Crônicas Gilda E. Kluppel Gilda E. Kluppel

As lições de um vampiro

As lições de um vampiro

Gilda E. Kluppel

 

Gilda E. Kluppel é professora de Matemática do ensino médio em Curitiba/PR, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná.

Talvez muitos passam por ele, pelas ruas de Curitiba, e nem percebem, outros pensam avistar o vampiro e alguns até duvidam da sua existência. É fácil confundir quando não se tem a imagem ou a imagem formada é fruto da imaginação. A lenda viva, figura das mais misteriosas da cidade, disfarça que caminha, com um par de tênis, mas voa frequentemente pelo centro, camuflado por um boné.

Raras vezes fotografado. Afinal, vampiro que se preze não gosta de ser reconhecido em seus voos, restritos a uma pequena região do centro da cidade, próxima da sua casa. Inserida no bairro que não por acaso chama-se Alto da Glória, onde ninguém ousa bater à porta. Com que direito podemos invadir a privacidade tão desejada pelo vampiro? 

Conhecido pelo comportamento recluso, Dalton Trevisan, o Vampiro de Curitiba, recebeu este apelido pelo título de seu livro mais famoso, e também pela recusa em participar de entrevistas, sessões de autógrafos, debates e toda a forma de exposição em público.

Além dos enredos vampirescos, a reclusão reforça uma das coisas que as pessoas mais gostam: o mistério. As possíveis aparições de Dalton Trevisan, em algum lugar da cidade, geram histórias e enchem de orgulho àqueles que puderam avistá-lo, seja por alguns segundos, em suas constantes caminhadas.

O consagrado vampiro, mestre na arte do conto curto, com olhos vermelhos aguçados, isola-se para observar e captar melhor a cidade. Suga o sangue das artérias da Curitiba moderna para criar seus personagens e narrativas, revela os porões da cidade escondida entre as aparências e os disfarces.

Numa sociedade que valoriza o culto à personalidade, o Vampiro de Curitiba destaca o mais importante: a obra. Ao se tornar um escritor invisível, demonstra o óbvio, às vezes, nem tão óbvio, para um escritor é melhor escrever do que falar. As ausências despertaram ainda mais atenção sobre os seus contos. Durante a entrega do Prêmio Portugal Telecom (2007), Dalton obteve o segundo lugar, como de costume não compareceu à cerimônia, mas numa mensagem enviada, deixou o vestígio sobre a sua visão da literatura, escrita com frases compiladas de seus contos: “Só a obra interessa. O autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista. Vampiro sim, de almas. Espião de corações solitários, escorpião de bote armado. Eis o contista. Só invente o vampiro que exista. Com sorte, você adivinha o que não sabe.”

Embora não pretenda servir de referência e exemplo, a sua recusa em aparições caminha no sentido contrário da sociedade consumista e da consequente fragmentação do pensamento. Em que o exibicionismo parece ter sempre espaço garantido, mas nunca merecido quando parte de fatos, ídolos e heróis fabricados. Uma opção diferente ao modelo da sociedade do espetáculo, na qual a pessoa anseia rapidamente tornar-se o alvo das atenções, para também participar do espetáculo. Muitas vezes, sem ao menos saber o porquê, talvez envolvida por este sistema, capaz de transformá-la apenas num objeto de observação do outro.

Esta vida de aparências, incutida como natural e valiosa, em inúmeros momentos, penetra no sangue dos indivíduos. Deste sangue o vampiro não sugou e sem expor a sua imagem, apesar da sociedade do espetáculo, mostra as brechas existentes para um viver diferente, em que não somos meros fantoches do jogo midiático. 

Vencedor do Premio Camões de literatura (2012), o mais importante da língua portuguesa, escolha justificada por sua opção radical pela literatura, enquanto arte da palavra, e também do Prêmio Machado de Assis deste ano, da Academia Brasileira de Letras. Logo, com os holofotes direcionados para o vampiro, o assunto mereceu destaque na mídia, nacional e internacional. No dia da divulgação do Prêmio Camões, o tópico tornou-se um dos mais citados no twitter.

Mas, o vampiro resiste à modernidade, para continuar circulando tranquilamente pela ruas de Curitiba. Uma cidade apropriada aos voos diurnos vampirescos, quase sempre nebulosa, ajuda a manter o anonimato, mesmo diante de tamanha repercussão das suas obras.

 

 

 

 

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