“O importante não é onde moramos,
mas onde a casa mora.” Mia Couto
Abriu a porta e o escuro que habitava a peça àquela hora do dia, recebeu um dedo de luz. Na procura do interruptor a aspereza da parede deslizava pela mão espalmada. Na outra, segurava o livro. Encontrou-o no escritório, trancado em uma gaveta embaixo de uns papéis velhos. Viu quando e onde havia sido guardado.
Costumava espiar pelo lado de fora da casa, através do vão da cortina que cobria a janela do escritório de advocacia do pai. Ele estava sempre envolvido com inúmeros casos mais sérios, não havia tempo nem interesse em descobrir a menina que vigiava a casa, os irmãos mais velhos, a tia solteira – pensava ela. Gostava da sensação de observar secretamente e o escritório desempenhava um fascínio especial. Sorrateira, entrava na sala deserta mergulhada numa leve penumbra feita da fumaça de muitos charutos e instalava-se na escrivaninha. Fechava os olhos e via pelo lado de dentro.
Ali estavam as estantes repletas de livros, pastas e documentos. Tantos livros e o desejo enorme de conhecê-los. A velha Remington instalada na pequena mesa lateral buscava o tempo em que, ao final do dia, sentada nos joelhos dele, brincava com as letrinhas da máquina de escrever. Quando descia do colo, no tapete do escritório brincava com sua boneca, ele abria a gaveta e retirava um livro que o transportava para longe dela, outro lugar – distante… muito distante. Mesmo assim, não se sentia abandonada, o cheiro da madeira lustrada misturava-se com o perfume do pai e aquele lugar era o seu melhor amigo.
Só agora, depois de anos, voltava à casa da infância e ao escritório do pai. Espichou mais a mão, encontrou o interruptor e suas antigas lembranças. O lustre que pendia do teto desenhou figuras, imagens, personagens – memórias (que ela revelaria bem mais tarde por outras letras). Com uma sensação de cumplicidade e segredo no olhar, aproximou-se da escrivaninha, abriu a gaveta e colocou o livro de poesia do pai, que ela viera devolver, na mesma posição de antes, no lugar que lhe cabia por direito na casa.
Gilka Coimbra
Setembro de 2014-09-15