Ao lado da recuperação
Mara Rovida*
Demora-se para apreender a ideia em sua plenitude. Na aparência, não passa de uma dessas frases de efeito usadas em dinâmicas de grupo recheadas de pieguices. Mas quando finalmente digerida sua essência, percebe-se a realidade escorregadia e traiçoeira.
“Quando tudo está mal, desconfie. Quando tudo está muito bem, desconfie.”
A ideia não requer grandes esforços para ser compreendida. Os que contam os passos vivem envoltos em distorções, pequenos truques e realidades artificialmente coloridas. Quem vai ao lado, contabilizando as tentativas e acertos, tentativas e recaídas, fica tarimbado na arte da desconfiança. Nada é o que parece. Tudo pode ser diferente do que foi dito e provavelmente a experiência é bem diversa daquela desenhada pela expectativa.
Mas não é disso que se trata a tal noção aparentemente, e apenas aparentemente, simples.
Viver a primeira sentença e se reconhecer nessa experiência é fácil. Cérebros programados para observar o infortúnio, para fixar os dissabores e desamores. Há quem baseie essa perspectiva num tipo de herança ancestral, de quando as almas viviam mergulhadas em hostilidades da vida na natureza. Seja esse o motivo ou não, o fato é que o cheiro do infortúnio é rapidamente reconhecido. A dor, tão temida, é também de pronto identificada. Nisso não há qualquer descoberta.
Mas a segunda frase parece contrariar o mais almejado, pelos em programação ou por aqueles que seguem ao lado, passo a passo. Não desejar a fortuna maior? Não almejar a harmonia perfeita? Não querer com todas as forças o arranjo Hollywoodiano?
O mestre da recuperação dirá com toda convicção de quem já viveu a experiência da perfeição, “desconfie”.
O aprendiz, já iniciado no assunto, acredita que domina a situação. Os músculos vão relaxando aos poucos como se correspondessem ao toque preciso de mãos treinadas. Sujeito de si, deixa o rigor de outrora. Joelhos dóceis começam a desejar descanso e os passos vão diminuindo de ritmo, de constância, até que o corpo deixa a caminhada e segue em outra toada.
Na aparente bonança, a efervescência da vida não tarda em apresentar o desacordo, o desagrado, a desavença, a falta de sorte.
Fora do caminho em 12 passadas, o sujeito já não está mais calcado. Os pés não pisam chão seguro e conhecido, planam em terreno descoberto.
Traiçoeira como a mais bela visão provocada pela loucura, ela indica o aconchego de um velho abrigo em forma de dose. Caído como estrela morta, em poucos instantes retirado das alturas siderais, o sujeito aceita o conforto, apenas por agora. Numa piscadela, o velho enredo se repete e a ideia se completa num sentido acidamente coerente.
Ao lado do descuidado, caminhasse com o peito apertado. É preciso cautela, é preciso confiar, mas também é essencial lembrar-se de manter a desconfiança dos extremos.
* Mara Rovida é jornalista, doutora em ciências da comunicação pela USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.