Geografia

O Patrimônio Cultural Rural: reflexões a partir das relações campo-cidade acerca da vivência dos moradores do distrito de Guaragi, no município de Ponta Grossa (PR)

O Patrimônio Cultural Rural: reflexões a partir das relações campo-cidade acerca da vivência dos moradores do distrito de Guaragi, no município de Ponta Grossa (PR)

Fabelis Manfron Pretto*

Anna Paula Lombardi*

 

Anna Paula Lombardi é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR. E-mail: ap.lombardi@hotmail.com

Resumo: Este artigo apresenta reflexões sobre o patrimônio cultural rural, a partir do estudo de caso do distrito de Guaragi, no município de Ponta Grossa (PR). Observa-se que apesar da intensificação da presença do modo de vida urbano no campo, traços culturais e elementos simbólicos são preservados, porque fazem parte da memória social dos moradores rurais e estruturam a identidade dos indivíduos. Esse conjunto de elementos que é mantido no cotidiano e na memória dos moradores do campo pode ser considerado seu patrimônio cultural.

Palavras-Chave: Patrimônio Cultural Rural, Campo, Cidade, Distrito.

Resumen: Este artículo presenta reflexiones sobre el patrimonio cultural rural, a través del estudio de caso del distrito Guaragi, en el município de Ponta Grossa (PR). Se observa que a pesar de la intensificación de la presencia de la forma de vida urbana en el campo, los rasgos culturales y los elementos simbólicos se conservan, ya que son parte de la memoria social de los residentes rurales y estructuran la identidad de los individuos. Este conjunto de elementos que se tienen en la vida cotidiana y en la memoria de los residentes del campamento puede ser considerado patrimonio cultural.

Palabras clave: Patrimonio Cultural Rural; Campo; Ciudad; Distrito.

 

Introdução

Com o processo de globalização ocorrem mudanças que compreendem diversos elementos e contextos como o econômico, social e cultural, que podem incidir em todos os espaços, com lógicas diferentes e intensidades desiguais (HALL, 2006). Embora exista o impulso pela mudança e pela modernização, ocorre paradoxalmente o impulso pela manutenção das especificidades locais, de características intrínsecas a cada espaço.

Fabelis Manfron Pretto é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR. E-mail: fabelismp@hotmail.com

Mesmo com a intensificação das relações entre campo-cidade e com a aproximação dos moradores o modo de vida urbano, muitas características tipicamente rurais são preservadas nas práticas diárias das pessoas que vivem no campo. A relação com a paisagem rural, os valores, as formas de relação social e os traços culturais formam o conjunto de elementos que estrutura a identidade rural. Muitos citadinos buscam vivenciar esse modo de vida que pode ser considerado patrimônio cultural do campo.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) o município de Ponta Grossa possui cinco distritos: o distrito sede; Piriquitos, vinculado à malha urbana; Itaiacóca, Uvaia e Guaragi que estão afastadas do perímetro urbano. O distrito de Guaragi é localizado a 32 km da zona urbana de Ponta Grossa, com acesso pela PR 151 e 438. A população distrital é de 2936 habitantes, 1241 moradores da vila e 1695 moradores da área rural. (IBGE – Censo 2010).

Esse artigo apresenta reflexões sobre a visão de dois grupos distintos, os moradores permanentes e os moradores de veraneio que apresentam dois pontos de vista distintos, mas complementares para o reconhecimento do patrimônio cultural rural. Foram realizadas 11 entrevistas (39 questões) às famílias de moradores permanentes do distrito e 10 entrevistas às famílias de veraneio (29 questões), respondidos nas residências dos entrevistados, com perguntas sobre a vivência, experiências, hábitos, tradições e costumes desses moradores.

Relação campo-cidade: diferenças, similaridades e novas configurações

Campo e cidade, rural e urbano são ‘conceitos’ discutidos a muito tempo dentro de distintas ciências, entretanto essa discussão merece ser aprofundada e constantemente reavaliada, uma vez que a configuração desses espaços e dos grupos sociais é dinâmica. Essa discussão é importante não somente para delimitação de territórios – cobrança de impostos ou a simples definição e caracterização dos sujeitos – mas, sobretudo, para que a partir da compreensão do que é campo e cidade, rural e urbano, possam ser elaborados projetos e concretizadas ações que possibilitem melhoria na qualidade de vida dos cidadãos.

Os moradores do campo partilham a cultura formada a partir das práticas sociais características desse espaço e das relações estabelecidas com o modo de vida urbano. As mudanças ocasionadas pelo processo de globalização (relacionadas, por exemplo, a economia e produção, as mudanças comportamentais e do consumo) chegam também ao campo.

De acordo com Carneiro (1998) rural e urbano são representações sociais que podem ser reelaboradas e passar por mudanças no tempo e no espaço, convencionadas pelo universo simbólico que se apresenta. De tal modo, rural e urbano não são conceitos estáticos, pois estão em constante transformação, especialmente se considerada a fluidez – material e simbólica – crescente que se estabelece entre cidade e campo.

Para Hauresko (2012) as relações do campo com a cidade resultam de um processo natural de complementação de atividades – sejam elas econômicas, políticas, sociais ou culturais. Com o desenvolvimento dos sistemas de comunicação e transporte, a transição da produção material e simbólica entre esses espaços é reflexo espontâneo de um sistema maior, o capitalismo. Essa relação, intensificada nas últimas décadas não pode ser vista como destrutiva ou desestabilizadora, mas como um ensejo de construção de novas formas, significados, espaços e relações. Segundo a autora, os elementos tradicionais e modernos e objetos e elementos de distintas origens, têm importante papel na “identidade híbrida” da sociedade atual.

Para Wanderley (2001) o rural não é um espaço isolado e recebe novidades, podendo absorvê-las ou não. O campo passou por mudanças, porém manteve especificidades sociais, ecológicas e culturais ao longo da história, que caracterizam até mesmo a forma pela qual os sujeitos se inserem na sociedade. O modo de vida rural é um modo pelo qual a pessoa que vive no campo vê o mundo e vive o mundo; o modo de vida rural são lentes de uma identidade rural que configuram o modo de viver e ser no campo e de interagir com outros espaços.

Mesmo com a aproximação e a intensificação da presença do modo de vida urbano, no campo alguns traços culturais e elementos simbólicos são mantidos, pois fazem parte da memória social do grupo e estruturam a identidade dos moradores, sendo preservados e disseminados entre as gerações. O conjunto de elementos mantidos presentes no cotidiano e na memória dos moradores do campo pode ser considerado o patrimônio cultural.

O Patrimônio Cultural Rural: estudo de caso do distrito de Guaragi no município de Ponta Grossa – PR

O conceito de patrimônio passou por uma série de mudanças desde as primeiras considerações até às discussões atuais. Contudo, mesmo com progressos, a metodologia de seleção de patrimônios a serem salvaguardados ainda necessita de aprimoramentos intelectuais e práticos, pois muitas categorias patrimoniais ainda recebem pouca atenção ou são ignoradas. Com a valorização do consumo do espaço rural – incluindo o modo de vida – aumentou a visibilidade sobre a existência de elementos simbólicos relacionados à vida diária dos moradores rurais, o que tem contribuído para a maior percepção sobre a existência do patrimônio cultural rural.

O levantamento do patrimônio cultural rural através da vivência (experiência) das pessoas, esclarecem quais são as representações que expressam e o espaço vivido dos moradores do campo – nesse caso, o distrito de Guaragi – revelando que os elementos mais representativos são aqueles que fazem parte da experiência das pessoas com o seu espaço e permanecem mesmo com as modificações trazidas pela integração com o modo de vida urbano. Esses elementos tanto estão presentes nos hábitos diários desses moradores no tempo presente, quanto nos elementos da memória social desse grupo social.

Com base nas respostas obtidas nas entrevistas, percebeu-se que a ligação intensa com a cidade e o modo de vida urbano não caracteriza o desapego ao modo de vida rural ou ao campo, mas reforça os sentimentos de apego ao local, porque ao ter contato com problemas comuns às cidades como violência, desemprego, poluição e estresse os moradores reforçam a afeição pelo campo – onde segundo os relatos dos entrevistados, esses problemas ainda não são tão intensos – e pelo modo de vida rural, caracterizado por citadinos e moradores permanentes pela tranquilidade, o contato com a natureza, os horários mais livres.

Por meio da pesquisa no distrito de Guaragi, compreendeu-se que a identidade rural dos sujeitos não está baseada apenas na relação de produção agropecuária, mas também no amalgama de traços culturais alusivos ao vínculo dos habitantes com a paisagem rural, com a terra, às relações de amizade e confiança com outros moradores distritais, e o compartilhamento da memória social do grupo modelada por uma história comum.

No cotidiano os moradores de Guaragi incorporam bens e serviços modernos[1] às atividades diárias para facilitar o trabalho, melhorar a renda familiar – ainda realizam trabalhos fora da propriedade para complementar a renda – e melhorar a qualidade de vida. No dia-a-dia dos moradores as novas ideias e padrões de comportamento não substituem aquelas herdadas das gerações do passado: os valores, a religiosidade, os conhecimentos sobre a natureza.

A paisagem rural é outro elemento muito citado pelos entrevistados. Segundo eles, o campo pode receber constantemente novas formas e equipamentos, todavia é preservada a sua essência produtiva e os vínculos com a terra, a flora e a fauna locais, visíveis e perceptíveis na paisagem. A representatividade elementos da paisagem no modo de vida do campo é tão grande que segundo os moradores entrevistados (permanentes e de veraneio) é uma das principais motivações para que os citadinos buscam vivenciar o rural. A paisagem rural também é reconhecida pelos dois grupos sociais entrevistados, como patrimônio cultural desse espaço e da população que ali reside e que a medida do possível, empenham-se para vivenciar e preservar esse patrimônio.

Considerações Finais

Apesar da integração intensa e dinâmica entre cidade e campo, os moradores do campo mantêm muitas características culturais características e identificação com o espaço que habitam. Essas pessoas compartilham hábitos, comportamentos e práticas cotidianas que estruturam a vida diária e tornam o grupo coeso, diferenciando-o de outros grupos pelas suas características culturais.

O patrimônio cultural rural elucida a memória social e a identidade desse grupo social e faz parte da história do país e da herança cultural da nação. Um dos caminhos para o (re)conhecimento e valorização cultural dos patrimônios culturais rurais pode ser a educação patrimonial, voltada a valorização do sujeito que vive no campo e no seu modo de vida singular. O reconhecimento do patrimônio cultural rural é importante, pois é caminho para a promoção da diversidade cultural apontando a realidade do campo, com as modificações e novas configurações que se estabelecem nesse espaço e a manutenção de especificidades rurais.

 

Referências

CARNEIRO, Maria José. Ruralidade: novas identidades em construção. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 11, p. 53-75, out. 1998. Disponível em: <http://r1.ufrrj.br/esa/index.php?cA=db&aI=120&vT=da&vA=281>. Acesso em: 18 jan. 2013.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HAURESKO, Cecilia. Lugares e Tradições: As comunidades faxinalenses de Anta Gorda e Taquari dos Ribeiros. Guarapuava: UNICENTRO, 2012.

PRETTO, Fabelis Manfron. O (re)conhecimento do patrimônio cultural rural: as vivências dos moradores do distrito de Guaragi, Ponta Grossa (PR). 2014. 177 f. Dissertação (Mestrado em Geografia), Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2014.

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. A ruralidade no Brasil moderno. Por un pacto social pelo desenvolvimento rural ¿Una nueva ruralidad en América Latina? Norma Giarracca. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. 2001. Disponível em <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/rural/wanderley.pdf>. Acesso em 28 de out. 2013.

 

* Fabelis Manfron Pretto é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR. E-mail: fabelismp@hotmail.com

* Anna Paula Lombardi é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR. E-mail: ap.lombardi@hotmail.com

[1] Modernidades ou modernos é o termo “utilizado para especificar inovações na forma de bens materiais e ideias que podem exercer influência, impulsionando mudanças na cultura de um grupo social”. (PRETTO, 2014, p. 20).

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