ENCRUZILHADAS
Margarete Hülsendeger
Nas decisões importantes da vida pessoal, devemos ser governados, penso eu, pelas profundas necessidades íntimas da nossa natureza.
Sigmund Freud
Ninguém pode dizer que nunca enfrentou pelo menos uma. Até hoje não sei se a vida está cheia delas ou se elas estão cheias de vida. O que sei é simples: elas existem e estão sempre nos colocando a prova. Sim, senhores e senhoras, as encruzilhadas são espaços pelos quais todos nós um dia teremos de passar.
E quando me refiro a encruzilhadas, estou falando daqueles momentos de grandes decisões, nos quais temos de escolher, por exemplo, entre ficar ou partir. Momentos de transformação e até de reinvenção que podem nos fazer mergulhar em um mar de tristeza ou em um oceano de alegria. A escolha, nessas ocasiões, é sempre nossa e as consequências também.
Qual profissão seguir é uma das primeiras encruzilhadas que somos obrigados a enfrentar e, com certeza, uma das mais importantes e difíceis. Basta compreender que passaremos boa parte do nosso tempo de vida exercendo-a e, portanto, dela devemos extrair não só o nosso sustento, mas, também, e principalmente, um mínimo de satisfação.
Eu, por exemplo, decidi ser professora. Uma escolha contrária a todos os desejos e conselhos de minha falecida mãe.
Lembro, como se fosse hoje, a expressão de espanto em seu rosto quando comuniquei a minha decisão. Ela não conseguia entender porque eu estava disposta a “desperdiçar” anos de estudo (cinco, para ser mais exata) com uma profissão que, no futuro, não me daria um salário digno e nem o respeito que, segundo ela, um médico ou um advogado têm garantidos em nossa sociedade. Minha mãe considerava um “desperdício de talento”, meu talento.
Hoje, passados 25 anos, não posso dizer que ela estivesse completamente errada. Na verdade, a maioria dos seus argumentos acabaram se confirmando.
O falecido Chico Anysio tinha um personagem na TV, nos anos 90, chamado professor Raimundo. Ele sempre encerrava o programa com o seguinte bordão: “E o salário? Ó!”, ao mesmo tempo juntando os dedos em um gesto bem conhecido quando queremos expressar algo pequeno. Será que de 1990 até os dias de hoje a situação mudou? A resposta triste, trágica e nem um pouco engraçada, é um enfático e melancólico não.
Em pleno século XXI são poucos os professores que, no Brasil, conseguem sobreviver trabalhando em apenas uma escola. A maioria leciona em dois e até três colégios para conseguir, no final do mês, um salário minimamente satisfatório. Isso corresponde a uma jornada, dentro da sala de aula, de 40 horas semanais, sem contar o trabalho feito em casa. E por tudo o que vemos e ouvimos na mídia e do próprio governo, não existe no horizonte nenhuma proposta ou ideia que tenha como objetivo mudar, em um curto espaço de tempo, essa realidade. Educação, infelizmente, não está entre as prioridades dos nossos governantes. Ponto para minha mãe.
Contudo, os problemas não são apenas de ordem salarial. Existe algo ainda mais delicado. Algo que tem sido apontado como uma das maiores fontes de estresse dos professores. Estou me referindo ao velho, bom e saudável respeito. Ou, seria melhor dizer, a falta dele.
Quando comecei como professora, tinha acabado de completar 23 anos e era, na época, uma jovem cheia de sonhos e ideais. É difícil descrever a emoção de estar pela primeira vez diante de uma sala cheia de alunos. A adrenalina corria solta pelo meu corpo como se eu estivesse prestes a entrar na jaula de um leão. Foi – e ainda é – uma experiência angustiante e ao mesmo tempo fantástica.
Naquela época, no entanto, a realidade era mais simples. Havia alunos rebeldes – aliás, ainda não nasceu um adolescente que não o seja –, mas os limites de comportamento eram claros. Eu era a professora; eles, os alunos. Eu estava ali para ensinar, eles deviam aprender. Não havia dúvidas sobre os papéis a serem desempenhados. Além disso, os professores também contavam com a ajuda de um elemento importante nessa equação: o apoio dos pais.
Porém, conforme os anos passavam, as situações dentro e fora da sala de aula tornavam-se gradativamente mais complexas. Os limites deixaram de ser tão claros e os papéis que cada um deveria desempenhar ficaram nebulosos a ponto de muitos professores não saberem mais qual seria a sua real função. Do mesmo modo, os pais. Eles se ausentaram da escola ou, simplesmente, retiraram o seu apoio, deixando não só os professores, mas também os alunos, seus filhos, sem um dos referenciais mais importantes no processo educacional: a família.
No início, devo confessar, não notei as mudanças. Ingenuamente, preferi acreditar que era uma fase ou um grupo específico de alunos problemáticos e que no ano seguinte tudo seria melhor. Todavia, de novo, o tempo foi passando e a situação não melhorou. Ao contrário. Era preciso inventar novas formas de “entreter”, muitas vezes, esquecendo que o objetivo da escola e, por consequência, do professor, não é o entretenimento, mas o ensino.
Assim, aqui estou eu, 25 anos depois, diante de uma nova encruzilhada, tão difícil quanto a primeira. Agora devo decidir se continuo fazendo o que sempre fiz – ensinar – ou se abro espaço para aqueles que querem assumir essa tarefa. Quando escrevo este texto minha decisão já foi tomada. Entretanto, preciso dizer que, independentemente da escolha feita, não me arrependo de ter-me dedicado ao magistério durante esses 25 anos. Muito provavelmente, cometi vários erros, mas quero acreditar que também acertei algumas vezes. Do mesmo modo, não creio que desperdicei meu “talento”, como profetizou minha mãe, pois desde cedo sempre soube – perdoem a falta de modéstia – que a minha melhor qualidade era saber ensinar.
HÜLSENDEGER, Margarete Jesusa Varela Centeno . ENCRUZILHADAS. REVISTA VIRTUAL PARTES, SÃO PAULO, , v. 8, p. 3 – 5, 01 ago. 2013.