O CASO DAS ESTÁTUAS
Margarete Hülsendeger
Há esperanças, só não para nós.
Franz Kafka
Morro, mas não vejo tudo! Têm coisas que parecem ter saído diretamente de um conto do Kafka.
Um belo dia, funcionários da prefeitura de uma cidade do interior – me reservo o direito de preservar o nome do local – receberam uma encomenda inusitada. Tratava-se de três estátuas: uma zebra, um elefante e a imagem, em tamanho natural, do deus do vinho. Esses “monumentos”, quando chegaram na tal cidade, foram descarregadas no pátio da Secretaria de Viação e Obras Públicas e, como mais tarde foi averiguado, custaram aos cofres públicos a bagatela de 24 mil reais. Segundo o que se pôde até o momento apurar, elas seriam o resultado de medidas de compensação ambiental (?!) acordadas, em 2011, com duas vinícolas (?!) com o objetivo de “embelezar” praças.
Se você a essa altura está pensando que eu estou inventando essa história, lamento informar: é tudo verdade. E se não fosse triste seria muito engraçado. Imaginem…
Em uma manhã de segunda-feira, digamos 10 horas, estavam todos os servidores trabalhando, quando um caminhão enorme estacionou na frente da prefeitura. O veículo imediatamente atraiu a atenção das pessoas que estavam ali perto e até fez com que algumas reduzissem o passo para matar a curiosidade. O motorista deixou o caminhão segurando uma prancheta e, com pressa, dirigiu-se para o interior do prédio.
Como geralmente acontece em repartições públicas, ele foi encaminhado no mínimo a quatro (talvez cinco!) funcionários diferentes até que alguém decidiu responsabilizar-se pela entrega. Esse pobre infeliz, quando leu o que estava descriminado na fatura, não conseguiu entender. Era absurdo demais para ser verdade. O motorista, querendo encerrar a história o mais rápido possível, correu para o caminhão e aguardou que alguém fosse designado para retirar a mercadoria.
Enquanto isso, o número de curiosos em torno do veículo aumentara significativamente.
“O que será que tem aí dentro?” – era o que todos se perguntavam. Afinal, se tratava de uma cidade do interior, onde qualquer evento novo era sempre bem vindo.
Muito bem, alguns minutos depois, três funcionários saíram para receber a encomenda. Para espanto dos três, dentro do caminhão cobertas por uma lona preta, embrulhadas em metros e metros de papel bolha, encontraram três estátuas: uma zebra, um elefante e um homem seminu, coberto de folhas de parreira segurando um jarro de vinho em uma das mãos e um cacho de uvas na outra.
Os funcionários se olharam e boquiabertos permaneceram diante do caminhão sem saber o que fazer.
O motorista furioso, de dentro do veículo, começou a empurrar a primeira estátua. Praguejando muito, ele exigia que os três funcionários começassem a se mexer. Vencida a inércia inicial dois deles entraram no caminhão, enquanto o terceiro foi buscar uma prancha que ajudasse na retirada daqueles três “monumentos”.
A primeira a sair foi a zebra. O povo – sim, já havia uma pequena multidão na frente da prefeitura – susteve o fôlego quando viu o animal.
“Uma zebra? E de pedra? O que está acontecendo?” – as pessoas se perguntavam.
Os murmúrios ficaram mais fortes quando o elefante foi colocado na calçada.
“São de verdade?” – uma criança quis saber, olhando assustada para os dois animais.
No entanto, a grande atração, como se fosse um espetáculo circense, estava reservada para o final. A descida, pela rampa improvisada, do homem seminu.
Quem não sabia do que se tratava, estranhou aquele ser meio pelado e aparentemente bêbado.
“Quem é? Algum artista? Quem sabe, alguém da Globo?” – os mais animados arriscavam.
“Não, bando de ignorantes! É o deus do vinho!” – respondeu o professor de história da escola municipal.
“Como assim, ‘deus’!?” – quis saber uma senhora.
O professor, impaciente, pois estava atrasado para a primeira aula, explicou:
“É a divindade que representa o vinho, chamado pelos gregos de Dionísio e pelos romanos de Baco” – e sem mais uma palavra saiu correndo em direção à escola.
Um homem que estava ali desde que o caminhão chegara e era, como se soube depois, funcionário público aposentado, indignou-se e aos berros dizia:
“Pouca vergonha! Deus é um só!”
A essa altura o prefeito e seus secretários já haviam sido informados e nervosos estavam todos na frente do prédio pedindo pressa para colocar as tais estátuas para dentro do pátio. Era preciso descobrir qual a sua origem e, principalmente, quem era o responsável por aquela brincadeira de mau gosto.
Bem, o resto da história você conhece, pois se trata, como disse no inicio, de um fato verídico. O Ministério Público passou a investigar a possibilidade – sim, porque enquanto não forem fornecidas provas é apenas isso, uma possibilidade – de desperdício do dinheiro público. Além disso, descobriu-se que se tratava de uma transação efetuada pelo governo anterior. Uma vergonha e um imenso constrangimento!
Nesse ponto, é impossível não se lembrar de várias histórias ficcionais que de alguma forma guardam relação com o que aconteceu nessa cidade. A zebra, o elefante e o deus se parecem muito com o inseto do conto “Metamorfose” de Kafka ou os mortos-vivos do romance “Incidente em Antares” de Erico Veríssimo. Histórias, aparentemente inverosímeis, com personagens transitando entre o real e o imaginário sem maiores dificuldades. O que aconteceu nessa cidade, no entanto, não é fruto da imaginação de algum escritor. Muito pelo contrário. Uma diferença importante entre a realidade e a fantasia é que os finais de “Metamorfose” e “Incidente em Antares” você pode conferir lendo os livros, enquanto, o desfecho do caso das estátuas será preciso aguardar que a justiça se manifeste. E eu diria mais, aguardar e rezar para que dessa vez a justiça não tarde e nem falhe.
HÜLSENDEGER, Margarete Jesusa Varela Centeno . O CASO DAS ESTÁTUAS. REVISTA VIRTUAL PARTES, SÃO PAULO, , v. 5, p. 3 – 5, 02 maio 2013.