Crônicas Margarete Hülsendeger

A genética da solidão

 

http://zombilerindunyasi.blogspot.com.br/2013_05_01_archive.html

A GENÉTICA DA SOLIDÃO

Margarete Hülsendeger

O único problema da solidão consiste em como preservá-la.

Mario Quintana

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

Gosto muito de escrever sobre pesquisas, quanto mais estranhas melhor, e se o assunto tem relação com o comportamento humano não consigo resistir. Algumas chegam a ser divertidas de tão bizarras. Outras, com o selo da ciência, são interessantes e até instigantes. E, é claro, têm aquelas sobre as quais não vale a pena falar e, muito menos, escrever.

A pesquisa abordada neste texto encontra-se na categoria “científica” e foi realizada na Universidade de Pequim. Segundo a fonte de onde retirei a notícia, um grupo de cientistas chineses, a partir de um estudo sobre o gene 5-HTA1, responsável por afetar o hormônio do humor, a serotonina, teria encontrado a primeira evidência de que fatores genéticos têm influência na construção de relacionamentos. Apesar de a notícia não ser nova – o estudo foi publicado no portal Scientific Report em 2014 –, o assunto continua sendo motivo para debates, pois muitas pessoas ainda resistem em reconhecer que problemas físicos podem desencadear problemas emocionais e vice-versa. Atitude um tanto retrógrada (para não dizer infantil) já que há algum tempo sabe-se que mente e corpo fazem parte de um sistema complexo em constante inter-relação.

Os pesquisadores chineses explicam que esse gene tem duas cópias chamadas C e G. Essas cópias podem aparecer como duplas “puras” – CC ou GG – ou uma de cada variação – CG – dependendo da herança transmitida pelos pais. No estudo, feito com 579 estudantes voluntários, observou-se que aqueles que herdaram uma dupla de genes C – um do pai e outro da mãe – estavam em um relacionamento, enquanto que apenas 40% dos tinha uma ou duas cópias da variante G – GG ou CG – encontravam-se em uma relação amorosa. A pesquisa ainda revelou que os herdeiros da variante G também estavam mais propensos a serem neuróticos e depressivos.

Um dos responsáveis pelo estudo, Dr. Xiaolin Zhou, esclarece que “como pessimismo e neuroticismo são prejudiciais para a formação, qualidade e estabilidade das relações, essa conexão entre a variante G e desordens psicológicas pode diminuir as oportunidades de namoro e levar ao fracasso do relacionamento romântico”. Uma afirmação forte se pensarmos em quantas pessoas neste exato momento estão em suas casas – talvez navegando pela internet em busca de seu par ideal – sozinhas e se sentindo deprimidas, pois não conseguem estabelecer relacionamentos duradouros. É um pouco atemorizante pensar que nossos sentimentos estão atrelados a variação de um único gene, nos tornando prisioneiros do nosso código genético, impedidos de mudar por conta de combinações, na maioria das vezes, aleatórias.

Mesmo sendo uma admiradora dos progressos conquistados pela ciência (não importa a área), não consigo aceitar esse tipo de determinismo. Sim, concordo com o fato de que a carga genética é uma força da natureza que não poder ser simplesmente ignorada, No entanto, acreditar que não podemos romper com esses grilhões seria aceitar que somos apenas marionetes, sem liberdade de escolha. Pessoalmente, tenho sérias dificuldades em aceitar isso.

Superar as adversidades está na origem do que significa ser humano. E a evolução é um exemplo dessa capacidade de superação. Não teríamos começado a andar sobre duas pernas se não fossemos capazes de romper com os limites que a natureza muitas vezes nos impõe. Assim, apesar da pesquisa realizada pelos chineses ter a sua relevância, ela deve ser encarada (pelo menos até que dados mais consistentes sejam colocados a disposição) somente como uma referência para futuros estudos que pretendam melhorar as condições de vida daqueles que não conseguem lutar sozinhos com seus demônios interiores (físicos e/ou emocionais).

De qualquer maneira, com ou sem a versão G do gene 5-HTA1 justificando o comportamento humano, dificuldades de estabelecer relações amorosas saudáveis não é, como alguns insistem em dizer, um mal deste século. Sempre existiram pessoas com problemas de relacionamento, pessoas que por conta dessa dificuldade caíram, muitas vezes, em depressões profundas que as levaram a loucura e até mesmo ao suicídio. Kafka (1883-1924), por exemplo, reconheceu, em sua “Carta ao pai”, que suas tentativas fracassadas de casamento tinham como origem a necessidade de escapar da relação tumultuada que mantinha com seu genitor. O mesmo vale para o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867) que em um poema em prosa intitulado “Solidão” chama de “desvairados” todos aqueles que não aproveitam a solidão preferindo procurar a felicidade no movimento e “numa prostituição a que eu podia chamar fraterna”. Se em seus códigos genéticos havia uma versão G do gene 5-HTA1 nunca iremos descobrir.

Nesse sentido, a solidão tanto pode se transformar em algo insuportável e do qual é preciso fugir; como na única maneira de conectar-se com uma realidade que o indivíduo comum tem dificuldades de compreender. Para os primeiros, a versão G do gene 5-HTA1 gera apenas sofrimento; enquanto que para os segundos torna-se uma maneira de criar novos mundos, repletos de possibilidades, mesmo que com elas a dor e a angústia também estejam presentes. Afinal, como muito bem explica o poeta alemão Rainer Maria Rilke (1875-1926), uma obra de arte é de uma solidão infinita, surgindo de uma necessidade, e “é no modo como ela se origina que se encontra seu valor, não há nenhum outro critério”.

Deixe um comentário