narrada em primeira pessoa, a partir do ponto de vista de uma das Aias. O futuro não é um futuro distante, pois a protagonista ainda lembra da vida como “era antes” ou, como ela mesmo diz, do tempo antes da “catástrofe”. O lugar é uma região dos Estados Unidos que a autora não faz questão de determinar com a exatidão. Somente homens ocupam postos de poder e os mais destacados recebem o nome genérico de Comandantes e somente a eles é permitido ter uma Aia. Nessa sociedade as mulheres velhas, solteiras e já inférteis são destinadas a serem Marthas, ou seja, empregadas, enquanto as Tias, por sua dedicação e obediência ao sistema, têm a função de “instruir” as Aias quanto aos seus deveres junto a essa sociedade. As mulheres pobres, casadas com homens igualmente pobres, são chamadas de Econoesposas e as casadas com os Comandantes chamam-se Esposas.

As Aias são, portanto, mulheres jovens e férteis entregues aos Comandantes com o único propósito de gerar filhos. As Esposas ficavam com as crianças que conseguem sobreviver, enquanto as Aias são encaminhadas a outros Comandantes para servirem novamente de barrigas de aluguel. Uma das cenas mais impactantes do livro é a da relação sexual entre a protagonista e o seu Comandante: o ato ocorre em dias determinados, seguindo um protocolo específico no qual a Esposa atua como testemunha. Todo o ato é realizado de forma impessoal, com a Aia sendo sustentada pela Esposa, enquanto o Comandante a penetra. A cena é bizarra e procura demonstrar a degradação a que estão submetidas essas mulheres que foram escolhidas para se tornarem Aias.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

Ao longo de todo o romance acompanhamos a angustia da protagonista e seu dilema entre se adaptar e sobreviver – “Estou viva, eu vivo, respiro, estendo minha mão para fora, aberta, para a luz do sol” – e a necessidade de rebelar-se contra um sistema que obrigam “você a matar, dentro de você”. Muitos encaram O Conto da Aia como uma espécie de libelo feminista, no qual se expõe, de forma metafórica, a submissão à qual muitas mulheres foram e ainda estão sujeitas mesmo na contemporaneidade. Nesse sentido, o romance, apesar de escrito há mais de trinta anos não perdeu a sua atualidade, pois podemos reconhecer em várias de suas passagens eventos dos quais temos sido testemunhas. As roupas das Aias – touca de grandes abas ao redor da cabeça, destinadas a impedir de ver e ser vista, saia que desce à altura dos tornozelos, mangas bem largas e luvas – podem, muito bem, lembrar as burcas usadas pelas mulheres muçulmanas. A única diferença é a cor: todas as Aias vestem de vermelho, cor, geralmente, associada a vergonha, ao pecado. As Aias são, portanto, marcadas, uma marca que aparece não apenas no modo de vestir, mas no de agir e até mesmo no de pensar. O medo está sempre presente e a submissão completa é o que se espera delas.

Como leitora não gosto quando alguém deixa escapar spoilers; pode parecer masoquismo, mas prefiro sentir a ansiedade que só uma boa história é capaz de despertar. Que graça tem se todos os detalhes são revelados? Como vamos exercitar nossa empatia com os personagens, se não acompanhamos passo a passo seus sofrimentos, alegrias e preocupações? Por isso, não adianto mais informações; me atrevo apenas a dizer que a leitura de O Conto da Aia vale a pena. Não importa se você é uma feminista ou não, o que importa é que se trata de uma boa história, ao melhor estilo das melhores distopias. Leia e você mesmo avalie!

[1] A trilogia Jogos Vorazes, da americana Suzanne Collins, é um, entre tantos, exemplos.

[2] ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. São Paulo: Rocco, 2017.

 

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