O FILÓSOFO QUE DETESTAVA OS FILÓSOFOS
Margarete Hülsendeger
A sabedoria é algo que quando nos bate à porta já não nos serve para nada.
Gabriel García Marquez
– Ele mereceu – disse a mulher.
– Cale-se! Você não sabe o que está dizendo. Ninguém merece uma morte dessas – respondeu furioso o marido.
Um sentimento de tragédia pairava sobre a praça principal e sendo Éfeso um grande centro urbano, dramas nunca faltavam, assim como espectadores ávidos em acompanhá-los. Nessa cidade, uma das mais importantes do mundo, poderia se encontrar de tudo, desde templos magníficos – como o de Ártemis –, até um comércio próspero e uma intensa atividade cultural. Para lá convergiam poetas, filósofos e estudiosos. Não havia limites para as riquezas que por ali circulavam, despertando em seus habitantes um sentimento de orgulho desmedido.
No entanto, nem todos viam a cidade e seus costumes de forma tão favorável. E um dos descontentes era, ironicamente, o objeto da atenção dos que se encontravam na praça no início daquela tarde.
– O cheiro é horrível – queixou-se outra mulher.
– Ele foi encontrado pela manhã e ninguém tocou no corpo – respondeu um vizinho. – Chamaram os sacerdotes para limpá-lo, mas, até agora eles não apareceram.
– Sacerdotes? Mas ele os detestava! Aliás, ele odiava todo mundo, por que não o enterram do jeito que está e acabam logo com isso? – quis saber a mulher.
O homem deu de ombros.
– Talvez porque, apesar do temperamento irascível, ele fosse muito conhecido.
– Ele tinha algum seguidor ou discípulo?
– Não. Vivia isolado nas montanhas e pelo que sei pouco vinha à cidade. Ele se alimentava apenas do que pudesse encontrar na floresta.
– Não entendo – insistiu a mulher. – Se era um filósofo, um estudioso, porque teimava em se comportar dessa maneira absurda?
O homem voltou a dar de ombros. A verdade é que ninguém nunca entendeu as motivações do morto.
Um pouco afastados encontravam-se dois jovens, que assim como todos, observavam estarrecidos a cena dantesca que ocorria diante de seus olhos. Eles tinham vindo de Mileto, especialmente, para conversar com o filósofo.
– Incrível! Tantas perguntas, tantos assuntos para discutir. Por essa eu não esperava – disse desolado o mais jovem dos dois.
– Nem eu – respondeu igualmente chocado, o mais velho.
– E agora o que faremos?
O rapaz mais velho afastou o olhar do corpo, já completamente coberto de moscas. O cheiro, a cada minuto, tornava-se pior e a visão era um pesadelo.
– Vamos sair daqui – disse nervoso. – Não aguento ficar olhando.
Os dois jovens, de braços dados, andaram pela cidade até que encontraram uma taberna aberta. Depois de pedirem uma jarra de vinho, sentaram-se em uma mesa na frente da tenda para decidir se valia a pena permanecer em Éfeso ou se deveriam retornar a Mileto.
Trêmulo o rapaz mais jovem tomou um gole de vinho.
– Será que vão queimá-lo? – perguntou em voz baixa.
– Não sei, mas tenho certeza que se pudesse escolher esse seria o seu último desejo. Afinal, para ele, o princípio de tudo era o fogo, a encarnação do que chamou de logos.
– Sim, eu lembro. Tales e Anaximandro falaram inúmeras vezes contra essa ideia.
– Assim como Anaxímenes. Essa era uma das razões de desejar conhecê-lo. Queria que ele me aceitasse como seu discípulo para aprender mais.
– Eu também. A questão é: será que ele nos aceitaria?
– Agora jamais saberemos.
O silêncio caiu sobre os dois enquanto distraidamente continuavam a beber o vinho. As ideias do filósofo – que detestava filósofos – chegaram até eles há pouco tempo, mas os havia conquistado quase de imediato. Tudo estar em contínuo movimento e a realidade ser o resultado de uma guerra entre os opostos eram conceitos tão fascinantes que eles não pensaram duas vezes em abandonar a sua cidade natal e seguir para Éfeso em busca de mais conhecimento. E agora, depois de todos os sacrifícios, viam-se diante desse cenário medonho: o grande filósofo morto e suas ideias correndo o risco de serem esquecidas por falta de quem continuasse o seu trabalho.
O rapaz mais moço de repente colocou-se de pé:
– Temos de fazer alguma coisa. Precisamos intervir.
– Como? – perguntou o outro calmamente. – Nós sequer o conhecíamos.
– Conhecemos suas ideias, isso deve significar alguma coisa.
– Para nós, com certeza, mas para essa plebe? – disse o mais velho – Acalme-se, tome o seu vinho e vamos pensar na melhor maneira de agir.
O jovem sentou-se de má vontade e se serviu de mais vinho. Quem sabe se ficasse bêbado pudesse esquecer o quadro de horror que acabara de testemunhar. Segurando a taça com força, olhou para o companheiro e perguntou:
– Será que os sacerdotes irão cumprir todos os rituais de sepultamento? – Interrompendo-se, voltou-se para o amigo. – Desculpe, não consigo parar de pensar nisso.
– Tranquilize-se e lembre que para ele, os deuses não tinham a menor importância. Deus podia ser a noite ou o dia, a guerra ou a paz, o inverno ou o verão, mas no final, era apenas fogo misturado a diferentes tipos de incensos. Tudo, para ele, era um grande e perene fluxo, uma tensão contínua dos opostos em luta. Portanto, o que os sacerdotes farão com o corpo não importa mais. Além disso, não podemos querer impor nossas ideias a essas pessoas. Ele não era bem quisto pela população e corremos o risco de sermos linchados se chegarmos com exigências.
Um barulho chamou a atenção dos dois. Uma comitiva de sacerdotes aproximava-se da praça. A multidão se afastou abrindo espaço. Pararam, no entanto, a uma distância considerável do corpo e designaram dois escravos para carregá-lo até uma carroça. O dono da taberna aproximou-se da porta para acompanhar o movimento.
– O que vão fazer? – perguntou o rapaz mais velho ao taberneiro.
– Parece que vão levá-lo ao templo de Ártemis, pois era lá que ele vivia nos últimos anos. Se não fosse pelo cheiro eu o deixaria apodrecer na praça. Velho idiota! – disse o homem, enquanto cuspia no chão.
Os dois jovens nada disseram. Em silêncio observaram a multidão se dispersar enquanto a carroça, puxada pelos escravos, era levada para longe da praça.
– O que faremos? – voltou a perguntar o mais jovem.
– Vamos seguir o cortejo. Nada podemos fazer, só nos resta prestar a nossa última homenagem.
– “Em nós existe o que está vivo e o que está morto, o que está desperto e o que dorme.
Cada uma dessas coisas, ao mudar, transforma-se na outra, e esta se transforma na primeira” – recitou baixinho o estudante mais jovem.
Em seguida levantaram e seguiram a macabra procissão, com os olhos firmemente postos nas colunas de mármore do magnífico templo de Ártemis, última morada do filósofo morto.
Heráclito, apelidado de “O Obscuro”, nasceu em Éfeso, cidade da Jônia (atual Turquia), por volta de 480 a.C. Por seu desinteresse por qualquer forma de poder e pelo desprezo que dedicava aos bens materiais, não era simpático aos efésios. Misantropo, viveu na solidão do templo de Ártemis. Ao contrair hidropisia – doença caracterizada pelo acúmulo anormal de líquidos nos tecidos ou em determinadas cavidades do corpo – decidiu recorrer a um curandeiro que o aconselhou a mergulhar em estrume. A partir daí, surgiram duas versões para a sua morte. A primeira é que teria sido atacado por seus próprios cães que não o reconheceram. E a segunda que teria morrido por sufocamento, tendo sido impossível retirar seu corpo do esterco.