Fernando Protti Bueno
Recentemente o Senado aprovou a PEC 50/2016, a ‘PEC da Vaquejada’, que estabelece que as práticas que envolvem o uso de animais não serão consideradas maus tratos, desde que por força de lei, haja o título de patrimônio cultural a estas.
Isso porque em novembro de 2016, o Congresso aprovou a lei 13.364, que “eleva o rodeio, a vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestação cultural nacional de patrimônio cultural imaterial”.
Dessa forma, conseguiram pelos meios jurídico-institucionais atender a Constituição Federal quanto ao direito à valorização cultural e à realização de manifestações culturais (art. 215), ao mesmo tempo em que não submete os animais à crueldade (art. 225).
Nesse ínterim, ressalta-se que a UNESCO compreende o patrimônio cultural imaterial enquanto “as expressões de vida e tradições que comunidades, grupos e indivíduos em todas as partes do mundo recebem de seus ancestrais e passam seus conhecimentos a seus descendentes”. Contudo, o patrimônio e a cultura são bens volúveis em função do constante processo de revitalização das culturas e das interações globais entre as diferentes culturas e seus valores.
Assim sendo, é fato que rodeios e/ou vaquejadas, entre outras práticas e eventos, fazem parte do escopo cultural de um povo, contudo, a que pese a questão da manifestação e da herança cultural, a maior e mais significativa expressão cultural está devidamente marcada na memória, passível de ser expressa por diferentes modos. Nesse sentido, o aspecto imaterial da cultura estaria expresso na figura do homem, assim como em suas tradições, em seus saberes, em seus afazeres e em seus modos de agir, como, por exemplo, atrelado a vestimenta, a alimentação, a linguagem etc.. Assim, também se constituiria as relações que o homem estabelece com os animais, como, por exemplo, o boiadeiro, o vaqueiro, o pantaneiro, o do pampa, entre outros.
Em tese, os animais não precisariam servir ao propósito dos seres humanos para nenhuma finalidade, ainda mais na contemporaneidade, contudo, é fato e a história nos traz que os animais foram essenciais na constituição do homem, das cidades e da sociedade como um todo.
Entretanto, nem por este motivo, na atualidade, os animais precisam servir enquanto objeto à espetacularização, pois os referidos eventos poderiam de sobremaneira preservar e expressar a cultura a eles inerente, sem necessariamente promover a crueldade para com os animais. Isto porque em rodeios e em vaquejadas (além de outros), os animais são brutalmente maltratados por meio de agressividade e violência, não lhes sendo garantido a integridade física ou mental. Há quem duvide ou até não acredite, mas, alguns animais são sacrificados no próprio local do evento (ou posteriormente quando não mais servem aos mesmos), assim como a muitos outros resta lesões e sofrimento.
Nesse sentido, tem sido cada vez maior o desuso de animais em espetáculos, eventos e/ou noutros espaços e equipamentos de entretenimento, não só por ser inconstitucional e ilegal, mas também devido ao atual descrédito promovido pelos maus tratos aos animais que existe em circos, zoológicos, parques temáticos e aquáticos, hotéis fazenda, entre outros, assim como também em pescarias ditas esportivas. Se a intenção fosse a contemplação e a admiração da beleza cênica e faunística, tão mais interessante e propício seria a visita à natureza e o encontro, ainda que mantida a distância e o respeito, com animais em seu hábitat.
Em vista disso, a aprovação no Senado, nada mais revela do que dois pontos básicos: retrocesso social na relação entre seres humanos, sociedade e natureza (ainda que nesse caso representada pelos animais sencientes – aqueles capazes de sentir, passíveis de apresentar dor e sofrimento), afinal, na esteira desse pensamento e dessa conduta, adiante poderão simplesmente ser considerados patrimônio imaterial a caça, as rinhas, a corrida de touros, entre outros tipos de práticas de tortura e de crueldade para com os animais; e clarificação dos interesses políticos em torno desse assunto, pois nesse jogo de interesses, se tem pessoas altamente envolvidas com questões ruralistas, que detém participações e/ou ações em empresas privadas e que lucram com a manutenção destes eventos.
Em contraponto, ainda que sob a alegação de que os animais não sofrem maus tratos e de que há regras e acompanhamento veterinário dos mesmos nestes eventos, ressalta-se que somente o fato do animal lá estar presente, já se evidencia estresse, tortura, confinamento, dor, agressões etc.. Ademais, ainda que possa pesar a justificativa de que esse foi o meio encontrado para a manutenção dos empregos e da renda das milhares de pessoas direta e indiretamente envolvidas com tais eventos, é importante frisar que muitos desses eventos, apesar do aspecto cultural, atraem público e geram renda especificamente devido as atrações musicais exibidas na programação.
Portanto, o que de fato se tem, é a crueldade em forma de espetáculo, e, nesse sentido, considero que os indivíduos de uma sociedade que não conseguem ver e sentir dor e sofrimento pelos animais, por exemplo, tão pouco conseguirão sequer destinar alguma atenção ou gesto de carinho e/ou solidariedade ao outro ser humano. Afinal, estamos diante de uma cultura da crueldade. Por isso, é preciso repensar sobre todas as práticas ou usos que envolvam os animais, inclusive aqueles voltados ao entretenimento.
Fernando Protti Bueno é especialista em Turismo da Unesp de Rosana.