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Corpos dóceis a serviço da Indústria cultural: a castração da fantasia do sujeito

Adorno

Priscila Monteiro Chaves*

publicado em 14/04/2012 como www.partes.com.br/educacao/artigos/corposdoceis.asp

 

Priscila Monteiro Chaves é graduada em Letras Port-Francês e respectivas literaturas pela UFPel, mestranda do PPGE da mesma universidade, sob orientação de Gomercindo Ghiggi. Integrante do Grupo de Pesquisa FEPráxiS, Filosofia, Educação e Práxis Social. Bolsista CAPES.

Resumo:

Entendido que a leitura é uma atividade que demanda participação efetiva por parte do sujeito, o presente texto procura compreender um dos agravantes do esfacelamento da formação do sujeito leitor apoiando-se na relação de intertextualidade que há entre parte do legado adorniano e o texto Corpos Dóceis de Foucault. Concluindo que a formação do leitor contemporâneo ainda sobre com a perspectiva utilitária proposta por ambos.

Palavras-chave: Indústria Cultural, leitor, leitura, docilidade.

Résumé:

Compris que la lecture est une activité qui nécessite des efforts effective de la participation par le sujet, ce texte essaye à comprendre l’un des facteurs aggravants de la dépréciation de la formation du lecteur en s’appuyant sur la relation d’intertextualité qui fait partie de l’héritage d’Adorno et le texte Les Corps Dociles de Foucault. En concluant que la formation du lecteur contemporain souffre encore avec la perspective utilitariste proposé par les deux.

Mots-clés: Industrie Culturelle; lecteur ; la lecture ; la docilité.

Entre números preocupantes e outros recortes geográficos, econômicos e sociais da leitura, é evidenciada a má notícia de que o Brasil, apesar dos recentes avanços e das pesquisas fomentadas acerca da temática da leitura, ainda não reconhece a questão do livro como requisito de extrema relevância e necessidade imediata, estratégico para seu presente e, sobretudo, para construir outra perspectiva de futuro.

Essa displicência é evidente ao se constatar nas pesquisas o quanto os sujeitos ainda hesitam na hora em que deveria conferir a ela a dimensão de uma política efetiva de Estado. O que, segundo Galeano Amorim, a quem foi confiada a coordenação da publicação e também da pesquisa de Retratos da Leitura no Brasil (2008), “inclui orçamentos públicos mínimos, estrutura para bem aplicá-los e uma clara definição de papéis para os diferentes entes da federação” (p.16). Para Amorim, a questão se esclarece ainda mais uma vez que bastaria “observar a baixa frequência da população nas bibliotecas brasileiras, um serviço público que, embora essencial, continua a merecer só um tratamento de segunda classe” (2008, p.16), dados também disponíveis pela pesquisa de âmbito nacional publicada em Retratos.

Informação publicada na mesma pesquisa é a de que dos poucos brasileiros que leem, muitos deles apontam uma imediata acepção a textos de fácil compreensão e construídos sob receituários que apresentam sempre a mesma estrutura, a fim de que o leitor permaneça na posição de expectador desse processo e tenha a falsa impressão de que tudo que acontece ao seu redor está repleto de coerência, principalmente política. Theodor W. Adorno irá apontar essa espécie de texto como produtos da Indústria Cultural (1985).

No legado de Adorno, o conceito de Indústria Cultural emerge da tentativa de fazer uma análise do fenômeno reprodutivo das sociedades de massas, em que a cultura converte-se em mercadoria. Criou-se uma indústria que planeja bens para o consumo cultural, no entanto, levando a sociedade a um mundo dominado, uma vez que não passa de mera repetição, sempre fabricando o mesmo modelo e o multiplicando com o exclusivo objetivo de consumo.

Com a globalização já evidenciada pela teoria do imperialismo cultural americano de Herbert Schiller (1969), pensou-se que, com tamanho avanço técnico e maior facilidade de acesso aos diferentes indivíduos, chegaria o momento em que os clássicos portadores de textos literários seriam compartilhados por todos, que a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica seria popularizada e que politicamente a literatura conseguiria ser mais uma dimensão impulsionadora da emancipação da sociedade. Ledo engano! Ao mesmo tempo que a rede possibilitou o acesso às mais diversas obras da literatura mundial, proporcionou uma verdadeira indústria dos resumos, sínteses e resenhas dessas obras, disseminando o plano enganador de que essa mercadoria estaria encurtando uma distância nem tão necessária de ser percorrida. O que cresce ainda mais com as leituras obrigatórias estipuladas pelas indicações dos programas de processos seletivos para o ingresso às Universidades.

Segundo Benjamin, ao analisar a imagem espiritual desse mundo de artífices e a capacidade do homem de abreviar até mesmo as narrativas, Paul Valéry – renomado escritor, filósofo e poeta francês, fortemente influenciado pela estética da literatura – conclui que o enfraquecimento nos espíritos da crença na eternidade impulsiona uma aversão cada vez maior ao trabalho prolongado. Consequentemente, todas as produções advindas de uma indústria tenaz, consistente e virtuosa vêm esfacelando-se, pois o tempo em que o tempo não contava não mais existe. E quiçá, a sua mais rija provocação é a asserção de que o homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado.

A ideia de eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Se esta ideia está se atrofiando, temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu a comunicabilidade da experiência à medida que a arte de narrar se extinguia (BENJAMIN, 1994, p.207).

No entanto, caindo em uma possível contradição em que para não perder tempo, o que acabam ocasionando é perdê-lo, enganam-se e já não são capazes de comprometerem-se com essa experiência (FREIRE, 1979).

Se em tempos remotos a exclusão se dava, primordialmente, pela dificuldade de acesso às obras literárias, em tempos de modernidade tardia, a tecnologia tem sido apontada como um dos impasses do Ensino de Literatura, percebida por Freitas (2003) quando contesta que, ao mesmo tempo que “os tecnófilos veem a tecnificação do literário como algo inevitável diante do qual todos devem se curvar sem resistência”, o que deveria ser um grande avanço social; “há os que desconfiam do novo suporte com medo de que o texto literário apresentado na tela perca a aura da Literatura” (p. 156), já discutida por Benjamin na mesma obra citada nesta seção. Há também, aqueles que se preocupam com a função política e social da literatura, questionando seu caráter transformador, o que neste momento não será enfocado.

Uma leitura mais qualificada desse fenômeno é propiciada pelas reflexões de Michel Foucault, com sua tentativa de compreensão do processo de docilização dos homens. Processo que inflige a necessidade de diferentes métodos de disciplina, responsáveis por permitir o controle minucioso das operações dos homens, “que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (1997, p.118).

Foucault justifica tamanha tentativa de controle disciplinar em prol de uma sociedade que se edifica calcada na construção de um tempo integralmente útil, em que o homem é formado para servir aos interesses governamentais. Para o filósofo e professor francês essa manipulação é encontrada já muito cedo em funcionamento nos colégios, a partir de técnicas bastante minuciosas, por diversas vezes íntimas, e que “não cessaram, desde o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro” (1997, p.120).

O que desde aquele tempo o autor pôde perceber é a perversa consequência de “uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de docilidade” (FOUCAULT, 1997, p.118). Um novo conjunto de obrigações sendo imposto, uma maneira de ajustar o corpo a imperativos temporais, que, conjugados com as contribuições adornianas, trazem como dano uma transição maléfica da competência leitora contemporânea, uma inversão de sentido e de valores entre um saber que e um saber como. Este que a atual sociedade tanto estima, conhecido como know-how.

Se de fato há esse desacordo entre esse saber técnico (saber como, saber fazer, e essa instrução reitera-se neste momento com o know-how) e o pensamento das criaturas humanas, todas elas serão servas desse saber como? Dominados por qualquer espécie de técnica que seja capaz de emitir juízos a todos comunicáveis, por todos verificáveis (ou compartilháveis)?

Essa limitação configura um das faces mais nefastas da formação do leitor, que traz consigo a habilidade de manipulá-lo sem que percebesse seus artifícios, deixando-o inativo no ato de leitura, como mero objeto de tal processo. Bem como trabalha o fruto da Indústria, que procura acalmar e cegar os homens da sociedade moderna, tomando e preenchendo o tempo vazio destinado para o lazer, a fim de que a injustiça do sistema capitalista seja menos perceptível, o que faz com que o leitor esqueça a exploração sofrida nas relações de produção. Por isso, a diversão lhes é necessária, para forjar no horário de trabalho aquela tensão que o ordenamento da sociedade, elogiado pelo conservadorismo cultural, exige delas (ADORNO, 1995).

O que vai ao encontro do que diz Maria Tereza Rocco (1999), ao denunciar que “essa facilitação excessiva gerará simulacros, impede o contato efetivo do aluno com os textos de arte e cria uma obstáculo perene para que, na escola, se atinja o prazer real de ler” (p.102). Assim, por mais que o espírito pretenda ir mais além, como princípio autenticamente dinâmico e natural do homem, fácil lhe é, contudo, prever que sua tentativa será frustrada; e isso não agradará menos a ideologia (ADORNO, 1995).

Perverso, pois a engrenagem não propicia uma participação política dessa massa, formada e alimentada pela indústria, já não há nexo entre seus interesses e a participação pública, e por isso recuam mediante qualquer atividade política, que somente reforça o sentimento de impotência do sujeito, deformando a constituição social global. Para Adorno, isso se dá pela castração da fantasia do sujeito:

A mais importante, sem dúvida, é a detração da fantasia e seu atrofiamento. (…) Quem quiser adaptar-se, deve renunciar cada vez mais à fantasia. (…) A falta de fantasia, implantada e insistentemente recomendada pela sociedade, deixa as pessoas desamparadas em seu tempo livre. A pergunta descarada sobre o que o povo fará com o tempo livre de que hoje dispõe – como se este fosse uma esmola e não um direito humano – baseia-se nisso. Que efetivamente as pessoas só consigam fazer tão pouco do seu tempo livre se deve a que, de antemão, já lhes foi amputado o que poderia tornar prazeroso o tempo livre (1995, p. 76-77).

A partir do que foi considerado até então, torna-se mais evidente a ocorrência de (de)formação do leitor calçada em uma relação que, no mesmo mecanismo, o torna tanto mais obediente quanto mais útil é. Formando-se uma política de coerções também no ato de ler. Quando, consequentemente, o comportamento do homem e suas exigências orgânicas vão pouco a pouco sendo substituídas por aquilo que pode ser notado, que pode ser percebido e validado pelos demais, socializado. O que lhe faz parte de sua ação contemplativa e pensante torna-se cada vez menos perceptível e reconhecido pelos demais.

 

Referências Bibliográficas:

ADORNO, Th. Palavras e Sinais: modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis, Vozes, 1995.

ADORNO, T.W. & HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

AMORIM, Galeano. Os muitos retratos da leitura no Brasil. In: ______. (Org.). Retratos da Leitura no Brasil, São Paulo: Imprensa Oficial, 2008.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo, brasiliense, 1994.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história das violências nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: vozes, 1997.

FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. Tradução de Moacir Gadotti e Lilian Lopes Martin. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

FREITAS, Maria Teresa Assunção Freitas. Leitura, escrita de Literatura em tempos de internet. In: PAIVA, Aparecida (org.). Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces, o jogo do livro. Belo Horizonte: Autêntica/CEALE/FAE/UFMG, 2003.

ROCCO, Maria Thereza Fraga. Leitor, leitura, escola: uma trama plural. In.: PRADO, J. & CONDINI, P. (Org.) A Formação do leitor. Rio de Janeiro: Pontos de Vista, ARGUS, 1999.

[1]Quanto à problematização acerca do tempo livre, a proposta adorniana demanda uma ponderação do leitor em tempos atuais, com uma compreensão de seu tempo e espaço.

Partilhando de uma posição privilegiada – de quem compunha e escutava músicas ditas de qualidade e lia textos equiparados a essa – e consciente disso, Adorno não concorda com a utilização da expressão hobby para aquilo que se faz fora do tempo de trabalho, fora da profissão oficial. Para ele tudo deveria ser momento de formação, por aceitar o pensamento de Marx, que na sociedade burguesa o trabalho se transforma em coisificação, e o vocábulo hobby conduz ao paradoxo de que este estado, entendido como contrário à coisificação, acaba sendo coisificado da mesma maneira.

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