filosofia Reflexão

O idiota e o nômade

 

O idiota e o nômade

 

Ronie Von Rosa Martins

Cynthia Farina

RESUMO: Através da aproximação de dois personagens conceituais de Deleuze, procuraremos definir duas formas de pensar o momento contemporâneo, uma através da personagem do Idiota; ortodoxa, dogmática, habitante de si mesmo e o outro através do Nômade, personagem que se vulnerabilizando aos vários e diferentes trajetos e territórios é capaz de criar novas formas de dar conta de sua existência em relação aos outros.

PALAVRAS CHAVES: Idiota, nômade, pensamento, Deleuze, educação

O homem. É nesta espessa e estranha névoa contemporânea que pretendemos editar nossos passos. Ainda intranquilos e desconfiados passos que titubeiam diante de uma opacidade ainda não assimilada, não entendida. Buscamos os contornos de um novo ver, de um novo sentir. A névoa de certa forma nos convida a re-fazer nossos conceitos e formas de lidar com o que somos e o que queremos de nós, dos outros e do mundo.

Envolvidos por este elemento maleável, que carrega em seu dorso as novas tensões de poder e subjetivação do homem, se vê este mesmo homem, muitas vezes tão perdido que em alguns casos acredita mesmo já ter se encontrado. Resultado, este, da dificuldade de criar condições de dar novos sentidos a este novo momento que se instaura histórica e socialmente.

Alguns, através de mecanismos vários, se capacitam através de estratégias definidas e recriações de sentido, a entenderem, usufruírem e até mesmo resistirem ao que a opacidade da névoa lhes representa. Por outro lado, de certa forma ludibriados pelos estranhamentos e seduções desse elemento, muitos, ainda resumidos excessivamente às suas pessoalidades, singularidades e particularidades, habitam-se. Não são habitantes daqueles espaços onde outros poderiam viver e co-habitar e interagir em suas diferenças e multiplicidades. Como diziam os gregos, os idiotes  eram os habitantes de si próprios.  Dentro de si mesmos. Pelas poucas janelas de seus corpos definidos, enfrentam as novas possibilidades de ser e pensar com muito mais resistência do que aqueles que vulneráveis a estes devires variados que se apresentam e se oferecem na névoa.

Deleuze no Abecedário faz um comentário muito pertinente em relação ao animal. Propõe o autor que tenhamos uma relação animal com o animal e que aprendamos o sentido de estar à espreita. Talvez devêssemos pensar dessa forma essa ideia contemporânea do viver. Se pertencemos a um mundo, mesmo que seja este mundo que nos oferece fronteiras moventes, ou melhor, exatamente por vivermos neste mundo, esta relação imanente com ele é essencial, e para isso portanto uma existência à espreita[1], mesmo que dolorosa é imprescindível.

Para darmos conta do que pretendemos, faremos uso do que Deleuze denominou personagem conceitual, que seria para ele o devir ou o sujeito de uma filosofia que valeria para o filósofo, os agentes, verdadeiros, de uma enunciação filosófica.[2]

Usamos para tanto dois de seus personagens conceituais; um que seria o idiota[3], personagem surgido no livro que o autor escreveu com Félix Guattari sobre a filosofia, e o Nômade, criatura que tem seu território produzido pelo trajeto que enceta de um ponto a outro, mas que no entanto não têm nesses pontos limites fixos, visto que são pontos a serem abandonados novamente pela própria necessidade do nomadismo. Deleuze e Guattari discorrem desse assunto minuciosamente no quinto volume de Mil Platôs, capitalismo e esquizofrenia.

O que nos interessa neste trabalho, no entanto é , digamos, não a confrontação entre os dois personagens, mas uma certa visão sobre estes dois conceitos, na esperança de produzirmos  um pouco mais de sentido para nossas tomadas de consciência sobre esse momento pós-moderno.

Somos todos de certa forma, com mais ou menos frequência Idiotas e Nômades, portanto devemos  sempre viver uma existência aux aguets, être aux aguets, buscarmos uma certa percepção de quando estamos sendo mais um do que o outro, e se acharmos pertinente, mudar. Recriarmo-nos em nosso próprio trajeto, possibilitando aos nossos sentidos e percepções novas formas de dar conta do que somos, onde estamos e o que faremos.

Há efetivamente outra coisa,  um pouco misteriosa, que aparece em certos momentos, ou que transparece, e que parece ter uma existência fluida, intermediária entre o conceito e o plano pré-conceitual, indo de um a outro. No momento é o Idiota: é ele que diz Eu, é ele que lança o cogito, mas é ele também que detém os pressupostos subjetivos ou que traça o plano. O idiota é o pensador privado por oposição ao professor público…[4]

Originário de uma atmosfera cristã, o Idiota pretendia, talvez em rebeldia, ajoelhar-se agora, não mais a Deus, mas a Razão, a lógica e a si mesmo, criatura que pensava. A verdade era o objeto da busca, e acreditava pelo fato de saber que pensava ser capaz de por fim alcançar o tão desejado tesouro, a verdade. No entanto, para Deleuze, o pensar não pode existir dentro de um habitante de si mesmo, visto que para Deleuze o pensar é lutar contra a opinião e a degenerescência do pensamento na própria opinião, criando variedade sensíveis, variáveis funcionais e variações conceituais que surgem sobre um plano capaz de recortar a variabilidade caótica.[5] Ou  o ato de pensamento é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está fazendo – o novo, o notável, o interessante, que substituem a aparência de verdade e que são mais exigentes do que ela.[6] Cabe aqui lembrar que para Deleuze e Guattari, a verdade é somente o que o pensamento cria, tendo-se em conta o plano de imanência que se dá por pressuposto, e todos os traços deste plano tomados indiscerníveis.

Como pode então o Idiota, criatura que habita seu próprio corpo e dele é prisioneiro voluntário, buscar o que Deleuze denomina de “encontro”, para a partir daí pensar? Dentro de si mesmo, não há encontros com mais nada a não ser consigo mesmo. O idiota, portanto pensa o seu próprio pensamento. O idiota opina, e sua opinião serve como um escudo que o protege da névoa-caos, ele opina sobre o “seu” pensamento, pois na verdade as ideias estão na névoa, fora do seu corpo-armadura.

E por isso queremos tanto agarrarmo-nos a opiniões prontas. Pedimos somente que nossas ideias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes, e a associação de ideias jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras protetoras, semelhança, contigüidade, causalidade, que nos permitem colocar um pouco de ordem nas ideias, passar de uma  a outra segundo uma ordem do espaço e do tempo, impedindo nossa “fantasia” de percorrer o universo …[7]

O Nômade, vulnerável à névoa-caos,  na relação que cria ao se permitir encontros e propiciar dessa forma acontecimentos, seria capaz de  produzir pensamento, não apenas opiniões. Pois estaria no vórtice das Caóides – realidades produzidas em planos que cortam o caos – a arte, a ciência e a filosofia – como formas do pensamento ou da criação.[8] Lembremos Ismael no vórtice do naufragante Pequod.  Esse fluxo caótico detém  a velocidade infinita do nascimento e do esvanescimento.[9]

Aprisionado na sua opinião-corpo-verdade, o Idiota pelo aço de seu próprio espelho se supões livre, descuidado não nota que os pontos que delimitam o seu pensar, seu agir e o seu ver já não são móveis, estreitados ao pouco espaço do visor de seu capacete identitário,

Enquanto o Nômade enfrenta e se insinua nas ondas da névoa, o Idiota protege-se na tradição, no já dito, no facilmente assimilável, no plausível e palpável, no resumo da paisagem, na representação do real; o Nômade aprende através do movimento, do deslocamento, da necessidade de expandir e sair da casa-corpo, do corpo-território, o Nômade é aquele que não tem pontos, trajetos, nem terra, embora evidentemente ele os tenha. Se o nômade pode ser chamado de o Desterritorializado por excelência, é justamente porque a reterritorialização não se faz depois, como no migrante, nem em outra coisa, como no sedentário (com efeito, a relação do sedentário com a terra está mediatizada por outra coisa, regime de propriedade, aparelho de Estado…). Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização. [10]

Enquanto o Idiota se arvora na ideia do Eu, e na suposta segurança da sua opinião-fronteira intransponível, o Nômade se re-aprende e experimenta. No entanto não estamos falando aqui de dicotomias entre  bem e mal certo ou errado. Como diria Nietzsche as coisas estão para além do bem e do mal. E o próprio fato de se vulnerabilizar ao trajeto, aos movimentos constantes do território não implica em valores de moral nem em definir ideias universais. Bem e mal depende muito do que Nietzsche chamava de moral do escravo e moral do senhor, tudo depende da ótica em que as coisas são analisadas.

Deleuze em Proust e os signos nos diz como entende o pensar, ideia que se afasta completamente da produção mental do Idiota;

O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; ele é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento.[11]

O habitante de si mesmo não consegue romper o ostracismo, nem se permite à ação de potencias externas que o mobilizem, sua opinião, não está imbuída em desenvolver, decifrar ou traduzir signos. Deleuze já alertava para essa imagem do pensamento pré-filosófica e natural, já pertencente ao senso-comum. O Idiota crê que nada precisamos fazer para pensar, basta nos abrirmos aos problemas para que as soluções surjam, livre e espontaneamente; esta imagem, assim como o próprio Idiota está perigosamente envolvida e amalgamada com conceitos morais e dogmáticos do pensamento.

Neste sentido, o pensamento conceitual filosófico tem como pressuposto implícito uma imagem do pensamento, pré-filosófica e natural, tirada do elemento do senso comum. Segundo esta imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro. E é sobre esta imagem que cada um sabe, que se presume que cada um saiba o que significa pensar. Pouco importa, então, que a filosofia comece pelo objeto ou pelo sujeito, pelo ser ou pelo ente, enquanto o pensamento permanecer submetido a esta imagem que já prejulga tudo, tanto a distribuição do objeto e do sujeito quanto do ser e do ente. Podemos denominar esta imagem do pensamento de imagem dogmática ou ortodoxa, imagem moral.[12]

Este ainda é o terreno do Idiota, corpo dogmático, ortodoxo e moral. O idiota habita o EU. Seu corpo é o Cogito Cartesiano… Eu penso. Quando lado a lado observamos os dois personagens conceituais, temos que concordar que enquanto um, o Idiota, dentro de si e do próprio Eu, pensando seu próprio pensamento, busca a  verdade. E para isso caminha por estradas bem definidas e delimitadas, conferidas e aceitas pela lógica de seu tempo e com o consentimento do senso comum, que como a névoa, de certa forma, lhe ofusca e diminui o ver. As definições que acreditava serem perfeitas se indefinem cada vez mais envolvidas pela névoa. No entanto enraizado a si mesmo, não consegue ver sentido em abandonar sua posição.

Já o Nômade propicia o pensamento através do seu abandonar e criar territórios visto que o “ato do pensamento se faz na relação entre o território[13] e a terra, ou seja, se faz como a desterritorialização do território à terra, e a reterritorialização da terra ao território”[14]

O pensamento não está na vontade de alcançar uma verdade como pretende o Idiota, mas no fato sim de resistir ao senso comum, ao próprio Eu.

Entendemos aqui o resistir não como uma confrontação, não como algo dicotômico que defina lados exatos de uma guerra. Mas uma resistência que esteja no pensar através de conceitos, funções ou sensações, filosofia, ciência e arte, que proponham formas novas e diferentes de lidarmos com a intensidade da névoa. E para isso seria razoável pensarmos na ideia do Nômade sim,  pois é o nômade, ao abandonar seu território, se permite o risco e a novas criações para dar conta de si mesmo e dos encontros que com certeza terá em seu trajeto.

Esse nomadismo se traduz por um movimento imanente que faz com que uma singularidade possa se estender até a vizinhança de uma outra e constituir assim uma série convergente. Essa convergência das singularidades numa série constitui ao mesmo tempo o início de sua efetuação e é a condição para que um mundo comece. Neste sentido podemos dizer que o nômade constitui o personagem conceitual do pensamento deleuziano. O nômade é o homem da terra, o homem da desterritorialização – ainda que ele seja também aquele que não se move, que permanece agarrado ao meio, deserto ou estepe.[15]

Dentro desta névoa em que todos nos encontramos, devemos criar intensamente e ansiar sempre pelo novo, oferecer uma passo ao além-fronteira, às diferenças. Criar novos sentidos, novos olhares, novos pensares. Não ceder à opacidade da névoa, mas dentro dela possibilitar novas formas de ver, pensar e sentir. Sequestrado pelo seu território-corpo intransponível, o Idiota só tem encontros com o seu próprio Eu, já no trajeto nômade…

por mais que o trajeto nômade siga pistas ou caminhos costumeiros, não tem a função do caminho sedentário, que consiste em distribuir aos homens um espaço fechado, atribuindo a cada um sua parte, e regulando a comunicação entre as partes. O trajeto nômade faz o contrário, distribui os homens (ou os animais) num espaço aberto, indefinido, não comunicante.[16]

Buscar formas de nos entendermos e ao mundo e  vivermos da melhor forma possível. Sair e chegar para aprender a sentir, pensar e ver. Criar sempre novas formas de sermos gente. Não sermos meramente identidades ou números. Desabitar nosso Eu, que são muitos e permitir passos longos pelo desconhecido e inusitado. Talvez abandonar a insistente busca da grande verdade e nos preocuparmos com as pequenas verdades titubeantes do próprio trajeto. Fazer desse meio, desse andar entre pontos indefinidos e moventes nosso território também movente e nele e com ele produzir aproximações e relações com o outro, e proporcionar vida. Vida intensa, criadora, que resista ao evidencialismo e fatalismo que se supõe da névoa. Que possibilite pensar além da plausibilidade e previsibilidade dos caminhos já percorridos e que só nos levam aos muros de nós mesmos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE. Gilles. GUATTARI, Felix. O que é Filosofia. Editora 34

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Editora 34

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 8. ed. Rio de Janeiro. Forense

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro. Graal. 1998

Silva, Rosane. A Dobra Deleuziana: Políticas de subjetivação.

[1] O termo “à espreita” é um conceito deleuziano e sugere que devamos sempre estar preparados e em busca de “encontros” (outro conceito deleuziano) a fim de produzirmos “acontecimentos”, realidades do virtual, formas de uma pensamento-Natureza que sobrevoam todos os universos possíveis.  Conceitos encontrados no livro de Deleuze e Guattari  O que é filosofia?

[2] DELEUZE. Gilles. GUATARRI, Felix. O que é Filosofia.Editora 34.

[3] Deleuze e Guatarri no livro O que é Filosofia? Nos apresentam dois tipos de Idiotas, para nosso trabalho estaremos usando o primeiro. A segunda personagem do Idiota que Deleuze e Guatarry  nos mostram, fogem um pouco de nossa intenção pois definem  o desejo de reencontrar o incompreensível e  o absurdo, e entendemos que para nosso exercícios de reflexão, o segundo conceito não seria adequado.

[4] DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Editora 34. pág.83

[5] DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Editora 34. pág. 265 e 266

[6] Ibdi. Pág.143

[7] DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Editora 34. pág 259

[8] DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Editora 34. pág.267

[9] DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Editora 34. pág 153

[10] DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Editora 34.

[11] DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 8. ed. Rio de Janeiro. Forense. P.96

[12] DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro. Graal. 1998. pág.218-219

[13] Os conceitos de Território, Desterritorialização e Reterritorialização de Deleuze são  bastante complexos e obviamente não se esgotariam em poucas palavras. Portanto preferimos fazer uso, para um melhor entendimento, mesmo que ainda superficial, de uma citação de Guattari e Rolnik no livro Micropolítica: cartografia do desejo. Pág.323:

“A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo critérios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos.”

[14] DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Editora 34. pág 113

[15] DELEUZE. Citado por Roseane neves da Silva ______In A Dobra Deleuziana: Políticas de subjetivação. Artigo encontrado na Internet. Pág.6.

[16] DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs. V.5. Editora 34. pág.44. (Citação retirada de livro virtual encontrado na Internet)

 

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