O menino selvagem e as invariantes do humano
Publicado originalmente como
José Carlos Rocha
Gilberto da Silva
“tudo que é dito é dito por alguém”
Humberto Maturana /Francisco Varela
Victor d’Aveyron
Em meados do século dezenove, em Paris, o jovem médico Jean-Jacques Gaspar Itard dá com um aglomerado de pessoas observando, na rua, um menino, enjaulado, a quem chamavam de menino-macaco. Com autorização judicial, o médico o conduz à residência, onde tratará de educa-lo, tornando-o objeto de investigações científicas.
Aparentando seis a oito anos, surdo e mudo, com posturas próximas do animalesco, o menino que fora capturado no mato, onde teria sido abandonado ainda recém-nascido, quase nada aprenderá. Itard observará meticulosamente o menino durante três anos, período que o teve de sobrevida em ambiente social. Entre as letras do alfabeto fonético, o menino aprendeu apenas a pronunciar o “ô”, derivando daí o nome Victor e o sobrenome d’Aveyron, região onde fora capturado. Durante este período o máximo de imagens que Victor conseguiu reconhecer foi o desenho de uma garrafa de leite no quadro negro.
Itard levantou comportamentos e reações de Victor, tudo relacionou e fez descobertas importantes, como as relações fisiológicas entre garganta, nariz, olhos e ouvidos. Assim, criou a otorrinolaringologia. De quebra foi o fundador da psicologia moderna e forneceu importantíssimos elementos para o estudo do significado das aquisições culturais para o funcionamento da inteligência humana. Em outras palavras para a dicotomia natureza x cultura.
Um filme e um livro foram produzidos para retratar a saga de Itard e do menino Victor. O filme L’enfant sauvage, de François Truffaut (1932-1984), resultou numa bela película, com o diretor encarnando Itard. No livro Lês Enfants Sauvages (as crianças selvagens) de Lucien Malson o relatório de Gaspar Itard sobre Victor d”Aveyron é mostrado na íntegra.
Malson acrescenta ao relatório de Itard sobre Victor muitas informações sobre crianças recapturadas após anos de vida no mato ou em outros lugares, comentando relatos feitos desde o ano de 1500 acerca de quase quinhentas crianças (499 no total) inclusive duas meninas gêmeas indianas que, resgatadas e levadas ao convívio de uma família de um missionário anglicano, não chegaram a aprender a nadar, ficaram com as pernas murchas porque nunca as utilizaram para isso. Comentando o caso das gêmeas indianas Maturana mostra que “embora em sua constituição genética a anatomia e a fisiologia fossem humanas, as duas meninas nunca chegaram a acoplar-se ao contexto humano. Os comportamentos que o missionário e sua família queriam mudar nelas, por serem aberrantes no âmbito humano, eram inteiramente naturais para as meninas lupinas. Na verdade, Mowgli, o menino da selva imaginado por Kipling, jamais poderia ter existido de carne e osso, porque sabia falar e comportou-se como um homem quando reconheceu o ambiente humano. Nós, seres de carne e osso, não somos alheios ao mundo em que existimos e que está disponível em nosso cotidiano” (Maturana, 2002: 146).
Todo este material reunido, pesquisado, interpretado e concluído, permitiu aos cientistas estabelecer as capacidades e aptidões naturais da inteligência humana, aquelas que constituem o seu “esqueleto” antropológico, como membros da espécie, isto é, o de que dispõem para desenvolver e aplicar em sua vida social e cultural.
A “escola contra a verdade”
Os relatos, apresentações e reflexões de Lucien Malson parecem continuar muito interessantes porque consistiram um ponto de mutação, o início de uma reviravolta nas considerações que se faziam em meados do século passado (anos 50/60) quando aparentemente se vivia o apogeu das correntes de pensamento segundo as quais o “homem não tem natureza, tem cultura”. Malson reúne lições de importantes pensadores, como o antropólogo franco-belga Claude Lévi-Strauss, para fazer despontar indicações científicas de uma “certa natureza” humana em meio ao torvelinho de correntes conflitantes. Em As Estruturas Elementares do Parentesco (1949), Claude Lévi-Strauss analisa a proibição do incesto como meio positivo de assegurar a comunicação e o intercâmbio das mulheres entre os grupos, e vê nisso o critério de passagem da natureza à cultura. Na realidade, tais indicações da ciência formaram um núcleo de revelações e alcançaram uma repercussão suficiente para dar aos seus autores a legenda de uma escola contra a verdade, em alusão ao pensamento velho-europeu dominante.
Desses fatos resultam alguns pontos importantes para a reflexão. Primeiro, seguindo a linha do método analítico – ao qual Jean Piaget havia dedicado seus estudos três décadas antes –a chamada escola contra a verdade determinou uma natureza humana que todos os membros da espécie recebem no estado de nascimento, certamente um patrimônio hereditário. Segundo, essa determinação consiste na introdução do valor da afetividade – isso que tem hoje o nome de emoção – no pensamento científico. Em terceiro lugar, tal avanço mantém o mérito de, como reviravolta ou ponto de mutação (conceito exclusivo de cultura para o de natureza-e-cultura), servir de marco para a reflexão na atualidade, onde a genética e a biologia aparecem com novo vigor de ciência-piloto para vastos campos da atividade humana.
De fato, na atualidade são pensados aspectos circunstanciais da evolução da espécie que conduzem ao chamado pós-humano – máquinas e sistemas assumem ares de vida própria. Isso remete à ponderação sobre o que é humano, o que é identidade humana e sobre as chances de o homem fazer, por conta própria, uma nova revolução biológica (por meio da genômica, engenharia genética, sistemas cibernéticos e máquinas). Ou seja, as chances de ultrapassar o estágio de humanidade alcançado, por uma verdadeira evolução biológica anterior – há cerca de 100 mil anos – que lhe deu a natureza atual.
Esse debate vai longe. As lições de Malson, todavia, servem como ponto de referência para a discussão. De qualquer modo, independentemente de uma exaustiva análise de cada uma dos milhares de genes humanos, e de sua repercussão na vida social, seria possível intuir, apenas a título de polemizar, que a genômica, além de precisas indicações para a saúde e os comportamentos, não terá o condão de mudar a natureza da espécie. Esta natureza é resultante de uma engenharia natural construída ao longo de milhões de anos e não poderia ser objeto de modificações pela ação humana baseada no conhecimento científico. Como produzir artificialmente um ovo de galinha do qual possa nascer um pinto?
O que são os animais humanos, afinal? Como atuam na vida? Vejamos, em resumo, o que dizem os autores referenciados por Lucien Malson a partir da história do menino selvagem Victor d’Aveyron.
As invariantes do humano
“Será preciso admitir que os homens são homens fora do ambiente social, visto que aquilo que consideramos ser próprio deles, como o riso ou sorriso, jamais alumia o rosto das crianças isoladas.” Lucien Malson – Les enfants sauvages (1964)
Na linguagem de Malson, e refletindo os pesquisadores da época, a inteligência humana se compõe de duas faces (da mesma moeda), sendo uma a razão e outra a afetividade. Para Piaget “inteligência humana (razão) não é senão um instrumento da espécie que facilita sua adaptação ao mundo exterior” (Freitag, 1991: 50)
A razão é geneticamente dotada de três capacidades, “a razão é fenômeno evolutivo que não progride de forma contínua e linear, como julgava o antigo racionalismo, mas por mutações e reorganizações profundas.” (Morin, 2001: 167). As capacidade inatas da razão são a liberdade em relação ao espaço e ao tempo; o pensamento da coisa pura; e a capacidade combinatória.
A afetividade é apontada como a relação que a pessoa matem consigo mesma e que funciona como um filtro para as relações com as outras pessoas, as coisas e o mundo. As aptidões inatas da afetividade são o apelo à regra; o voto de reciprocidade; e o movimento oblativo.
São capacidades e aptidões ou tendências presentes em todos os seres humanos, de qualquer raça ou sexo, em qualquer lugar e em qualquer momento da história da espécie, conforme puderam verificar os cientistas, inclusive com aportes da paleontologia antropológica
a) As capacidades racionais
- Liberdade em relação ao espaço e ao tempo
“Como vocês sabem, o primeiro filósofo que enfrentou esta questão foi Emmanuel Kant na sua Crítica da Razão Pura; ele disse que o tempo e o espaço não existem, somos NÓS que os colocamos no mundo dos fenômenos para poder ordená-los e, ao mesmo tempo, a causalidade, a finalidade somos NÓS que as damos aos fenômenos para poder compreendê-los.” Morin, 2001: 74)
Entre todos os sistemas vivos, os seres humanos são os únicos que atuam livremente em relação ao espaço e ao tempo (as duas únicas dimensões que conhecem entre os bilhões de dimensões existentes no universo, segundo o escritor argentino Jorge Luis Borges).
Em relação ao tempo
Como sujeitos, os seres humanos compreendem naturalmente que o ponto geométrico em que se encontram no espaço euclidiano é intercambiável com o ponto geométrico em que se encontra um estímulo que cai sob sua percepção. Sabem que podem se deslocar até o estímulo ou, ao invés, podem fazer o estímulo vir até eles. Podem ir até a árvore, em busca dos frutos, ou fazer outra pessoa vir de avião até aqui; criar e utilizar correios e meios de comunicação; fazer compras pela Internet, enfim, capacidade de domínio completo sobre a dimensão espacial. Diferentemente, um animal não-humano é incapaz de, estando engaiolado, construir um instrumento para trazer até ele as frutas que estão fora do seu alcance corporal. Tudo depende de nós e por nós.
Em relação ao tempo
Do mesmo modo os seres humanos são livres em relação ao tempo, liberdade que consiste em, como sujeitos, serem capazes de escolher a hora em que vão responder um estímulo, a partir do momento em que este cai sob sua percepção. Um animal, quando faminto, não pode recusar a consumir, de imediato, um alimento que aparece. Os seres humanos reagem de outra maneira: mesmo famintos podem decidir jejuar durante quarenta dias; do mesmo modo, podem optar pela castidade ou seja pelo que for, à revelia dos estímulos.
Livres em relação ao espaço e ao tempo, os seres humanos podem dominar o aqui e o agora, pensar a eternidade, pesquisar o passado, engendrar o futuro.
- O pensamento da coisa pura
Segunda capacidade natural dos homens e mulheres, o pensamento da coisa pura corresponde ao pensamento simbólico, ou seja, a capacidade de pensar simbolicamente. É possível tudo investir num símbolo –a cruz representa a paixão de Cristo; a bandeira, o país ou o time de futebol. Cada coisa pode ter seu símbolo, mas fica conservada a capacidade de não se emaranhar nos símbolos, de conservar o significado puro da coisa – Por exemplo -, um jornal é para se conhecerem as notícias e opiniões. No entanto, se chove, posso fazer dele um guarda-chuva; se faz frio, um cobertor, se é necessário acender uma fogueira, um pavio. Todavia, a consciência de que se trata de um jornal permanece imperdível, sem confusão com outras coisas. Daí a possibilidade de criar milhões de vocabulários, ideias, conceitos, teses, linguagens, obras de arte etc.
- A capacidade combinatória
A terceira capacidade natural da inteligência, pelo lado da razão, é a capacidade combinatória, a de combinar dois elementos para conseguir um terceiro, como resultado. Os seres humanos, ao pensar em como atravessar um rio, combinam o vertical (pilares) com o horizontal (vão) e constroem uma ponte.
Enfim, essas três capacidades, permanentemente utilizadas em combinação uma com as outras, correspondem aos aspectos racionais, a racionalidade, da inteligência.
As aptidões afetivas
Quando se trata da afetividade os membros da espécie humana têm aptidões ou tendências inatas sempre observáveis em seu comportamento: o apelo à regra, o voto de reciprocidade e o movimento oblativo (ou a prática do dom, de dar presentes).
- O apelo à regra
O apelo à regra consiste na tendência natural de estabelecer regras para as relações e situações, com o objetivo de “evitar os inevitáveis sofrimentos do arbitrário”, quer se trate de arbitrário de origem social, quer de origem natural. É tendência objetivada nas regras do jogo, na impossibilidade de mudar as regras durante o jogo, nas leis e outras decisões que buscam uma ordem nas relações, assim como na criação de inventos, instrumentos ou obras para prevenir danos e catástrofes que fatores naturais poderiam causar. A criação de regras e de medidas preventivas tem assim origem numa aptidão natural, num apelo ou recurso sempre-presente, não podendo ser reduzida a uma vontade do poder, do mais velho ou do moralista, padre ou professor.
- O voto de reciprocidade
“Não faça aos outros o que não queres que te façam a ti”
“Faz aos outros o que desejares que te fizessem a ti”
“Já que não é possível uma igualdade de força e meios entre as partes, que ao menos haja igualdade nas relações”.
Por isso que, nas eleições, o voto de um analfabeto tem o mesmo valor de um erudito, e nas assembleias os mais fortes se igualam aos mais fracos. A regra da reciprocidade é colocada por Simone de Beauvoir (1908-1989), no livro O Segundo Sexo (1949), como regra de ouro nas relações entre homem e mulher, mas bem se entende que, sendo natural e universal, seja também uma regra na qual se vote sempre, por tendência natural inata, vale dizer em todas as circunstâncias, momentos e lugares.
- O movimento oblativo
O gesto oblativo ou movimento oblativo corresponde à prática do dom, de dar um presente a alguém, nas relações interindividuais ou sociais, políticas ou mesmo internacionais. É uma operação de significados complexos: ao dar presente, você renuncia ao egoísmo, abdica da superioridade, se iguala ao outro, mais que isso, o homenageia. Ao aceitar e receber o presente, o outro também renuncia ao egoísmo e abdica da superioridade, se iguala ao que presenteia. Ao mesmo tempo, o objeto presenteado se torna de valor maior, coisa predileta e estimada. O presente dignifica e ritualiza as relações, trazendo-as para um elevado patamar de consideração recíproca, aprofundando a relação e melhorando suas perspectivas. O movimento oblativo “é o mínimo múltiplo comum de todos os desejos e medos contraditórios”, na bela expressão de Susan Isaacs.
Podemos também citar, como dádiva, o potlatch, palavra de origem ameríndia que significa “presente” ou “dádiva”. Entre algumas tribos indígenas do noroeste dos Estados Unidos da América, o potlatch é o nome dado a uma festividade de inverno com distribuição ou troca de presentes, envolvendo frequentemente a dissipação dos bens do anfitrião.
Inteligentes e desejosos de paz
A atuação dos seres humanos, em sua lida diária como em ocasiões especiais, contém o exercício simultâneo das três capacidades da razão e das três aptidões de afetividade, que são patrimônio comum a todos, que todos aplicam ininterruptamente mas que nem todos desenvolvem por igual. Sugere Lucien Malson que tudo que os humanos fazem contém essas aptidões e capacidades, em maior ou menor escala, e que não seria possível fazer alguma coisa fora do seu exercício conjunto. São as invariantes do humano, o que não varia na espécie (ao que afirmam outros cientistas, já cerca de 110 mil anos de idade e com mais, pelo menos 30 mil anos à frente, sem chances de mudança específica).
A conclusão de Lucien Malson é a de que essas capacidades e aptidões naturais, trazidas hereditariamente no estado de nascimento e refletindo uma história realizada ao longo da evolução biológica da espécie, indicam que o homem e a mulher nascem inteligentes e desejosos de paz.
Referências Bibliográficas
FREITAG, Bárbara. Piaget e a filosofia. São Paulo: Editora Unesp, 1991.
MALSON, Lucien. Les enfants sauvages. Editora: Union Generale, 1964.
MATURANA, Humberto R e VARELA, Francisco J.. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athenas, 2001.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. RJ: 4ª ed. Bertrand Brasil, 2001.