Crônicas

Ridículos

Daniel Nonohay

Por Daniel Nonohay

Essa história ganhou fama na minha adolescência. Marcus, vamos chamá-lo assim, foi almoçar na casa da namorada, como fazia todo o final de semana. Naquele, específico, chegou atrasado e a família já estava sentada à mesa. Como já se sentia em casa, passou rapidamente por eles, dando um cumprimento geral, e foi direto lavar as mãos. Ao abrir a porta do lavabo, deu de cara com a avó da namorada, sentada no vaso sanitário. Os dois se encararam e o mundo congelou.

Na mesa, onde todos conversavam, alguém se deu conta da tragédia que estava para acontecer e deu um grito, tentando avisar. Já era tarde. A conversa morreu.

Eles devem ter se encarado por não mais do que dois segundos. Uma eternidade durante a qual o nosso herói, em choque, deve ter desejado derreter na própria vergonha e escoar ralo abaixo, sumindo, para não ter de encarar ninguém.

Isso não iria acontecer, contudo, e ele precisava fazer alguma coisa. Talvez, agir com naturalidade. Demonstrar que aquela soma de imprevidências cometidas por ele e pela avó – não bater na porta e não a chavear – eram erros bobos e corriqueiros. Nada de mais.

E, assim, o nosso herói tomou uma atitude. Abriu o sorriso, deu um passo para dentro do lavabo, abaixou-se e deu um bom-dia para a vovó. Ela, ainda sentada no vaso, com a saia arriada e paralisada. Um cumprimento com direito a dois beijos estalados na bochecha.

Virou uma lenda.

Quando menos esperamos, a vida nos joga em situações impossíveis. Aquelas nas quais você é exposto à zombaria pública, em frente aos seus parentes, amigos ou, ainda pior, de toda uma comunidade.

Esse é um dos nossos piores medos. O medo de ser ridicularizado em público. Aquele momento no qual você está no centro do palco da vida e todos apontam o dedo para você. E riem. Mas riem de você e não com você.

Quem nunca teve o pesadelo de estar pelado em frente aos outros? Andando na rua ou no local de trabalho, sem nenhuma roupa. Tentando se cobrir minimamente e se esconder. Sem saber como e porquê chegou àquela situação. Esse é o nosso medo subconsciente gritando no meio da noite e atrapalhando o nosso sono.

Por mais que tentemos evitar, a vida sempre encontra uma forma de nos colocar sozinhos no meio do palco.

O que diferencia uma pessoa da outra não é ser ou não exposta ao ridículo. De certa forma, todos somos ridículos e todos seremos expostos. O que nos diferencia é como reagimos à ridicularização pública.

Alguns, não suportam a lembrança pelo resto da vida.

Lembro-me ainda de outra história, uma antiga, contada por minha avó. Em meados dos anos 1930, a “corte” do noivo à noiva era algo formal e com regras bem delimitadas. Havia dia, hora e local definidos para que eles pudessem se encontrar, sempre diante dos olhos de alguém da família.

O nosso noivo chegou à casa da pretendente no horário habitual, em uma quarta-feira, no início da noite, e sentou-se na sala com os futuros sogros. A noiva, como sempre, retardava a sua aparição, para aguçar a curiosidade e o desejo do pretendente. Naquele dia, assim que se sentou, o pobre noivo sentiu uma indisposição estomacal forte. Muito forte. Agulhas, cobras e bombas de ar comprido explodiram em uma guerra na sua barriga.

Note-se que era impensável, naquela década, pedir permissão para ir ao banheiro na casa da noiva. Essa era uma descortesia e uma falta de polidez que poderiam colocar fim ao relacionamento. Ele, assim, manteve a conversa com sorrisos nervosos e com o suor escorrendo copiosamente pelas têmporas.

Em determinado momento, não aguentou mais e pediu permissão para ir à varanda fumar. Lá, ao menos, poderia aliviar parte da sua pressão. Ficou debruçado no parapeito. Olhava para a rua em sofrimento, enquanto travava uma intensa batalha contra a revolução intestina. O cigarro pendia mole, queimando esquecido na mão direita.

Nisso, a noiva apareceu, pé ante pé, às suas costas. Quando ela estava bem perto, enfiou um dedo de cada mão nas laterais da cintura do seu amado, um lugar onde sabia que ele sentia muitas cócegas, e gritou:

— Querido!

Primeiro, ele se empertigou, como se tivesse tomado um choque. Depois, todo o seu autocontrole se esvaiu, junto com tudo aquilo que segurava dentro de si, em meio a um barulho parecido com um trovão molhado. Ato contínuo, e sob o olhar aterrorizado da noiva, saiu correndo, deixando-a para trás, sozinha e com o cheiro da sua vergonha.

Nunca mais foi visto naquela casa.

Infelizmente, não há uma receita do que fazer durante as situações impossíveis. Depois delas, contudo, uma coisa é certa. Quanto mais a sério nos levamos e quanto mais perfeitos nos consideramos, maior será o nosso sofrimento.

Para enfrentar as consequências das armadilhas da vida, é necessária uma boa dose de autoindulgência. Tentar melhorar, sim, mas aceitar que sempre podemos fazer o papel de bobo. Aprender a rir de si mesmo é fundamental para a sanidade. Passar o braço pelos ombros do ridículo e rir com ele até chorar, essa é a cura.

A única coisa que constrange o sorriso de deboche é rir dele com um sorriso sincero.

Daniel Nonohay é natural de Porto Alegre. É casado e pai de duas filhas. Juiz do trabalho, escreveu o seu primeiro romance à mão, em dois cadernos pautados, quando tinha 17 anos. É autor de artigos técnicos, na área do Direito, e políticos que foram publicados em livros, jornais e sites. Organizou livros de coletâneas. É colorado. Atuou como professor e é pós-graduado em Direito do Trabalho, Direito Processual do Trabalho e Direito Previdenciário. Foi Presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho do Rio Grande do Sul. Atualmente, aproveita cada segundo livre para escrever, a sua grande paixão (depois, é claro, das “suas mulheres”). Mais informações: http://www.danielnonohay.com.br/

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