Mara Rovida*
Houve um tempo em que a rua não era sinônimo de trânsito, de fluxo de pessoas e veículos, era um lugar de encontro, um espaço para a molecada extravasar toda a energia típica de quem mal contava dois dígitos na idade.
Íamos para a escola de manhã cedinho. Na hora do almoço, a chegada em casa era marcada pelo cheiro que pairava na vizinhança, um misto de arroz temperado e carne grelhada com água e sabão usados para lavar garagens e calçadas. Costumava dizer que minha rua tinha cheiro de quintal lavado e tinha mesmo.
Todo mundo comia rapidinho, os meninos mais abastados, estudantes de colégios particulares, e os demais que, como eu e meu irmão, estudavam em escolas da rede estadual nas redondezas. Depois da comida, um tempo para a ajuda nas arrumações da casa, uns instantes para a tarefa escolar e logo a campainha tocava. Lá de fora alguém gritava, “sai aê”. Essas duas palavrinhas, ditas assim como se fossem uma coisa só, davam a deixa, é hora de ir pra rua.
Ali a molecada podia correr, brincar, brigar e, principalmente, fazer coisa que não devia. Na rua de paralelepípedos, cabiam bicicleta, skate, patins, patinete (não motorizado), carrinho de rolimãs, cachorro, gato, tartaruga fujona – até hoje ninguém entende como ela conseguia passar despercebida a cada vez que o portão era aberto –, bolas de todos os tipos e muito barulho.
Os terrenos baldios murados nunca foram interditos de fato. Bastava um pouco de criatividade para romper a barreira, literalmente. Certa vez, o muro simplesmente veio abaixo e até hoje o dono do cavalo que ali ficava procura os responsáveis por abrir aquela fenda por onde o equino fugiu.
Todo dia era assim, “sai aê”, queimada, futebol, vôlei, mãe da mula, taco, safaris pelos terrenos, fogueira, rojões e morteiros para irritar o cachorro do vizinho, pega-pega, esconde-esconde – sempre dava vontade de fazer xixi na hora de esconder – e descidas radicais pela rua íngreme que, vez ou outra, acabavam num encontrão com o paralelepípedo mais próximo.
Quase não passava gente, quem dirá carros. A rua era nossa, até que alguma mãe chamava para o café da tarde. Como uma nuvem de gafanhotos, todos ao mesmo tempo entravámos pela porta da vez e, em alguns minutos, fazíamos o bolo e a dúzia de bananas desaparecer. Na mesma velocidade, corríamos de volta para o mundo lá de fora.
Os portões ficavam quase sempre abertos. Entrava-se para um xixi rápido e uma água. No final da jornada, um caldo preto escorria pelas têmporas de cada um. Sujos como filhotes de porcos depois de um banho de lama, atendíamos aos chamados de pais e mães para o jantar. Mesmo contrariados, seguíamos para o encerramento das casas. Os portões se fechavam naquele momento e só seriam abertos novamente no dia seguinte. Era tempo demais para esperar, afinal pra que dormir?
* Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.
Mara, querida. Nem parece que é tão jovem! parabéns pelo texto!
Beijos,
Ethel
Obrigada, Ethel!