Educação Formação Docente

Docência e construção de gênero: afirmando os ideais heterossexuais

 

DOCÊNCIA E CONSTRUÇÃO DE GÊNERO: afirmando os ideais heterossexuais

Amélia Teresinha Brum da Cunha[1]*

Resumo

Este texto busca refletir acerca da construção da heterossexualidade. Analisa, também, o impacto dessa construção na educação e na docência, considerando que representa a condição de gênero e sexual aceita e defendida como a única com a qual devemos nos identificar, sem considerar suas multiplicidades e atravessamentos. Impõe-se como aquela que deve ser produzida e reproduzida socialmente sem questionamentos.

Palavras-chave: Heterossexualidade, Gênero, Educação, Docência.

Resumen

Este texto busca reflexionar acerca de la construcción de la heterosexualidad. Se analiza, también, el impacto de esa construcción en la educación y en la docencia, considerando que representa la condición de género y sexual aceptada y defendida como la única con la que debemos identificarnos, sin considerar sus multiplicidades y atravesamientos. Se impone como aquella que debe ser producida y reproducida socialmente sin cuestionamientos.Palabras clave: Heterossexualidad; Género; Educación; Docencia.

Historicamente a educação das crianças pequenas vem sendo, em grande parte das culturas, uma atribuição do universo feminino, portanto, ocupação exercida por quem, ainda, é visto como frágil, o que proporciona certa polêmica do trabalho docente masculino na educação infantil e nas séries iniciais. Welzer-Lang (2004, p. 118) diz que “para ser valorizado, o homem precisa ser viril, mostrar-se superior, forte, competitivo… senão é tratado como os fracos e como as mulheres, e assimilado aos homossexuais”.

Nesse mesmo sentido Connell (1995) mostra que há uma convenção, um costume admitido nas relações sociais, em torno da construção da hegemonia heterossexual masculina. Segundo o autor,

Existe uma narrativa convencional sobre como as masculinidades são construídas. Nessa narrativa toda cultura tem uma definição da conduta e dos sentimentos apropriados para os homens. Os rapazes são pressionados a agir e a sentir dessa forma e a se distanciar do comportamento das mulheres (…) a feminilidade é compreendida como o oposto. A pressão em favor da conformidade vem das famílias, das escolas, dos grupos de colegas (…), (CONNELL, 1995, p.189).

Sabe-se que primeiras utilizações do termo ‘gênero’ ocorreram por volta da década de 1970 e buscavam trazer à tona o caráter histórico e social das diferenças entre os homens e as mulheres para poder suplantar a ideia das diferenças baseadas nas determinações biológicas, as quais eram usadas como “argumento de que homens e mulheres são biologicamente distintos e que a relação entre ambos decorre dessa distinção (…)” (LOURO, 1997, p. 20).

Analisar a construção de gênero a partir da perspectiva dos estudos de gênero é ter em conta que na escola ainda muitas/os educadoras/es “tomam para si a responsabilidade de atuarem como ‘vigilantes’ da sexualidade infantil, na tentativa de moldarem os comportamentos que consideram mais apropriados para meninos e meninas” (LUCENA, 2003, p. 22).

Louro (1997) corrobora nesse entendimento ao afirmar que os currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didáticos e processos de avaliação contribuem para as diferenças de gênero verificadas na escola.

Finco, em 2003, desenvolveu um estudo no qual afirmou a existência de muitas pesquisas que apontam

que a escola possui mecanismos sutis que constroem e mantém as diferenças entre os sexos. Porém, não se sabe como essa construção aparece na escola de Educação Infantil. Nesta etapa da educação a escola já ensina a ser menino e a ser menina? Como as crianças se manifestam frente às relações de gênero? (FINCO, 2003, p.95).

Assim, o conceito de gênero pode ser um conceito relevante, útil e apropriado para as questões educacionais por tentar discutir a ideia quase compulsória do caráter ‘natural’ atribuído ao que é o feminino e ao que é o masculino.

Para Louro (1997), gênero refere-se “ao modo como as diferenças sexuais são compreendidas numa dada sociedade, num determinado grupo, em determinado contexto” (Louro, 1997, p. 77).

Considerada como uma construção histórico-cultural, dotada de interpelações e representativa, a construção de gênero assume características muito mais complexas do que aquelas percebidas nas relações entre as pessoas. Para Furlan e Santos (2010),

não é propriamente a diferença sexual – de homens e mulheres – que delimita as questões de gênero, e sim as maneiras como ela é representada na cultura através do modo de falar, pensar ou agir sobre o assunto (FURLAN e SANTOS, 2010, p.1).

Os estudos sobre gênero durante longo tempo viram a heterossexualidade como uma realidade natural, ligada ao sexo biológico, ao passo que o gênero era concebido como construção social. No entanto, era preciso pensar igualmente o sexo biológico como fazendo parte de uma representação social. Pensando nisso foi que Ingraham (1996) apud Swain (2009) propôs a noção de heterogênero, pois “em sua enunciação essa categoria desvela o binário naturalizado, contido nos estudos e na aplicação acrítica de ‘gênero’ em todos os tempos e espaços humanos” (INGRAHAN apud SWAIN, 2009, p. 30).

Para Scott (1995), gênero refere-se à organização social das relações entre os sexos. A autora defende um ponto de vista ampliado acerca da categoria gênero, um sentido que ultrapasse as relações de parentesco e agregue também o mercado de trabalho, o qual é sexualmente separado.

 

Algumas considerações provisórias

Temas como gênero e sexualidade clamam, cada vez com mais intensidade, espaço nos currículos dos cursos de formação de professores, pois são grandes os desafios que oferecem para o trabalho docente em sala de aula. Desse modo, convém que os/as docentes compreendam que gênero é uma construção social e que nenhuma identidade sexual pode se subsumir à norma heterossexual, como tentam os discursos heteronormativos.

Algumas narrativas que constroem a noção da essência dos homens e das mulheres podem servir para que professores e professoras impeçam o desenvolvimento e a manifestação da sexualidade das crianças.

Com base nesses questionamentos, alguns estudiosos/as tencionam proporcionar uma reflexão que pode ser usada nas escolas, principalmente entre os/as professores/as que ainda mantém uma relação de cuidado e responsabilidade com as questões de gênero e sexualidade infantil, visto que, segundo Felipe (1998),

Muitas professoras tomam para si a responsabilidade de vigilância diante da possível orientação sexual das crianças, especialmente quando se trata de meninos, pois na nossa cultura muitos adultos veem com extrema reserva o fato de alguns meninos demonstrarem comportamentos considerados não apropriados com a sua masculinidade. Dessa forma, brincar de boneca ou estar sistematicamente brincando de casinha com as meninas, ou querer fantasiar-se de personagens femininos, ainda é visto com muita preocupação por parte de profissionais que atuam em creches e pré-escolas (FELIPE, 1998, p.58).

 

É importante continuar a refletir sobre a construção cultural que impõe a homens e mulheres assumirem atitudes e comportamentos que se inserem numa complexa rede de poder que objetiva vigiar e punir quem ousa desviar das normas sexuais e de gênero socialmente aceitáveis.

Convém despertar o interesse dos professores e das professoras para que discutam, reflitam  e problematizem sobre os inúmeros discursos moralizantes e disciplinadores que são dirigidos a eles e a elas a fim de manterem e defenderem regras e normas sociais, criadas com o objetivo de estipular e validar padrões de comportamento, pois são os professores e as professores que cotidianamente convivem com crianças e que reiteram, às vezes sem perceberem, alguns conceitos que reforçam estereótipos de gênero ou, como disse Bourdieu (2003), internalizam e naturalizam “um conjunto de disposições sociais que (…) tomam formas visíveis nas maneiras de ser, portar-se, andar, falar, gesticular, manter o corpo, pensar, sentir e agir das pessoas (BOURDIEU, 2003, p. 64).

Conforme Louro (2007), “é relevante refletir sobre os modos como se regulam, se normatizam e se vigiam os sujeitos de diferentes gêneros, raças e classes nas suas formas de experimentar prazeres e desejos; […] (LOURO, 2007, p.2).

 

Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

COONEL, R. Políticas da Masculinidade. Educação & Realidade. Porto Alegre. V.20, n. 2, jul./dez. 1995.

FELIPE, Jane. Sexualidade nos livros infantis: relações de gênero e outras implicações. In:

FINCO, Daniela. Pro-Posições. v. 14, n. 3 (42) – set./dez. 2003.

FURLAN, Cássia Cristina e SANTOS, Patrícia Lessa dos. Além das aparências: gênero e corpo no cotidiano da educação física escolar. In: FAZENDO GÊNERO 9 – DIÁSPORAS, DIVERSIDADES, DESLOCAMENTOS. 2010. p. 1-10. Disponível em http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1277757951.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero e magistério: identidade, história e representação. In: CATTANI, Denise et al. (Org.). Docência, memória e gênero. Estudos sobre formação. São Paulo: Escrituras, 1997.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: das afinidades políticas às tensões teórico-metodológicas. Educação em Revista. Belo Horizonte. n. 46. p. 201-218. dez. 2007. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/edur/n46/a08n46.pdf

LUCENA, Camila Munhoz de. Jogos e brincadeiras na educação infantil na construção de papéis sociais de gênero. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Educação e Humanidades. Faculdade de Formação de Professores. Monografia de conclusão de curso. 2003. Disponível em http://www.ffp.uerj.br/arquivos/monografias/CML.2.2010.pdf

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise. Educação e Realidade, v. 20, n. 2, p. 71-100, jul./dez. 1995. Porto Alegre. 1995.

SWAIN, T. N. Heterogênero: “uma categoria útil de análise”. Educar. Curitiba, nº 35. Editora UFPR. 2009.

WELZER-LANG, Daniel. Os homens e o masculino numa perspectiva de relações sociais de sexo. In: SCHPUN, Monica R. (org.). Masculinidades. São Paulo: Boitempo Editorial. Santa Cruz do Sul. Edunisc. 2004.

Gostaria que o texto fosse citado como:

CUNHA, Amélia T. B. da Cunha. DOCÊNCIA E CONSTRUÇÃO DE GÊNERO: afirmando os ideais heterossexuais. Revista P@rtes. ISSN 1678-8419. São Paulo. 2017.

[1]*Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas/RS. Email:ameliabrum@gmail.com

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