Mara Rovida*
Não há dúvidas que São Paulo é uma cidade superlotada, mas algumas imagens parecem traduzir esse excesso de tudo, inclusive de gente, de forma quase sinestésica.
Ao meio-dia, é possível ouvir em boa parte da avenida Paulista um sinal, uma sirene que toca religiosamente, como os sinos das catedrais. Há mais de 50 anos, instalada no 17˚ andar do número 900, ela marca o horário do almoço; uma função mais nobre do que a anterior, quando, na França, era usada para alertar sobre os ataques aéreos durante as guerras.
A centenária sirene parece despertar a vida no entorno. Descem dos prédios centenas ou até milhares de pessoas, saem das escolas ao redor vários estudantes uniformizados e um burburinho crescente vai tomando conta das calçadas. Em poucos minutos, um mar de gente se forma entre os cinzas da paisagem e o barulho cresce na mesma proporção. A pressa paulistana se mistura aos passantes vagarosos que se refestelam com os minutos de pausa na jornada de trabalho.
Em alguns pontos da avenida, pequenos grupos se formam. Estão ali como que represados pelo farol, esperando para atravessar. O sinal verde empurra todos na travessia. De um lado e de outro, partem apressados e vagarosos; alguns esbarrões são inevitáveis. Foi num minuto desses que eles se viram pela primeira vez.
Ele vinha apressado e ela passava com certa calma para o outro lado da avenida. Entre cabeças e rostos multicoloridos, os olhos se conectaram. Durante alguns segundos, eram apenas olhos. Alguns passos depois, um sorriso escapa ao ritmo dos batimentos acelerados e eles se tornam olhos e boca. Separados por meia dúzia de passantes, eles se aproximam e agora são olhos, boca e corpo. Mas, no automatismo cotidiano, as pernas continuam o movimento involuntário da travessia e cada um segue para o seu lado da calçada.
Atrás deles, um mar de carros, ônibus, motocicletas e bicicletas toma conta do espaço. Laranjas, vermelhas e azuis são as carrocerias dos coletivos que bloqueiam a vista. Ele não controla mais sua vontade e fica paralisado. Próximo ao meio-fio, ele se estica para recuperar os olhos perdidos na multidão. Se sente ridículo e ensaia ir embora, afinal há muito por fazer. Que bobagem achar que ela estaria esperando do outro lado. E se estivesse? Como saber? Não dá para ver. Ele começa a andar e a dúvida o assola. Uma mão invisível o detém. Nunca um tempo de farol se alargou tanto.
Uma eternidade depois, a cena se repete. Ainda se achando meio ridículo, ele começa a travessia novamente. Agora sua atitude é quase controlada e seus olhos de lince buscam repouso certo.
A dúvida é um sentimento corrosivo, traiçoeiro e, muitas vezes, nos impele para uma descrença total. Mesmo com a vida sorrindo generosamente, desconfiamos. É preciso um esforço enorme para crer, ao menos um pouco, nos pequenos milagres cotidianos.
Foi como Odisseu que ele voltou e foi com os olhos de Penélope que ela o recebeu. A curta Odisseia durou um tempo de farol, mas foi suficiente para quem acreditou.
* Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.