Mara Rovida*
A umidade noturna se misturava ao choro copioso e indisfarçado. As luzes pareciam piscar e o mundo estava fora do eixo. Um giro completo sobre si e a última mirada teve como perspectiva um ponto qualquer na semiescuridão do frio asfalto paulistano. Vozes ofegantes esvaziavam-se até findarem por completo…
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Ana Laura frequentava uma livraria-pub ou pub-livraria ou balada-livraria ou balada com livros ou livros com balada. Era um desses lugares da moda entre as Aspicueltas e Fidalgas da vida, um espaço cult cheio de gente intelectualizada, intelectualizante ou nada disso. Livros eram lançados, depois uma banda tocava e todo mundo sorria; saraus eram organizados, depois uma banda tocava e todo mundo curtia; cafés filosóficos eram montados, depois uma banda tocava e todo mundo bebia.
A constante em todos os encontros era o que interessava a mocinha, não tão jovem nem tão velha. O líder da tal banda era um artista completo; tocava violão, cantava, compunha e – diziam os mais chegados – escrevia contos de ficção científica. Não era exatamente um Adônis, mas seu charme fascinava a audiência, seu sorriso preenchia os ambientes e seus olhos…. . Um único show, seguido de uma conversinha fiada, foi suficiente para ela cair de amores.
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Além de regras e leis, existem orientações de conduta para o trânsito que objetivam manter os níveis de segurança no espaço urbano. Uma das dicas mais preciosas é a de nunca, jamais, em hipótese alguma guiar um carro quando houver qualquer alteração emocional. Não se trata, portanto, do ato de dirigir sob efeito de álcool ou qualquer tipo de entorpecente – o que é ilegal –, mas sim do alerta sobre os riscos de assumir o volante em estado alterado de humor. Tristeza demais pode causar acidente, raiva em excesso pode matar, por isso é preciso acalmar-se antes de entrar no carro e sair por ai.
Esse tipo de dica também é válida para pedestres. Uma desatenção momentânea e o caminhante desce para o meio-fio na mesma hora em que o motociclista corta pela esquerda; uma piscadela e o transeunte atravessa na faixa, mas sem observar o farol aberto para os carros; uma crise de choro e a pessoa se vê no meio de um cruzamento com carros buzinando e desviando com dificuldade.
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Herbert era um artista já badalado e gostava disso. Os justos comentários elogiosos de amigos, entusiastas e mocinhas interessadas vinham a todo momento. Mas, ele sempre queria mais, mais afagos e mais carinho. Sua infinita necessidade de “amor” não podia ser suprida por Ana Laura, por mais que a moça estivesse apaixonada e se esforçasse para demonstrar. Na última discussão, ele queixou-se de nunca ter recebido uma única carta de amor, um único poema, uma estrofe qualquer ou verso solto.
Decidida a provar a injustiça da cobrança, Ana Laura juntou suas missivas, poesias e outras narrativas para entrega-las de uma vez só ao rapaz. Pouco antes da apresentação da banda, ela chegou com a bolsa cheia de palavras encantadas e o coração repleto de expectativas. Mas, Herbert não quis ouvi-la; era como se quisesse tornar tudo mais difícil para testar seu amor. Não teve jeito, a briga estava armada e a moça girou sobre os pés e, às pressas, ganhou a rua num desatino de dar pena. Apertava sua bolsa-sacola contra o peito como se carregasse um bem muito preciso; meia-dúzia de cartas perfumadas, dois ou três poemas e um conto romântico.
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O grito esganiçado da borracha pressionada contra o asfalto umedecido pela garoa fina e intensa corta os ares noturnos e a freada brusca anuncia, como arauto macabro, o fim. Eu não a vi, ela atravessou na faixa, mas o farol estava verde pra mim. Meu Deus, o que foi que eu fiz? Se pudesse responder, Ana Laura diria, nada, você não fez nada; assim como ele não me ouviu, você não me viu e eu, eu não fui capaz de me fazer ouvir, nem tive o cuidado de me fazer ver.
* Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.
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