CAUSA DE INVEJA
Margarete Hülsendeger
“A inveja é assim tão magra e pálida porque morde e não come” já dizia Francisco Quevedo, escritor espanhol do século XVII. Com certeza, esse é um dos sentimentos mais terríveis e amargos que uma pessoa pode experimentar. Não é por nada que a inveja compõe a lista dos sete pecados capitais. No entanto, preciso reconhecer que, não tem muito tempo, estive dominada por esse infame sentimento. Explico.
Há algumas semanas, por conta de uma dor persistente nos ouvidos, fui consultar um otorrino. Quando cheguei ao consultório, além da secretária, havia dois outros pacientes, eram dois idosos, um homem e uma mulher. Depois de cumprimentá-los procurei uma cadeira; a única disponível era a que estava ao lado do homem e de frente para mulher. Sentei-me e sem nada para fazer entretive-me em folhear uma revista. De repente, um som chamou a minha atenção.
A princípio pensei tratar-se de um ruído vindo da rua. Contudo, em seguida, percebi que a origem do som estava bem próxima de mim. Era o idoso. Ele havia adormecido e roncava tão forte que as paredes do consultório pareciam vibrar. A secretária, a outra paciente e eu permanecemos em silêncio – nenhuma de nós teve coragem de acordá-lo – deixando que ele seguisse com a sua “sinfonia”. Quando, finalmente, ele foi chamado pelo médico não houve como evitar os sorrisos divertidos e os comentários bem humorados.
A essa altura você deve estar se perguntando: o que essa história tem a ver com a inveja? Para responder a pergunta transcrevo outra citação:
Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
Esse é um verso do poema “Insônia” de Álvaro de Campos, um dos mais conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa. Para mim, mais do que um poema, trata-se de uma das melhores descrições do que ocorre quando não se consegue dormir. Só mesmo quem já passou noites acordado é capaz de avaliar os sentimentos de angústia e aflição, provocados pela falta de sono. E é exatamente aí que reside a inveja.
O “senhor roncador” demonstrou uma capacidade de desligamento fora do comum. Ele esqueceu onde e com quem estava, permitindo-se relaxar e, consequentemente, dormir. Uma proeza inimaginável para quem sofre de insônia.
O insone deita-se no escuro do seu quarto, no conforto da sua cama e não dorme. O insone, como diz Álvaro de Campos, não consegue ler, escrever e, muito menos, pensar. O insone atravessa a madrugada preocupando-se com o tempo que lhe resta de sono, sabendo que ao final, terá de enfrentar o dia sem ter conseguido dormir. Como diz o poeta, em outro verso:
Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada…
Imagine, então, o ressentimento de um insone quando vê alguém deslizando para o sono com tanta facilidade. É difícil não sentir inveja.
Alguns argumentarão que essa facilidade também pode ser sinal de um problema mais sério. Não duvido. Entretanto, sabe-se que a falta de sono é a causa de doenças importantes como distúrbios de humor, diminuição da produção de insulina, envelhecimento precoce e até a redução da imunidade. Infelizmente, eu entendo um pouco do assunto e por isso não tenho vergonha (talvez um pouco!) em admitir o quanto de inveja sinto daqueles que, ao contrário de mim, dormem como bebês em qualquer lugar ou circunstância.
E os tratamentos? Eles não podem ajudar? Sim, é claro, mas a questão não é essa. Quando digo que senti inveja do “senhor roncador” é porque gostaria de dormir tão facilmente como ele. Gostaria de adormecer sem ter de utilizar qualquer tipo de tratamento. E a pergunta que sempre me assombra nessas situações é simples: “Por que ele e não eu?”.
Reconheço, como disse antes, ser a inveja um sentimento terrível e infame. Porém, como não pensar em todas as horas nas quais fiquei desperta, olhando para o teto ou para o movimento inexorável dos ponteiros do relógio. Assim, quando vi aquele senhor adormecer num lugar estranho, em meio a pessoas desconhecidas, num ambiente completamente distinto do seu quarto, foi como se tivesse levado um tapa. Afinal, me pergunto, qual é o meu problema? O que estou fazendo de errado? Por que a minha mente insiste em permanecer ruminando sobre problemas passados, presentes e até futuros?
Encontrar as respostas para essas e a tantas outras perguntas depende só de mim. No entanto, o acaso me fez esbarrar no poema de Álvaro de Campos. Nele não encontrei soluções, mas reconheci certas verdades que há muito tempo escondia de mim mesma,
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
(os grifos são meus)
Preciso dizer mais?
HÜLSENDEGER, Margarete Jesusa Varela Centeno . CAUSA DE INVEJA. REVISTA VIRTUAL PARTES, SÃO PAULO, , v. 10, p. 3 – 5, 05 out. 2012.