O DEUS DA DOR E DA PERDA
Margarete Hülsendeger
Eles todos logo aprenderiam muito sobre castigos. Que eles vêm em tamanhos diversos. Que alguns eram tão grandes que eram como armários com quartos embutidos. Podia-se passar a vida inteira dentro deles, vagando por estantes escuras.
Arundhati Roy
Julgar uma cultura que não é a nossa é sempre muito difícil, para não dizer perigoso. Afinal, o que é aceitável para nós, não precisa ser necessariamente aceitável para os outros. O processo de aculturação quando exercido de forma violenta, geralmente acaba resultando no apagamento ou no silenciamento de culturas até mais antigas que a nossa. Foi assim na América, na África, na Austrália e em tantos outros lugares por onde passou a “máquina” da colonização e o resultado todos conhecemos: culturas inteiras foram simplesmente borradas da face da terra.
No entanto, é interessante quando, de dentro da própria sociedade, surgem vozes que criticam normas de conduta e clamam por transformações. Pode-se dizer que esse tipo de movimento tem mais força e legitimidade porque não é imposto de fora para dentro, mas parte do interior da própria comunidade. Transforma-se em exercício cujo objetivo é refletir sobre hábitos, muitas vezes milenares, que são aceitos sem nenhum questionamento, mesmo quando reduzem o indivíduo a um objeto sem voz e sem vontade.
Dentro dessa perspectiva, recentemente li um livro que me impactou, não só pela linguagem, mas pela temática nele abordada, O deus das pequenas coisas, da escritora indiana Arundhati Roy, publicado em 1997[1]. Em 344 páginas, a autora traça um perfil comovedor e realista da sociedade indiana, que lhe rendeu, em1998, o Prêmio Booker Prize, concedido pela primeira vez a um indiano. A autora, na época, foi alvo de um processo judicial acusada de obscenidade, justamente por que em seu livro são abordados temas considerados tabus, em especial, a questão das castas e a posição da mulher dentro da sociedade indiana.
Em O deus das pequenas coisas vamos, em um primeiro nível, nos deparar com um drama familiar. Entre os seus protagonistas encontraremos duas crianças, dois gêmeos bivitelinos, Estha e Rahel, tentando entender o que acontece em seu entorno, o mundo dos adultos. Os dois são filhos de Ammu, uma mulher que se rebela contra a família, casando-se sem a autorização dos pais, acreditando que essa era a única forma de fugir da prisão que era a sua casa paterna. Quando o casamento não dá certo e ela retorna à família como uma mulher divorciada, transforma-se em uma pária, sem voz, sem direitos, obrigada a permanecer a sombra do irmão mais velho Chacho. A esses personagens outros são acrescentados, como a ressentida e invejosa tia-avó de Ammu, Baby Kochama, a matriarca Mammachi e o “intocável” Velutha. A autora consegue, com maestria e extrema sensibilidade, criar uma história que vai se construindo lentamente, semelhante ao que acontece quando se costura uma colcha de retalhos, na qual o desenho completo só vai ficar claro quando ela estiver pronta.
Um dos pontos que chama a atenção sãos as imagens da Índia elaboradas pela autora. Imagens que vão além da simples metáfora, pois se consegue extrair delas, não apenas palavras, mas sons, cheiros e sabores: “O campo fica de um verde vaidoso. Divisas se dissolvem quando as cercas de mandioca se enraízam e brotam. Paredes de tijolo ficam verde-musgo. Pimenteiras se enroscam nos postes elétricos”. No romance de Arundhati Roy, os silêncios são barulhentos e as vozes, mesmo quando gritam, parecem sussurros. Há um clima que transcende o real e adentra o mítico envolvendo o leitor em uma espécie de cobertor, que o abriga e consola mesmo quando o “Tempo do Terror” se aproxima.
Desde o início compreende-se que a história foi construída a partir de uma tragédia que atingirá, em algum nível, todos os personagens; há vislumbres dela ao longo da narrativa, mas isso não diminui o ímpeto da leitura. Para dar esse efeito, a autora viaja no tempo 23 anos depois da “Grande Tragédia”, quando Rahel, agora uma mulher adulta, volta à casa familiar para reencontrar-se com seu irmão e com o drama que ali vivenciaram. Aos poucos os espaços em branco vão sendo preenchidos, segredos e preconceitos são expostos e culpas são revisitadas porque “é curioso como às vezes a memória da morte vive por muito mais tempo que a memória da vida que ela roubou”.
O deus das pequenas coisas é um livro que não esconde, ao contrário, revela e expõe. Revela as belezas da Índia, a força de suas tradições, de sua cultura e de seu povo. Expõe preconceitos como a divisão da sociedade em castas, onde homens e mulheres são considerados “intocáveis” e vistos, muitas vezes, como animais a serviço dos “tocáveis” ou como massa de manobra para políticos inescrupulosos. Um país que “estava eternamente entre o terror da guerra e o horror da paz”, no qual “Coisas Piores estavam sempre acontecendo”.
No livro de Arundhati Roy encontramos uma história que segue a “receita” dada pela própria autora: “Nas Grandes Histórias você sabe quem vive, quem morre, quem encontra o amor, quem não encontra. E, mesmo assim, você quer ouvir de novo. Esse é o seu mistério e a sua magia”. E O deus das pequenas coisas é, realmente, uma “Grande História”, pois é capaz de atingir os pontos mais profundos da alma, criando empatias e antipatias, permitindo que o leitor tenha um pequeno vislumbre dessa sociedade tão complexa que é a sociedade indiana. Portanto, não é de estranhar que Arundhati Roy tenha deixado de escrever ficção por 20 anos[2], pois, quem escreve como ela escreveu, talvez, já tenha dito tudo e não queira acrescentar mais nada.
[1] ROY, Arundhati. O deus das pequenas coisas. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
[2] Em 2017, a Companhia das Letras lançou no Brasil seu segundo livro com o título O ministério da felicidade absoluta (no original The Ministry of Utmost Happiness).