Crônicas Margarete Hülsendeger

O primeiro ano

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O PRIMEIRO ANO

Margarete Hülsendeger

 

Poucas pessoas conseguem chegar à meia idade sem saber que existem portas que podiam ser abertas e que ainda podem.

Doris Lessing (Amor, de novo)

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS

Sem vergonha ou constrangimento confesso: acredito no sobrenatural. Para quem sabe que durante metade da minha vida ensinei física para adolescentes, minha confissão pode parecer um paradoxo. No entanto, há algum tempo entrei em um acordo comigo mesma, atingindo um certo equilíbrio entre o que fui ensinada a defender e no que, por vontade própria, passei a acreditar. Portanto, lido bem com essas duas facetas da minha personalidade – a mística e a racional – sem abrir mão de nenhuma delas.

Essa introdução teve como propósito preparar o “ambiente” para minha segunda confissão: antes de decidir se deveria, ou não, me aventurar na seleção de um doutorado, consultei, não só o tarô, mas o baralho dos anjos e até mesmo o pêndulo. A consulta foi feita a uma pessoa da minha extrema confiança e que era mestre em todas essas técnicas alternativas, não regidas pelas leis da física.

A pergunta devia ser feita da maneira mais simples possível e de forma direta: devo fazer a seleção para o doutorado?

A resposta veio rapidamente: não!

Não acreditei – “Como assim?!”, perguntei um pouco indignada.

Imperturbável meu amigo e mestre sugeriu que eu fizesse a pergunta de outra forma. Tentei de novo: vou reprovar se fizer a seleção de doutorado?

Resposta do pêndulo e do tarô: sim!

Lembro que essa primeira consulta foi pelo telefone, o mestre em uma viagem de férias pelo Caribe e eu aqui em Porto Alegre, escrevendo minha dissertação de mestrado. O pobre homem preocupado pediu um tempo para fazer outras consultas dessa vez com mais calma, sem minha voz indignada gritando no telefone, “COMO ASSIM?!”.

Mais tarde, naquele mesmo dia, ele envia uma mensagem pelo whats dizendo que nada havia mudado. O doutorado não era uma boa ideia, eu iria reprovar se tentasse, devia esperar um ano, aproveitando o tempo para relaxar. E, enquanto meu silêncio aumentava, ele repetia: agora não era o momento, quem sabe, transformo 2016 em meu ano sabático.

Dois meses depois ele veio de visita a Porto Alegre e aproveitamos para repetir todo o processo, dessa vez cara-a-cara, comigo escolhendo as cartas e olhando fixamente para o pêndulo enquanto ele se movia. As respostas foram exatamente as mesmas e podemos colocá-las na seguinte forma: “Prezada Margarete, não faça a seleção! Você vai reprovar e, no processo, surtar”.

O que esses “instrumentos de adivinhação” não previam era a minha teimosia e o fato de gostar de um desafio. Assim, depois de alguns poucos dias de vacilação decidi arriscar, pois como diz o velho ditado: “quem não arrisca não petisca”. Inscrevi-me, encaminhei a documentação, fiz a prova escrita, a entrevista e pasmem: fui aprovada! Não vou divulgar minha classificação, não porque quero parecer modesta, mas porque isso realmente não é importante. O importante era passar, ganhando uma bolsa. Consegui as duas coisas! E adivinhem para quem foi uma de minhas primeiras ligações? Sim, meu mestre nas artes do oculto!

Durante dias senti uma sensação tão boa, mas tão boa, que andava nas nuvens, com um sorriso bobo no rosto o tempo todo. Aos 53 anos ia começar um doutorado! A família e os amigos ficaram felizes por mim, mas não era difícil perceber em suas expressões o pensamento de que eu tinha “meio que” enlouquecido. E agora aqui estou no final do primeiro ano, olhando para trás e não me arrependendo da decisão tomada.

Aprender coisas novas, adquirir um vocabulário completamente novo, passar feriados e finais de semana lendo e escrevendo, participar de eventos que me permitiram conhecer pessoas diferentes (algumas muito interessantes, outras nem tanto), tem sido para mim uma experiência quase “mística”. Isso sem contar os textos publicados, outra emoção imensa, ver meu nome estampado em artigos de revistas, anais de eventos e até mesmo em capítulos de livro.

Meus colegas mais jovens, muitas vezes, não entendem o meu entusiasmo, acham que sou um pouco “descompensada”. Para alguns deles, é difícil entender porque uma mulher de meia-idade, professora aposentada, gostaria de se envolver com estudos, a cada semestre mais intensos (e isso que nem comecei a escrever a tese), quando poderia estar em casa “curtindo” a vida. O que eles não compreendem, talvez porque são jovens demais, é que estudar sempre foi minha forma de “curtir” a vida. Amo escrever, adoro ler e estar perto de pessoas que têm tanto a me ensinar é uma experiência, não apenas emocionante, mas muito gratificante.

Agora com 54 anos bem completos, estou encerrando esse primeiro ano consciente de que a decisão de iniciar o doutorado pode ter ajudado a acrescentar algumas rugas do meu rosto e fios brancos nos meus cabelos. Porém, meu espírito (lembrem, tenho uma metade mística), essa parte de mim que se recusa a envelhecer, deve ter remoçado uns bons 30 anos. Gosto de pensar que se mantiver minha mente em pleno funcionamento, meu corpo vai acompanhar e as rugas e cabelos brancos não serão notados quando aos 60 anos estiver diante da banca defendendo a minha tese.

E o sobrenatural? Onde ele entra nisso tudo? Depois que as previsões nefastas não se concretizaram deixei de acreditar e abracei o meu lado racional? De jeito nenhum! Continuo acreditando, continuo consultando os anjos, o tarô, o pêndulo, fazendo minhas mandingas, pois elas me dão estabilidade para enfrentar as dificuldades e, consequentemente, os momentos de fraqueza e desânimo que, muitas vezes, sofro. O fato das previsões não terem se concretizado apenas reforça a ideia de que não há nada mais forte do que a nossa mente. É ela que remove montanhas, aplaina terrenos e faz da superação um modo de vida.

Então, digo adeus a 2016, agradecendo por tudo que me foi oferecido. E dou as boas-vindas a 2017, pedindo aos meus anjos de guarda que permaneçam ao meu lado, mesmo que seja para desafiá-los.

HÜLSENDEGER, Margarete Jesusa Varela Centeno . O PRIMEIRO ANO. REVISTA VIRTUAL PARTES, SÃO PAULO, 06 dez. 2016.

 

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