A OUTRA FACE DE UM ÍDOLO – PARTE 1
Margarete Hülsendeger
Não é bom tocar nos ídolos; o dourado pode sair nas nossas mãos.
Gustave Flaubert
Não conheço ninguém que não tenha, em algum momento da vida, experimentado o amor sem reservas que só um ídolo é capaz de despertar. Há os que veneram atores e atrizes, outros preferem astros de rock e há aqueles que adoram escritores e pintores. A verdade é que não faltam homens e mulheres fascinantes no mundo e, portanto, heróis e heroínas com os quais podemos nos identificar. Eu, é claro, não sou uma exceção.
Apaixonei-me perdidamente inúmeras vezes, sempre por seres inalcançáveis. A consequência desses amores de mão única é óbvia: sofri como só os apaixonados são capazes de sofrer. Com a maturidade, a “paixonite” da adolescência foi sendo substituída pela simples e saudável admiração. Essa mudança de foco trouxe, no entanto, o conhecimento de que meus antigos e novos heróis tinham não só qualidades, mas defeitos difíceis de ignorar. Descobri, talvez, um pouco tarde, que todos os ídolos, por mais maravilhosos que pareçam, têm pés de barro.
Um de meus “ídolos de pés de barro” é considerado até os dias de hoje uma das mentes mais brilhantes que a humanidade já produziu. A palavra “gênio” é pouco para definir a personalidade complexa desse homem. Estou me referindo ao filósofo natural e matemático, Isaac Newton (1643 – 1727).
Newton envolveu-se com os mais variados assuntos – Mecânica, Óptica e Engenharia –, criou uma matemática própria – o Cálculo Diferencial e Integral – permitindo que leis universais fossem enunciadas de forma precisa e racional. Porém, essa genialidade não conseguiu encobrir os problemas de comportamento que o acompanharam durante toda a vida. Além de ser avesso a qualquer tipo de crítica ou debate, Newton era introspectivo, misógino, irascível e, por consequência, um indivíduo antipático e completamente antissocial. Suas brigas com outras personalidades importantes da História da Ciência aumentaram ainda mais a sua fama de homem com um “temperamento difícil”.
Meu ídolo, com certeza, tinha pés de barro extremamente frágeis.
Duas contendas em especial se destacam em sua biografia. A primeira com o cientista experimental inglês Robert Hooke (1635 – 1703). E a segunda com o filósofo, cientista e matemático alemão Gottfried Leibniz (1646 – 1716). Neste vou apresentar a polêmica envolvendo Newton e Hooke e no próximo mês a disputa entre Newton e Leiniz.
Robert Hooke é um daqueles personagens da ciência que alguns já ouviram falar e poucos sabem quem realmente ele foi. Contudo, suas contribuições ao estudo dos fenômenos naturais são inquestionáveis. Ele inventou o microscópio composto, escreveu um livro chamado “Micrographia”, repleto de gravuras de organismos observados em seu microscópio, foi autor de uma lei que descreve o comportamento das molas e um dos fundadores de uma das sociedades científicas mais antigas e respeitadas no mundo, a Royal Society.
Newton e Hooke tiveram o seu primeiro debate público quando discordaram sobre a natureza da luz. O primeiro defendia uma natureza corpuscular, enquanto o segundo acreditava em uma natureza ondulatória. No entanto, é preciso esclarecer que Hooke fazia apenas eco a outras vozes igualmente importantes da época, como o matemático e astrônomo holandês Christian Huygens. Na tentativa de esclarecer os dois pontos de vista, Newton foi chamado para o debate várias vezes, mas comportando-se como uma criança birrenta, sempre recusou. Sua ojeriza à discussão, assim como a sua baixíssima tolerância à crítica, fez com que seu trabalho sobre a luz – Opticks – ficasse oculto por 32 anos!
Porém, a inimizade entre os dois homens não teve como motivação principal a discordância sobre a natureza da luz. Antes disso, uma crise mais séria já havia ocorrido.
Na sua obra mais importante – os Principia Mathematica – Newton apresentava as três leis do movimento dos corpos, assim como a Lei da Gravitação Universal, demonstrando matematicamente que a força de atração entre os corpos variava com o inverso do quadrado da distância. O problema é que essa ideia já havia sido explorada, em anos anteriores, por Hooke. Inclusive, esse tinha trocado cartas com Newton explicando a sua concepção sobre o movimento dos planetas. Portanto, qual não foi a surpresa de Hooke quando soube que nos Principia não havia nenhuma referência ou agradecimento a ele.
É claro que, para os historiadores, não importa quem teve a ideia, mas quem conseguiu perceber a sua importância e integrá-la numa teoria coerente do ponto de vista físico e matemático. E essa proeza foi, sem dúvida alguma, de Newton. No entanto, coloquem-se no lugar de Hooke. Imaginem o que ele deve ter sentido? Ou melhor, o que deve ter dito em alto e bom som diante de vários de seus colegas da Royal Society? Cobras e lagartos com certeza!
Newton sendo Newton nunca perdoou Hooke. As críticas e as acusações só o tornaram ainda mais recluso e antipático. Ele ficou enfurecido e pediu o seu afastamento da Royal Society. Inclusive, as más línguas, dizem que a famosa frase, “Se eu vi mais longe, foi por estar de pé sobre ombros de gigantes”, não se tratava de uma homenagem aos seus antecessores (Kepler e Galileu), mas um deboche a Hooke, pois este, devido a um desvio da coluna, via-se forçado a andar curvado, parecendo tudo, menos um gigante.
Essa situação desconfortável e constrangedora só veio a se alterar quando Hooke morreu. Aliás, essa morte trouxe inúmeros benefícios a Newton. Ele não só autorizou a publicação do livro Opticks, como aceitou retornar a Royal Society, tornando-se, em poucos meses, seu presidente.
Segundo os biógrafos, o poder exercido por Newton durante seu tempo como presidente da Royal Society pode ser descrito como despótico. Ele comparecia a todas as reuniões, comentava quase todos os trabalhos e escolhia os membros do conselho. Aqueles que quisessem permanecer como membros da sociedade tinham de estar em absoluta sintonia com as ideias de seu presidente. E foi usando esse poder que ele perpetrou sua maior vingança contra o colega falecido.
Reza a lenda que uma de suas primeiras decisões foi retirar do prédio qualquer quadro que retratasse Hooke. Com esse ato, ele sepultava não só o homem, mas qualquer representação dele.
Assim era Newton, um gênio inconteste, mas um ser humano com uma personalidade muito complicada. E se os problemas de relacionamento de meu ídolo se restringissem apenas a esse episódio com Hooke, seria possível até relevar. No entanto, a verdade é que ele não sabia fazer amigos. Muito pelo contrário.
Continua…