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Autoridade do professor e autonomia dos estudantes: processos paradoxais

Autoridade do professor e autonomia dos estudantes:

processos paradoxais?

Mariana Luzia Corrêa

Resumo

A autoridade docente é construída nas relações que se estabelecem entre professores e estudantes. A autonomia dos estudantes, aliada intimamente a esse processo, é possível de ser construída diante de estratégias que se aliem a propostas democráticas e dialógicas educacionais. Esse texto problematiza e aponta possibilidades para o binômio autoridade-autonomia em sala de aula tendo em vista a necessidade de os educadores assumirem esse papel: autoridades em sala de aula que priorizam espaços de autonomia para seus estudantes.

Palavras-Chave: Disciplina Escolar. Autoridade. Autonomia. Relação Pedagógica. Escolarização.

Resumen

La autoridad docente se basa en las relaciones que se establecen entre profesores y alumnos. La autonomía de los estudiantes, muy afines a este proceso, es posible que se construirá en estrategias que combinen la propuesta democrática y dialógica educativo. Este texto discute y señala las posibilidades de que la autoridad-binomio autonomía en el aula en cuenta la necesidad de que los educadores a asumir esta función: las autoridades de los espacios de clase que enfatizan la autonomía de sus estudiantes.

Palabras clave: Disciplina Escolar. Autoridad. Autonomía. Relación pedagógica. La escolarización.

No início do ano escolar, uma das prioridades dos professores é organizar estratégias que favoreçam a compreensão dos estudantes para (re)conhecerem as regras da escola e da sala de aula como necessárias à convivência e ao trabalho pedagógico. É preciso que os estudantes respeitem o momento de quando alguém está falando, seja um professor ou colega de classe; que nos momentos de atividade é necessário concentrar-se e diminuir conversas e brincadeiras; que se comportem adequadamente nos corredores; que não digam palavrões uns aos outros e que dessa forma se tornem uma turma com disposição para conviverem e aprenderem em sala de aula.

Essa preocupação em trabalhar com regras de convivência está aliada a concepções educacionais com fundamentações epistemológicas e políticas distintas. Ou ela pode estar fundamentada em princípios democráticos voltados à educação para a cidadania ou estar aliada a práticas que reforcem a domesticação e a obediência passiva, desconsiderando os saberes e a realidade dos educandos. Para essa forma de compreender o processo educativo, Paulo Freire (1987) a denominou de “educação bancária”: em que o professor é visto, com base nos referenciais da tendência educacional tradicional, como o detentor de todo o saber e poder e, assim, das regras a serem regidas por ele e cumpridas pelos estudantes, sem questionamentos, problematizações ou construção compartilhada.

E porque os homens, nesta visão, ao receberem o mundo que neles entra, já são seres passivos, cabe à educação apassivá-los mais ainda adaptá-los ao mundo. Quanto mais adaptados, para a concepção “bancária”, tanto mais “educados”, porque adequados ao mundo. Esta é uma concepção que, implicando numa prática, só pode interessar aos opressores que estarão tão mais em paz, quanto mais adequados estejam os homens ao mundo. E tão mais preocupados, quanto mais questionando o mundo estejam os homens. (FREIRE, 1987, p. 36)

O conceito de disciplina pode ser entendido de diferenciadas formas. Professores de uma mesma escola, que atuam em mesmo ano ciclo, podem ter compreensões distintas acerca do que é ser disciplinado e a respeito de estratégias possíveis para que uma turma tenha comportamentos considerados disciplinados. O termo disciplina leva muitos professores, num primeiro olhar, a relacioná-lo aos termos autoritarismo, domesticação, passividade, obediência, heteronomia. Contudo, o tema disciplinamento escolar será tratado neste texto tendo em vista suas possibilidades de diálogo a partir do viés da construção da autoridade docente relacionada às estratégias de trabalho escolar que visam à construção da autonomia dos estudantes. São processos dependentes e relacionados, apesar de parecerem, à primeira vista, conceitos paradoxais. Segundo Vasconcellos (2009), a ideia de autoridade do educador está intimamente relacionada à ideia de autonomia dos educandos, porque é por meio do comprometimento do professor compreendido como uma autoridade que promoverá espaços para que os alunos ensaiem suas possibilidades de autonomia, porque esta só se constrói, no espaço escolar, em processos cotidianos compartilhados.

a autoridade pedagógica é uma prática complexa e contraditória, pois a autêntica autoridade leva em si sua negação, isto é, a construção da autonomia do outro. (…) Podemos compreender autoridade no seu sentido mais radical e transformador que é a capacidade de fazer o outro autor (VASCONCELLOS, 2009, p. 122).

O termo disciplinamento não está aqui associado à ideia de domesticação ou de práticas de obediência/passividade estudantil às normas eleitas pelas instituições escolares ou por professores vistos como autoridades rígidas. Trata-se, na verdade, de uma perspectiva que acredita na possibilidade da criação de estratégias escolares que tenham em vista a autorregulação dos estudantes por meio de acordos mútuos e construções compartilhadas a respeito de questões éticas presentes no espaço escolar. Nessa perspectiva, Vasconcellos (2009) revela o sentido que dá ao termo disciplina escolar, dizendo-nos que

[…] o que estamos almejando em termos de disciplina escolar é conseguir as condições de trabalho coletivo como resultado da capacidade do sujeito de se autogovernar, autorreger-se, autodeterminar-se, autoproduzir-se (autopoiésis). O papel do professor, enquanto coordenador do trabalho, seria então de reconhecer, negociar, combinar e ajudar a articular essas disposições dos alunos em torno do objeto de conhecimento, da situação de aprendizagem. (VASCONCELLOS, 2009, p. 92).

É evidente, que nós professores, queremos estudantes ouvintes, interessados, respeitadores das regras e combinações feitas em sala de aula, empáticos uns com os outros, e que, além disso, aprendam tudo o que consideramos necessário ensinar-lhes. Queremos muito trabalhar com os conhecimentos pensados e descritos como ideais nos currículos escolares, mas afinal: de que maneira está sendo construído o currículo oculto das nossas escolas? Moreira & Candau (2007), tratam sobre o conceito de currículo oculto e sobre as implicações no trabalho pedagógico e nos processos de ensino e de aprendizagens escolares.

São exemplos de currículo oculto: a forma como a escola incentiva a criança a chamar a professora (tia, Fulana, Professora etc); a maneira como arrumamos as carteiras na sala de aula (em círculo ou alinhadas); as visões de família que ainda se encontram em certos livros didáticos (restritas ou não à família tradicional de classe média). Que consequências tais aspectos, sobre os quais muitas vezes não pensamos, podem estar provocando nos alunos? Não seria importante identificá-los e verificar como, nas práticas de nossa escola, poderíamos estar contribuindo para um currículo oculto capaz de oprimir alguns de nossos (as) estudantes (por razões ligadas a classe social, gênero, raça, sexualidade)? (MOREIRA & CANDAU, 2007, p. 2-3)

Um dos caminhos pode se basear na problematização dialógica do que surge, dos problemas e conflitos comuns à sala de aula. Nesse sentido, é preciso fortalecer atitudes que tornem os estudantes capazes de discutir meios de resolverem situações conflituosas em que estão envolvidos e que comumente acontecem, pois são corriqueiros – e até necessários para os processos de aprendizagem. O grupo deve ser incentivado a falar de si para o outro, a expor o ocorrido e expressar o que se passa. O professor é uma figura mediadora que é autoridade que faz do outro autônomo nessas relações. Atitudes antes citadas sobre saber ouvir, esperar, andar gentilmente pelos corredores podem ser pensadas coletivamente a partir dos porquês que as embasam: para que é necessário ouvir o outro que fala? Para que preciso caminhar e não correr num espaço em que outras pessoas estão também transitando? Para que devo respeitar as diferentes formas de ser, fazer e aprender de meus pares? Por que devo abrir mão do que eu quero em nome do “combinado” de todos dentro de uma mesma sala? Esse movimento de problematização dos porquês das regras de convivência é diário, cotidiano, sempre que se fizer necessário, pois é por meio das experiências compartilhadas que as aprendizagens de ser autônomo se tornam significativas.

A gente vai amadurecendo todo o dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade. (FREIRE, 1996, p.107)

Entretanto, só problematizar essas questões não basta. O grupo de alunos que queremos com essas atitudes, construindo sentidos para elas, precisa estar vinculado a uma rede produtora de sentimentos de pertença e compromisso com o outro, a partir de espaços de liberdade, em que possam experimentar situações de autonomia e confiança. Para Rios (In: VEIGA, 2011), é no espaço coletivo que as experiências com a liberdade fazem dos homens e mulheres sujeitos de possibilidades e limites, tendo em vista os valores sociais assumidos pelo grupo em que estão vinculados.

Encontramos, muitas vezes, a afirmação de que não temos verdadeiramente liberdade, uma vez que na convivência social estamos sujeitos a uma porção de pressões, de limites. É necessário pensar, entretanto, que não há liberdade sem limites. A liberdade é uma condição dos seres humanos, que vivem socialmente. Por isso, ela se revela em situações concretas, que apresentam limites e possibilidades. Nós somos tanto mais livres quanto mais ampliamos as possibilidades e reduzimos os limites. (RIOS In: VEIGA, 2011, p. 87).

 Assim, o professor deve ser um orientador de seus alunos sempre que necessário, tornando-se uma referência para estes estudantes a fim de discutirem coletivamente formas de lidar com as situações conflituosas e inesperadas que surgem no cotidiano da sala de aula. O professor precisa ser uma autoridade que dialoga com seus alunos e que orienta, sem negligenciar, contudo sem superproteger. É responsável por encaminhar discussões a respeito de questões éticas, que envolvem princípios de justiça, verdade e respeito nas relações com o meio e com o grupo. Ele, nessa posição, deve intervir de forma que os estudantes envolvidos em um conflito aprendam a lidar com ele e a pensar formas de resolucioná-lo. Incansavelmente, o professor intervindo nessas situações, como uma autoridade mediadora, é capaz de demonstrar a esses sujeitos que são realmente capazes de serem sujeitos de relações baseadas pela ética e pelo diálogo. Segundo Freire (1986), em diálogos com Shor, o professor deve ser uma autoridade na medida em que é responsável pelos processos de ensino e aprendizagem que orienta nas instituições escolares e deve assumir-se politicamente nessa posição, sem prejuízos de sua imagem como professor democrático e aliado a práticas de liberdade.

Mas, veja bem, Ira, para mim, a questão não é que o professor deva ter cada vez menos autoridade. Para mim, o importante é que o professor democrático nunca, realmente nunca, transforme a autoridade em autoritarismo. Ele nunca poderá deixar de ser uma autoridade, ou de ter autoridade. Sem autoridade, é muito difícil modelar a liberdade dos estudantes. A liberdade precisa de autoridade para se tornar livre. É um paradoxo, mas é verdade. A questão para mim, no entanto, é que a autoridade saiba que seu fundamento está na liberdade dos outros; e se a autoridade nega essa liberdade e corta essa relação que a embasa, então creio que já não é mais autoridade e se tornou autoritarismo. (SHOR & FREIRE, 1986, p.61).

Autoridade, liberdade e autonomia são conceitos relacionados e se pensados numa mesma perspectiva política-pedagógica podem comprometer-se com práticas educacionais para uma formação escolar mais democrática e dialógica.

Em síntese

O conceito “disciplina escolar” pode ser atribuído a uma concepção tradicional de educação, baseada em perspectivas de trabalho aliadas a práticas docentes autoritárias e rígidas. Contudo, pode, por outro lado, estar comprometido com a educação de crianças e jovens a partir de relações dialógicas, em que o professor é compreendido como uma autoridade rigorosa, porque “‘rigor’ não quer dizer ‘rigidez’” (SHOR & FREIRE, 1986, p.52), coerente com seu papel de educador comprometido com valores universais para a Humanidade como a justiça, o respeito e a solidariedade. É papel do educador, sua responsabilidade, estar atento ao seu grupo de estudantes e ao que se passa no contexto de sua sala de aula, sem riscos de negligência ou rotinização de práticas monótonas. Contudo, por outro lado, deve vigiar-se para não promover práticas paternalistas e superprotetoras aliadas a condutas autoritárias e prepotentes, que sufocam autonomias possíveis de serem ensaiadas no cotidiano da sala de aula escolar.

Referências bibliográficas

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 33ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

______. Pedagogia do Oprimido. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 107p.

MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa; CANDAU, Vera Maria. Currículo, conhecimento e cultura. In: BEAUCHAMP, Jeanete; PAGEL, Sandra Denise, NASCIMENTO, Aricélia Ribeiro do. Indagações sobre currículo: currículo, conhecimento e cultura. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007. p. 01-34.

RIOS, Terezinha Azerêdo. A dimensão ética da aula ou que nós fazemos com eles. In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro (org.). Aula: gênese, dimensões, princípios e práticas. 2ª ed. Campinas: São Paulo, 2011.p.73-94.

SHOR, Ira; FREIRE, Paulo. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Indisciplina e disciplina escolar: fundamentos para o trabalho docente. 1ª ed. São Paulo: Cortez, 2009.

Autora:

Mariana Luzia Corrêa – É licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Maria/UFSM, é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS e atua como professora dos Anos Iniciais, em uma escola pública municipal na cidade de Porto Alegre/RS.

Como citar o texto:

CORRÊA, Mariana Luzia. Autoridade do professor e autonomia dos estudantes: processos paradoxais? Revista Partes. xxxx

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