Povos Indígenas e a Constituição Do Estado De Rondônia – Município de Ji-Paraná: enredos históricos
Rozane Alonso Alves[*]
Jonatha Daniel dos Santos[†]
RESUMO: Este trabalho é um recorte das Dissertações de Mestrado (PUCRS e UFRGS). Neste trabalho as discussões estão à volta da formação do estado de Rondônia e os enredos de poder, numa perspectiva pós-estruturalista, e suas relações com as populações indígenas desta região. Para tanto, apresentamos, apropriando-nos das historicidades que envolvem ambos os campos – Formação do Estado e População Indígena, a questão da territorialidade e do contato com os desconhecidos que neste espaço iam chegando, que denomino Estrangeiros com base em Bhabha (1998).
Palavras-Chave: Formação do Estado, Povos Indígenas, Territorialidade, Relações de Poder.
Formação do Estado de Rondônia: os enredos da relação de poder e as populações indígenas
Dentro do que Foucault (1995, p. 231) denominou como práticas divisórias, “o sujeito é dividido no seu interior e em relação aos outros. Exemplos: o louco e o são, o doente e o sadio, os criminosos e os bons meninos”, e porque não falar em indígena e não indígena? Ao retomar o processo histórico da colonização da Amazônia, especificamente o Estado de Rondônia, penso nas relações de poder existentes entre os indígenas e as populações não indígenas. Esta relação de poder produziu e produz atualmente uma nova estrutura no que se refere a identidade destes grupos indígenas. Essas novas estruturas são percebidas, se assim posso dizer, a partir dos enredos que foram e vão construindo os espaços sociais e geográficos do Estado.
O que se percebe, analisando e me utilizando de estudos – pesquisas acadêmicas da Universidade Federal de Rondônia – UNIR, voltados aos indígenas de Rondônia, é que com os deslocamentos destes espaços, as populações indígenas tiveram que se reorganizar frente ao novo, ao desconhecido que também naquela região se instalava, como é o caso dos extrativistas advindos de outras regiões do país, operários da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré – EFMM, entre outros que nesta região iam chegando. Podemos falar destes encontros e desencontros recentemente, com a construção da hidrelétrica de Jirau em Porto Velho, capital do Estado. Desconhecido este, que aqui denominei me apropriando das leituras de Homi Bhabha de “estrangeiro”.
Esse processo de complementaridade como suplemento agonístico e a semente do “intraduzível” – o elemento estrangeiro em meio a performance da tradução cultural. E é esta semente que se transforma na famosa, rebuscada analogia do ensaio de Benjamin: ao contrario do original, em que frota e casca formam uma certa unidade, no ato da tradução o conteúdo ou assunto e tornado desconectado, subjugado e alienado pela forma da significação, como um manto real de amplas dobras. […] Estou mais comprometido com o elemento “estrangeiro” que revela o intersticial, que insiste na superfluidade têxtil de dobras e pregas e que se torna o “elemento instável de ligação” a temporalidade indeterminada do intervalar, que tem de participar da criação de condições pelos quais “o novo entra no mundo”. O elemento estrangeiro “destrói também as estruturas de referenda e a comunicação de sentido do original” não simplesmente negando-o, mas negociando a disjunção em que temporalidades culturais sucessivas são “preservadas no mecanismo da história e ao mesmo tempo canceladas. O fruto nutritivo do que é historicamente entendido contém o tempo como uma semente preciosa mas insípida” . E através dessa dialética da negação cultural como negociação, esta cisão entre casca e frota por meio da agencia da estrangeiridade, propósito e, como diz Rudolf Pannwitz, não de “transformar o híndi, a grego, o inglês em alemão, mas, ao contrario, transformar o alemão em híndi, grego, inglês” (BHABHA, 1998, p.312)
Falo dessas estrangeiridades, dessas reorganizações espaciais, pensando nos processos de produção de identidade que de certa forma foram repensados, hibridizados. As perdas territoriais, e as representações que elas têm e contam sobre determinadas etnias. Talvez não seja o caso de falar com tanta certeza, mas de certa forma atentar houve um descolamento identitário, se pensarmos nestas mudanças territoriais. Um dos fatores que produz estas reorganizações se refere, segundo Scaramuzza (2009, p.21) “às discussões sobre os ideais de desenvolvimento como sendo de fundamental importância para o entendimento da chegada do novo”, neste caso os estrangeiros, sujeitos com diferentes maneiras de pensar sobre esta territorialidade, bem como os jeitos de nela se viver. O desenvolvimento de um território que trago por meio dos escritos de Scaramuzza (2009) se apresenta como um conceito discursivo, carregado de significações e estratégias de aproximações. Estas estratégias vão funcionar, a meu ver, frente às leituras e releituras dos dizeres, do falar de si, das positividades de ser o não indígena.
Relendo textos que discutem a questão indígena do Estado, me deparei novamente com a Tese da Professora Dra Josélia Gomes Neves (2009). Nela consta o relato de Alcione Arara que fala das mudanças decorrentes da chegada deste novo ao estado. Ela relata que
Trago este excerto para tentar dar conta de como as populações indígenas foram vistas ao longo da história e como estes olhares compõem as relações entre os indígenas e não indígenas do estado de Rondônia. Para pensar também sobre as populações indígenas que hoje se encontram no espaço geográfico que atualmente é denominado/caracterizado como Município de Ji-Paraná.
Busco os estudos de Walsh (2009), quando trata do processo de construção territorial da Amazônia, ao discutir a chegada desses estrangeiros. A autora mostra como esses estrangeiros irão ver os indígenas, dizer e falar sobre os mesmos. Nos estudos da autora, o termo que utiliza e que vai descrever as populações indígenas de acordo com estas estrangeiridades seria o de um ser inferior, sem cultura. O processo de colonização do Estado, vai se apropriar desses discursos, bem como do conceito de desenvolvimento para fundamentar sua chegada e permanência no território que antes pertencia aos indígenas.
Esta permanência, acaba de certo modo, produzindo no sujeito-indígena, novos valores simbólicos e culturais, ou seja vão se agregando estes com os valores tradicionais das populações indígenas, no que se refere aos seus costumes, suas tradições que são cotejadas pela perda do seu local, da sua terra, da sua cultura. Exemplos desta perda são encontrados atualmente no que se refere aos indígenas do Estado de Rondônia, especificamente no Município de Ji-Paraná, que para realizarem um ritual da sua cultura, do seu grupo étnico no cemitério indígena, atualmente, esses precisam da autorização do proprietário – fazendeiro, das terras – terras essas que pertenciam às populações indígenas, onde hoje foi construído um curral – em cima do cemitério sagrado dessa comunidade.
Não é intrigante que a condição de exílio dos indígenas (forçados a deixar suas terras, que foram usurpadas, loteadas, vendidas a agricultores) seja hoje questionada? Não é espantoso que se pense que a expulsão dos povos indígenas (com a força das armas e de um modelo unilateral de desenvolvimento) seja utilizada como argumento para defender a “perda” do direito tradicional sobre suas terras? Mais paradoxal ainda é a polêmica protagonizada hoje, por exemplo, por parlamentares e membros do poder Executivo que, mesmo não estando “aqui” durante o período autoritário e ditatorial, reconquistaram o direito de retomar a tradicional vinculação com sua terra natal e são brasileiros o bastante para ocupar altos postos do governo, para representar os cidadãos e suas demandas. (BONIN, 2013)
Trago estes questionamentos justamente para tentar dar conta destes pedidos para se retornar a ter contato com o território que representa muito mais que um espaço geográfico. Representa o sagrado, a ancestralidade, a tradicionalidade, enfim, os representa e os constitui como a população indígena, neste caso, os Arara Karo de Rondônia.
Como isso está diretamente ligado ao capital econômico que se produz por um determinado grupo que está historicamente ligado aos ciclos da borracha, a construção da EFMM, construção da BR 364 que liga o estado as demais regiões do país, os programas latifundiários – loteamentos que adentraram as terras indígenas. Estes registros históricos vão compor a colonização do Estado e, tiveram como participantes sujeitos advindos de todas as regiões do Brasil, como os alemães e os americanos dentre outros, principalmente, quando estes chegaram para a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Trago estes fatos para que se possa pensar nos embates destes encontros/contatos entre estrangeiros e indígenas e lembrar como esses embates acontecem dentro de outros espaços como o da escola.
Segundo Sarmento (2007, p.23) a interculturalidade passa pelas trocas culturais leva consigo a dissociação das representações políticas e simbólicas, ela “exprime a interação dialógica entre as múltiplas culturas”. No entanto, o mesmo capital que reconhece a cultura indígena reorganiza sua estrutura de poder por meios de padrões neoliberais, uma vez que reconhecer não significa – no caso do poder capitalista, aceitar as alteridades culturais existentes em todo meio social. Neste sentido, a “lógica multicultural” socializada pelo capitalismo, está relacionada à questão de um novo sentido. Sentido esse, que aborda como eixo central de sua estrutura, um novo significado ao tema intercultural organizando esta estrutura como forma de relações de poder, poder que é circular e sempre possível de resistência, de luta, de liberdade.
Como já citei acima, nos períodos do ciclo da borracha, a construção da BR 364 e a migração de sujeitos oriundos de outras localidades do Brasil, criaram um modo especial de se relacionar entre as populações indígenas e os seringueiros, bem como com os migrantes, seja de distanciamento ou de aproximação. Esta relação foi marcada pelo confronto direto entre estas culturas.
Pensando neste confronto pode se perceber que a organização populacional do Estado de Rondônia é marcado por um sentimento de exclusão mais ampliado para as sociedades indígenas, segundo Mindlin (1985, p.17) “a imigração brasileira para Rondônia foi grande e, seus efeitos se fizeram sentir sobre a população indígena, com lutas e mortes”. Neves4 acrescenta que após trinta anos da construção da BR 364 existe uma situação de pós-contato, onde registra-se a presença de indígenas na cidade, e consequentemente nas escolas.
Talvez seja o caso de localizar de que lugar-espaço eu falo nessa proposta, trato especificamente do município de Ji-Paraná, no interior do estado de Rondônia, onde a pesquisa toma forma e corpo. Atualmente o Município tem cerca de 166.610 mil habitantes (IBGE, 2010) e aproximadamente 6.897 Km², localizada na Amazônia. Algumas pesquisas apontam para uma expectativa de 200.000 mil pessoas em Ji-Paraná. Considerada a segunda cidade maior do Estado, Ji-Paraná
Apresenta três grandes divisões: uma parte destinada a zona urbana e camponesa, com dois distritos – Nova Colina e Nova Londrina, além de entorno composto de plantações e fazendas; outra parte destina-se à Terra Indígena Igarapé Lourdes, e a parte onde se localiza a Reserva Biológica do Jaru. Há uma forte presença indígena e ambiental no município, devido principalmente à existência da Reserva Biológica do Jaru – REBIO Jaru e a própria T. I. Igarapé Lourdes, território das etnias Arara-Karo e Gavião-Ikolen que estabelecem várias relações com a cidade – instituições, serviços e moradores. Há vários vestígios que outros povos, aparentemente extintos, como os Urupá, habitaram a região. Observamos que é muito comum encontrar na cidade de Ji- Paraná – o nome Urupá: Rio Urupá, bairro Urupá, Madeireira Urupá, café Urupá, Palácio Urupá (Câmara de Vereadores), entre outros. (NEVES, 2009, p.79)
Enquanto Ji-Paranaense não posso deixar de mencionar, assim como Josélia Neves (2009, p.79)5, em sua tese de doutoramento, quando apresenta alguns aspectos da formação da população do município, inicialmente composta por nordestinos, que por volta de 1879 “tentavam escapar da seca, próximo ao rio Urupá, que recebeu este nome em função dos indígenas que ali viviam”. O que fundamenta com evidências importantes a problematização frente questão do Povo Urupá em Ji-Paraná, e sua extinção, se assim posso dizer. Neves (2009, p.80), ainda ressalta que
No inicio do século XX, por ocasião da implantação da rede telegráfica coordenada pelo Marechal Rondon – a Estação Telegráfica Presidente Pena, o povoado passa a ser chamado também por este nome, por sinal pertencente ao presidente da República da época. Em 1943 com a criação do Território Federal de Rondônia e, definidos os limites dos seus dois municípios – Porto Velho e Guajará – Mirim, mais uma vez a localidade de Urupá, depois Presidente Pena, passou à condição de distrito, sendo chamado de Rondônia, sob a Jurisdição de Porto Velho. Depois houve uma nova alteração no nome, passou a Vila de Rondônia até 11 de outubro de 1977, e de Ji-Paraná, através da Lei nº 6.448 de 11 de outubro de 1977 tendo em vista sua atual condição de município. A denominação de Ji-Paraná, foi atribuída, como homenagem ao Rio Ji-Paraná que atravessa toda sua área de Sul para o Norte dividindo a cidade em dois setores urbanos, o 1º distrito e o 2º distrito. Assim, é possível compreender que a história de Ji- Paraná está profundamente vinculada aos chamados ciclos econômicos de desenvolvimento ocorridos em Rondônia, a partir do inicio da segunda metade do século XIX.
Os ciclos da borracha, as linhas telegráficas, a construção da BR 364, as chegadas dos migrantes, os projetos latifundiários. Todos estes movimentos de organização de uma população e a produção do desenvolvimento econômico do estado promoveram a reestruturação e o deslocamento dos povos indígenas de Rondônia, e, consequentemente, dos que hoje habitam a T. I. Igarapé Lourdes. O território tradicional do povo Gavião – Ikolen “era localizado provavelmente nas proximidades do Rio Branco do Aripuanã no atual estado do Mato Grosso” (NEVES, 2009, p.122). No trabalho de campo, Neves (2009) a partir do depoimento de um dos seus entrevistados indígenas, da etnia gavião, ressalta que atualmente as terras antigas do Rio Branco que carregam muito de seus mortos, estão nas mãos dos fazendeiros que os atacaram e, por isso, eles acabaram adentrando as terras dos Arara-Karo.
No dia de um dos ataques, o pajé Arara Katxi-Karingap pintou-se de jenipapo no rosto, costas e peito, um possível ritual de morte que se aproximava, considerando a visita inesperada dos Gavião-Ikolen: “[…] Assim vai ser a nuvem vermelha na parte da tarde. O meu espírito vai ser uma lembrança da parte da tarde”. Seu temor infelizmente se concretizou: foi morto com um tiro disparado pela arma do Pajé Txiposegov Gavião. (NEVES, 2009, p.107)
Sobre esses fatos existiram e existem outros meios de dizimação das populações indígenas, doenças, como a gripe e o sarampo advindos do contato com o não indígenas; ou mesmo os próprios confrontos entre etnias, indígenas e seringalistas ou fazendeiros. Reduzindo-os, atualmente a poucos. É em meio a estes conflitos ainda recentes no Estado e em Ji-Paraná que as populações indígenas se encontram. Com base no IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2010, na Terra Indígena Igarapé Lourdes existem 918 indígenas e 1.130 indígenas em toda a localidade de Ji-Paraná. Contudo, temos aproximadamente 205 indígenas na cidade de Ji-Paraná.
Muitos indígenas vão se dizer cablocos expressando nesse dito as marcas de políticas públicas que durante as décadas de 1970 até meados de 1990 não possibilitavam a esses indígenas o retorno as suas terras, de modo a se afirmarem novamente como um povo indígena. Acredito que neste processo, também houve uma hibridação cultural como explica Hall (2001), que foi provocada pela necessidade no que se refere a sua alteridade cultural e, consequentemente, a produção de uma nova identidade cultural. Ou seja esse acaboclamento é caracterizado por uma hibridação cultural, com uma “fusão entre diferentes tradições culturais” como nos sugere Hall (2001, p91) ao afirmar que isso ocorre pelas incertezas políticas e sociais.
Referências:
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomás Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 6. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico: Senso de 2010 – População indígena de Rondônia. Disponível em: http://indigenas.ibge.gov.br/ images/indigenas/estudos/indigena_censo2010.pdf. Acessado em Maio de 2013.
MINDLIN, B. Nós Paiter: os Suruí de Rondônia. Petrópolis: Vozes, 1985.
NEVES, Josélia Gomes. Cultura escrita em contextos indígenas. Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus Araraquara, 2009. p.369. Tese (Doutorado em Educação Escolar).
SARMENTO, Manuel Jacinto. Culturas infantis e interculturalidade. In: DORNELLES (org) Produzindo pedagogias interculturais na infância. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
SCARAMUZZA, Genivaldo Frois. Os espíritos perdem o couro. Universidade Federal de Rondônia, Núcleo de Ciências e Tecnologias. Departamento de Geografia, Campus de porto Velho, 2009. p. 169. Dissertação ( Mestrado em Geografia).
[*] Professora da Universidade Estadual de Goiás – UEG, Campus Porangatu. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. Email: rozanealonso@gmail.com.
[†] Mestre em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Email: dholjipa@gmail.com