Por Alexandre Abdal*
Tenho a impressão de que a cidade de São Paulo experimenta, nos dias de hoje, um conflito redistributivo do ponto de vista das políticas públicas de trânsito, transporte e mobilidade. Explico.
Uma teoria já clássica e bastante popular nos cursos de Administração Pública é a teoria das arenas decisórias, de Theodore Lowi. Essa forma de ver as políticas públicas classifica os espaços para a sua tomada de decisão segundo o grau de divisibilidade dos interesses neles envolvidos, conformando três tipos de arenas: a distributivas, com interesses muito divisíveis; a regulatória, com interesses relativamente divisíveis; e a redistributiva, com interesses muito pouco divisíveis.
A arena distributiva, por alguns, mas não por mim, confundida como o reino do clientelismo, se caracteriza, como já dito, pela altíssima desagregabilidade dos interesses envolvidos. Nela, tais interesses chegam ao nível das unidades individuais, sejam indivíduos, famílias ou municípios, com igualmente baixo grau de conflito e formação conjuntural e instável de coalizações. Suas políticas são realizadas com recursos orçamentários disponíveis, não havendo necessidade de criação de novas fontes de recursos ou canalização de recursos de outras áreas. E praticamente não há perdedores nessa arena, justamente porque recurso adicional não está sendo drenado de nenhum setor da sociedade. Exemplos variam desde ações mais ou menos discricionárias de distribuição de agasalhos, água, alimentos ou pontes até políticas de transferência de renda que assumem critérios claros, transparentes e impessoais.
A arena regulatória encerra interesses relativamente desagregáveis, que chegam ao nível dos setores de atividade ou grupos de interesses, mas nunca às unidades individuais. O grau de conflito aqui é maior e mais estável ao longo do tempo do que na arena distributiva, mas, em geral, é resolvível pela via da negociação entre as partes interessadas. Disso deriva que, embora até possa haver vencedores e perdedores mais ou menos claros, o mais comum é que as políticas públicas gestadas nessa arena sejam resultados de pactos negociados entre os participantes nos quais todos, ou quase todos, cedem um pouco. Muitas das políticas da arena regulatória são feitas com recursos orçamentários e/ou possuem alto teor de regulação. Podem ser considerados como exemplos o Código Florestal, o Novo Regime Automotivo e a Lei dos Portos.
A arena redistributiva, por sua vez, é o lugar da (quase) impossibilidade de desagregação dos interesses envolvidos. É palco de disputa entre grandes grupos ou classes sociais, encerrando coalizações duradouras e estáveis ao longo do tempo. Nela, há clara e imediata identificação de vencedores e perdedores, com as políticas públicas resultantes sendo frutos de intensa disputa política. Via de regra, e por isso o seu alto grau de conflito, políticas redistributivas encerram altos montantes de recursos e a canalização desses recursos de um setor para outro da sociedade. As reformas agrária e tributária, desde que encerre medidas relacionadas a taxação de grandes fortunas ou imposto de renda fortemente progressivo, são bons exemplos.
Voltando à questão central destas linhas, argumento que as disputas em torno das políticas públicas de trânsito, transporte e mobilidade na cidade de São Paulo tem, nos últimos anos, assumido conteúdo crescentemente redistributivo. Quero dizer, tem trazido para o centro da agenda pública de trânsito, transporte e mobilidade questões referentes às condições e mecanismos de apropriação do espaço urbano pelos diferentes modais de transporte e seus usuários. E que a redistribuição ocorre no sentido dos meios individuais e motorizados (carros) para meios coletivos (ônibus) ou não motorizados (bicicletas). Talvez, daí derive a grande insatisfação de parcelas da população contra medidas que privilegiam o transporte público ou as bicicletas e pedestre, tais como as faixas exclusivas de ônibus e as recém-iniciadas ciclovias.
Assim, na forma atual pela qual as políticas públicas de trânsito, transporte e mobilidade tem processado a questão, o espaço urbano é convertido, instantaneamente, em recurso escasso e objeto de disputa que opõe os diferentes modais e seus usuários. Imagine uma avenida com quatro pistas, sendo que uma dessas poderia ser usada para estacionamento. A conversação da pista-estacionamento em ciclovia e a reserva de outra pista para faixa exclusiva ou corredor de ônibus implica redução do espaço utilizável (e/ou estacionável) por autos em 50%, além do aumento do custo do automóvel, dado que não há mais vagas gratuitas disponíveis nessa nossa utópica avenida.
Agora, o que chama a atenção nesse caso não é a perda de apoio à política pelo grupo carro-dependente, mas a falta de apoio das parcelas da população beneficiadas. Se essa falta de apoio pelos usuários de modais coletivos e não motorizados à política se confirmar, não será improvável o retrocesso da política no médio e longo prazo, mediante, por exemplo, uma troca na gestão da Prefeitura paulistana. A esperança aqui é que nos subterrâneos da opinião pública (e uso o termo “subterrâneo” no sentido de algo ainda imperceptível) esteja sendo gestado um duplo consenso, em torno tanto de políticas de incentivo aos meios coletivos e não motorizados quanto de políticas de desincentivo ao uso do automóvel. Um consenso suficientemente forte capaz de transformar políticas hoje de governo em políticas de Estado e, portanto, capaz de comprometer governos futuros, independentemente de partido e coloração política. Só assim, de meu ponto de vista, conseguiremos caminhar rumo a uma cidade mais amigável às pessoas, construída para as pessoas e não para os automóveis.
*Alexandre Abdal é pesquisador do Cebrap, vinculado aos Núcleos Desenvolvimento e Desigualdade e de Jovens Pesquisadores, e professor do Departamento de Gestão Pública da FGV-EAESP.