Ricardo Rojas Fabres[1]
RESUMO: A partir da leitura do diálogo platônico Críton, buscaremos expor a posição adotada por Sócrates em relação às leis. Nosso objetivo é demonstrar como o argumento de Sócrates em relação à justiça e às leis se orientam para a legitimação e manutenção da ordem e da estabilidade social. Assim, pretendemos sugerir que as noções de “pacto” e “justiça” apresentadas pelo sábio grego buscam justificar a subordinação e garantir o pleno funcionamento de uma sociedade.
PALAVRAS-CHAVES: Estado; Dominação; Sociedade; Platão
ABSTRACT: From the reading of the Platonic dialogue Criton, we will seek to expose the position adopted by Socrates in relation to the laws. Our goal is to demonstrate how the argument of Socrates in relation to justice and the law is designed to legitimize and maintain order and social stability. Thus, we intend to suggest that the concepts of “pact” and “justice”, presented by the greek sage seeking to justify the subordination and guarantee the full functioning of a society.
KEYWORDS: State; Domination; Society; Plato
1. Introdução
Críton, ou Critão, é um diálogo socrático escrito por Platão, que tem como eixo central a tentativa do personagem que dá nome ao diálogo em convencer Sócrates a fugir de Atenas para livrar-se da condenação imposta no julgamento relatado no Fédon. Sócrates, em contraposição à proposta de Critão, argumenta que não fugirá da cidade, mesmo que considere a condenação injusta e que esta o leve à morte – pois, segundo ele, não se pode retribuir injustiça com injustiça.
O diálogo, desta forma, levanta algumas questões interessantes, dentre as quais destacamos duas hipóteses que guiarão a produção deste trabalho: 1) Sócrates apresenta o Direito como sinônimo de justiça e 2) Sócrates apresenta um tipo de “pacto” que legitima a dominação social. É bem verdade que, embora pareça ambiciosa esta proposta não pretende outra coisa senão apresentar uma pequena contribuição que, evidentemente, só poderia alcançar seu objetivo após uma discussão mais profunda.
A partir da leitura deste diálogo, buscaremos expor aqui, de forma bastante preliminar, portanto, a posição adotada por Sócrates em relação às leis e àquilo que convencionaremos sustentar como o esboço de uma concepção de instituições públicas – Estado e Direito, principalmente. Assim, pretendemos ao longo deste trabalho demonstrar como o argumento de Sócrates em relação à justiça e às leis se orientam para a legitimação e manutenção da ordem e da estabilidade social.
2. Uma breve introdução ao diálogo
O diálogo começa com Sócrates despertando de um sono tranquilo, na presença de Critão, que elogia seu temperamento e afirma que está lhe trazendo uma notícia triste e dolorosa. O discípulo de Sócrates afirma, então, que ainda é tempo do sábio seguir o seu conselho e se salvar. Neste momento, Critão introduz no diálogo seu medo pela opinião da maioria dos cidadãos atenienses e como estas pessoas julgariam a incapacidade dos amigos de Sócrates de salvá-lo da condenação:
muita gente que nem a mim nem a ti conhece suficientemente há de acreditar que eu poderia ter-te salvado, se me dispusesse a despender algum dinheiro, mas que me descuidei. E que pior fama poderá ter alguém do que a de dar mais valor ao dinheiro do que aos amigos? (Pág. 65)
Sócrates, por sua vez, questiona se a opinião do povo é tão importante, refuta a preocupação de Critão e argumenta que os mais sábios deverão ter consciência de que se passou. Assim, Sócrates continua argumentando contra sua fuga da cidade
Não me é possível renegar meus argumentos no passado, somente por causa do que me aconteceu; ainda se me afiguram sensivelmente idênticos; continuo a tê-los na mesma conta de antes. Se na atual situação não pudermos trazer para a discussão nada melhor, podes ficar certo que não concordarei contigo (Pág. 67)
Neste momento, Sócrates procede sua argumentação no sentido de mostrar o porquê não seria correto preocupar-se com a opinião da maioria e sim apenas com a opinião dos especialistas. “Um indivíduo que se entregue ao exercício de ginástica e faça de tal prática profissão deverá aceitar elogio, censura ou parecer de qualquer pessoa ou exclusivamente do médico e do pedótriba?” (p. 68), pergunta Sócrates, recebendo de Critão a resposta de que este homem deve apenas preocupar-se com a opinião de quem é médico ou pedótriba. Conclui Sócrates, então: “logo, meu caro amigo, não devemos de forma alguma preocuparmo-nos com o que diz a maioria, mas apenas com a opinião dos que têm conhecimento do justo e do injusto, do belo e do bem, e de seus contrários” (Pág. 70).
Assim, Sócrates sustenta que o centro da questão não é a opinião da maioria, mas sim o princípio da ação de fugir da cidade. Isto é, se tal ação é justa ou injusta. Argumenta, ainda, que não porque sua vida está em risco que ele deverá ser injusto.
Quanto a nós, já que assim o determina nossa conversação, o único ponto a considerar, como há pouco dissemos, é o de sabermos se procedemos com justiça dando dinheiro, e agradecimentos de crescença, aos que terão de retirar-nos deste lugar, levando-me daqui vós outros e consentindo eu em ser levado, ou se procedendo dessa maneira não agimos, em verdade, incorretamente. (Pág. 71)
Sócrates, então, introduz no diálogo com Critão a voz das leis, quer dizer, o que as leis diriam a ele se se dispusesse a fugir da cidade.
3. O Respeito às leis e o poder do “pacto”
Em sua argumentação a favor do cumprimento das leis, Sócrates expõe uma pergunta que poderia ser proferida pelas próprias leis: “Ó Sócrates, foi isso que ficou assentado entre nós e ti, ou que aceitarias como válidas as sentenças da Cidade, fossem elas quais fossem?” (p. 74) E assim segue sua exposição:
Dize-nos se tens algo a censurar nas leis que entre nós regulam o casamento e se as consideras defeituosas (…) E com relação às que regulam a criação e a educação dos filhos, sob cujo regime tu cresceste? (…) E, uma vez nascido, criado e educado, podes começar negando que não nos pertences, que não és filho e escravo nosso, tu e teus antepassados? (Pág. 74)
O argumento, portanto, segue no sentido de mostrar como Sócrates, desde sempre, submeteu-se aos benefícios da cidadania ateniense e das próprias leis da cidade. O próprio sábio teve inúmeras oportunidades de sair da cidade, de viajar e constituir família em outra cidade, mas não o fez. Contra a ideia de fugir para outra cidade, as leis o advertiriam:
Se te diriges para uma das cidades mais próximas, quer seja Tebas, quer seja Mégara – pois em ambas vigem boas leis – ali chegarás, Sócrates, como inimigo das respectivas constituições, pois quem quer que seja afeiçoado à sua cidade passará a olhar-te de viés e a ter-te na conta de destruidores das leis (Pág. 78)
Por fim, Sócrates afirma para Critão que seria inevitável escutar estas ponderações proferidas pelas leis e que se ele, Critão, ainda pretende dissuadi-lo a fugir pode fazê-lo. Entretanto, Critão não se propõe a isso e Sócrates conclui: “Está bem, Critão; procedamos, então, dessa maneira, porque esse é o caminho indicado pela divindade” (Pág. 79)
.
4. Problematizando o “argumento das leis”
Sócrates, na tentativa de mostrar para Critão por que não pretende ser dissuadido sobre sua fuga, utiliza-se novamente da “voz” das leis e da cidade para argumentar:
Dize-nos, Sócrates, que tencionas fazer? Não compreendes que o que vais pôr em execução outra finalidade não tem senão a de destruir a nós outras, as Leis, e a toda a cidade, tanto quanto depende de ti? (Pág. 73)
Anteriormente, em sua exposição, Sócrates questiona: “Deve alguém cumprir o que admitiu com outra pessoa ser justo, ou pode faltar com a palavra?” (P. 73). Parece-nos razoável afirmar, neste ponto, que Sócrates iguala a noção de lei com a noção de justiça. Isto é, seu julgamento se deu com base na justiça – pois se deu de acordo com a lei. Assim, contrariar a lei seria contrariar a própria justiça – e, evidentemente, agir de forma injusta. Entretanto, podemos problematizar esta afirmativa com o argumento de que nem sempre uma Lei será necessariamente justa, ou melhor, o conteúdo da Lei não se baseia necessariamente na justiça, mas sim na estabilidade social. Seguindo, as leis apresentam, no mínimo, três argumentos para questionar Sócrates sobre sua relação com as leis às quais ele sempre submeteu-se, desde o seu nascimento: 1) “Para começar, não nos deves o nascimento, e não foi por nosso meio que teu pai recebeu tua mãe em casamento?”; 2) Dize-nos se tens algo a censurar nas leis que entre nós regulam o casamento e se as consideras defeituosas; 3) com relação às que regulam a criação e a educação dos filhos, sob cujo regime tu cresceste?”. Dito isso, prosseguem: E, “uma vez nascido, criado e educado, podes começar negando que não nos pertences, que não és filho e escravo nosso, tu e teus antepassados?” (P. 74). O homem, então, aparece como escravo das leis e, portanto, deve subserviência a elas.
Entretanto, ao perceber o peso das Leis (“és filho e escravo nosso” [p.74]) e uma concepção de comunidade (“não percebes que devemos ter a Pátria em maior estima do que o pai, a mãe e todos os antepassados, por ser ela mais venerável e sagrada [p.75]) no argumento das leis proferido por Sócrates, somos levados a sugerir duas interpretações: 1) A concepção de “Pátria” descrita acima e de um “pacto” sobre as Leis assemelha-se ao que os filósofos contemporâneos convencionaram denominar “Estado”; 2) As Leis podem ser entendidas como uma forma embrionária de Direito enquanto instituição.
Dito isso, primeiramente contrariamos a ideia de que as Leis podem, de alguma forma, serem entendidas como sinônimo de justiça. Pelo contrário, mesmo que entendêssemos a concepção de justiça como fruto de um consenso geral na comunidade (o que nos parece inviável de sustentar, tendo em vista a impossibilidade dos “não cidadãos” participarem da vida política em Atenas), ainda assim parece-nos razoável supor que a justiça seria, apenas, o argumento sob o qual se erguem as leis enquanto instituição – nem sempre, no entanto, este argumento corresponde ao seu correspondente jurídico. O mesmo ocorre com a questão do “pacto”. Como vemos em uma passagem de Aristóteles (2007) ao descrever a história da cidade de Atenas, os conflitos entre os pobres e a nobreza eram constantes até o ponto de gerar uma grande e violenta revolta. Segundo o autor,
Como a revolta adquirira caráter de grande violência, com um e outro lado enfrentados durante muitos anos, decidiram eleger Sólon como arconte na qualidade de árbitro entre as partes e o encarregaram de redigir uma Constituição. (p. 40)
As Leis surgem, portanto, do confronto entre os homens. Mais do que isso, no caso específico de Atenas, surge de uma vitória da classe dominante que, na pior das hipóteses, apesar de oferecer pequenas concessões à classe dominada, ainda manteve sua posição – a julgar, por exemplo, pela participação restrita à ela nos assuntos da Cidade. As formas jurídicas, consolidam-se, desta forma (e neste ponto assumimos o risco de trazer ao debate um autor marxista) não pela vontade consciente dos homens, como nos mostra Pachukanis (apud MAMAN, 2003), mas sobre a pressão das relações de produção e das situações concretas de enfrentamento entre as classes dominantes e dominadas.
O Estado, da mesma forma, não é uma imposição externa à sociedade, não nasce de um acordo entre os membros desta sociedade, tampouco é a realidade da ideia moral ou a realidade da razão, como supôs Hegel. O Estado, nos mostra Engels (1980, p.191),
é antes um produto da sociedade quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da “ordem”. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado.
Desta forma, voltando ao diálogo entre Críton e Sócrates, especialmente à página 73, onde lemos “Deve alguém cumprir o que admitiu com outra pessoa ser justo, ou pode faltar com a palavra?”, podemos impor um primeiro questionamento: se tivesse plena consciência que a própria ideia de “pacto” é injusta (pois se fundamenta na exploração e se orienta para a dominação) seria injusto Sócrates sublevar-se contra esta ideia? Para a tentativa de encontrarmos um rasgo de desobediência civíl nesta questão, a resposta não nos parece muito otimista. De fato, como argumentam as leis, ao viver toda a sua vida (70 anos) sob este regime de leis e sob a tutela deste Estado considerando-os justos, a simples iminência da morte não seria motivo para desobedecê-lo ou considerá-lo injusto. Entretanto, ainda nos resta reformular a pergunta: se tivesse plena consciência que a própria ideia de “pacto” é injusta (pois se fundamenta na exploração e se orienta para a dominação) seria injusto Sócrates viver toda a sua vida sob esta ordem política e social?
5. Considerações finais
O último questionamento deixado em aberto no capítulo anterior possivelmente não tenha nenhuma validade para avaliar a conduta de Sócrates perante sua condenação – já que os autores que adotamos como referencial teórico, e, naturalmente, as conclusões dos mesmos, são posteriores à morte do sábio grego. Entretanto, supomos, a pergunta nos abre a possibilidade de refletir sobre o papel do Estado e do Direito nas sociedades contemporâneas. Isto é, admitindo a hipótese, largamente fundamentada ao longo da tradição das ciências humanas e sociais, que o Estado e suas instituições são frutos do conflito de classes e que sua operação se dá com o interesse de garantir a estabilidade social e a própria dominação, parece-nos descabido sustentar a tese de que o Direito é sinônimo de justiça ou, igualmente, que o Direito se baseia exclusivamente na justiça.
Pelo contrário, buscamos ao longo deste trabalho demonstrar de forma preliminar e bastante limitada que a subordinação cega de Sócrates às leis e o próprio discurso das Leis no sentido de justificar esta subordinação, possui o objetivo de garantir o pleno funcionamento de uma sociedade. A razão, que deveria orientar a ação e para onde a consequência da ação deveria orientar-se, torna-se instrumento de legitimação da dominação. Assim, no contexto atual, de um modo de produção que condiciona relações sociais patológicas, sustentar tal posição, principalmente a ideia que o Direito representa a justiça e que o Estado é fruto de uma escolha racional da humanidade, torna-se tão irracional quanto o homem elogiar a sua própria condição de dominado.
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. A Constituição de Atenas. São Paulo: Hucitec, 2007.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
MAMAN, Jeannette. A. Fenomenologia existencial do direito. São Paulo: Edipro, 2003.
PLATÃO. Critão. Belém: Ed. Universitária UFPA, 2007.
[1] Mestrando em Filosofia – Universidade federal de Pelotas – ricardofabres_@hotmail.com