Crônicas Gilda E. Kluppel Gilda E. Kluppel

Nunca me sonharam

Gilda E. Kluppel

 

Gilda E. Kluppel é professora de Matemática do ensino médio em Curitiba/PR, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná.

Desperta a atenção o depoimento do jovem estudante de escola pública da cidade de Nova Olinda, interior do Ceará, sobretudo pela estonteante frase, um verdadeiro desabafo poético: “nunca me sonharam”. A expressão marcante, dita em um depoimento para o documentário de Cacau Rhoden, que recebeu a frase como título, permite algumas reflexões. Qual o sentimento de um estudante, quando os pais não têm o sonho de formar o filho numa universidade? Diversamente de pais que sonham e investem em educação, entre tantas profissões viáveis para os filhos, garantindo ilimitadas possibilidades de escolha.

Vale citar, na íntegra, o depoimento do estudante Felipe Lima: “Como meus pais não foram bem-sucedidos na vida, eles também não me influenciavam, não me davam força para estudar. Achavam que quem entrava na universidade era filho de rico. Acho que eles não acreditavam que o pobre também pudesse ter conhecimento, que pudesse ser inteligente. Para eles, o máximo era terminar o ensino médio e arrumar um emprego: trabalhador de roça, vendedor, alguma coisa desse tipo. Acho que nunca me sonharam sendo um psicólogo, nunca me sonharam sendo professor, nunca me sonharam sendo um médico, não me sonharam. Eles não sonhavam e nunca me ensinaram a sonhar. Tô aprendendo a sonhar.”

 O documentário, além dos estudantes, conta com depoimentos de gestores, professores e especialistas, sobre a educação ofertada aos jovens do ensino médio nas escolas públicas do Brasil. Reforça a necessidade do diálogo para superar as dificuldades que permeiam essa realidade. Torna-se oportuno ouvir, com mais interesse, aqueles que vivem o cotidiano da educação. O documentário apresenta experiências bem-sucedidas, muitas delas devido à capacidade de sonhar dos professores.

Estamos acostumados com inúmeros discursos sobre a educação, essa eterna “prioridade”, reiterada em frases de efeito e politiqueiras, no sentido de enquadrar os estudantes para manter o status quo, longe da perspectiva de transformação da sociedade. Entretanto, ao contrário dos que apregoam a meritocracia, num país onde a competição é acentuadamente desigual, a frase “nunca me sonharam” representa uma síntese da dificuldade de superação dessa realidade; para quem não tem uma família composta por aqueles que tiveram a oportunidade de frequentar, por longos anos, os bancos escolares.

O sonho de realizar um futuro melhor, diferentemente dos pais, compreendido como um projeto inacessível. A educação, para esses, não é percebida como um caminho para a mudança. Desse modo, falta um sonho, capaz de impulsionar as transformações, nesta época em que se iniciam as escolhas. A adolescência é uma das fases mais sensíveis da vida, na qual ocorre um turbilhão de emoções. Logo, a relevância de aprender a sonhar, conforme o depoimento do estudante Felipe.

A expressão enfatiza que o país, apesar de algumas mudanças, está ainda distante de oferecer melhores perspectivas para os jovens oriundos de famílias de baixo poder aquisitivo. Que pelo menos fosse possível desenvolver a capacidade de sonhar desses estudantes, para que eles não desistam facilmente, pelas barreiras que terão pela frente em sua vida escolar.

Guardo, em más recordações, afirmações que foram, há algumas décadas, repetidas à exaustão, “esperar pelos ajustes econômicos necessários” e “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”. Afirmações que retornam à tona quando o país atravessa momentos de crise. Contudo, a nação também sonhou com a grandeza, mas parece que está deixando de sonhar, o mais perigoso rumo. Portanto, mesmo que resgatem das trevas o conceito da meritocracia, num país em que os jovens são massacrados pelos determinantes sociais, torna-se importante ressaltar que certos sonhos, para se realizarem, precisam ser coletivos. Para que estes estudantes possam manifestar, num horizonte próximo, um “sempre me sonharam”.

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