Publicado em 10/04/2012 como www.partes.com.br/educacao/artigos/flanar.asp
Daniela da Cruz Schneider*
Resumo: o presente artigo busca ressonâncias do pensamento benjaminiano, repensando a Educação. Rememora a figura do Flâneur de Walter Benjamin e de forma ensaística, procura possibilidades para uma educação que valorize a experiência, em detrimento de uma racionalidade totalitária, massiva, que vem sendo motivada pelo projeto neoliberal nas escolas.
Palavras-Chave: Walter Benjamin; Experiência; Educação Neoliberal; Banalização
Abstract: The present article echoes Benjamin’s thought, for rethinking the education. Recalls the figure of the Walter Benjamin’s Flâneur and in the essay form, seeks opportunities for an education that values the experience, rather than a totalitarian rationality massive, which has been motivates by the neoliberal project in the schools.
Key-words: Walter Benjamin; Experience; Neoliberal Education; Banalization.
Introdução: Banalização da Percepção
Este artigo propõe um passeio pela presença da política Neoliberal no Sistema de Educação brasileiro, contrastado com a leitura diletante do filósofo Walter Benjamim. Rememora a figura de Flâneur, um híbrido personagem, um solitário na multidão, que de uma forma despreocupada assiste a firmação do capitalismo, utilizando a contemplação como mecanismo de subversão. Esse texto articula estas ideias com o contexto atual de educação, em uma estrutura que passa pelos modos de perceber a experiência do cotidiano como rara, a educação como firmadora de metanarrativas e, por fim, um pequeno flanar sobre possibilidades de negação.
A burguesia encara sua prole enquanto herdeiros; os deserdados, porém, a encaram enquanto apoio, vingadores ou libertadores. Esta é uma diferença suficientemente drástica. Suas conseqüências pedagógicas são drásticas. (BENJAMIN, 2002, p. 122)
A citação a Benjamin se faz aqui como ponto de partida para reflexão acerca da educação atual. Walter Benjamin foi um inconformado à sua contemporaneidade. Pensar a educação através de sua filosofia é deparar-se com o esgotamento da experiência, com a face totalizante dos conhecimentos, não reconhecer em cada indivíduo uma parte do todo, que, abordando as relações sociais atuais, diz respeito ao sistema neoliberal.
Esse artigo propõe mais que uma crítica ao sistema capitalista e seus mecanismos de subterfúgio. Escolhe o passeio como metodologia, flanando sobre conceitos e metanarrativas.
A educação contemporânea passa por um alvorotado período de crise. Em tempos em que paradigmas múltiplos se sobrepõem e contrariam-se, em uma incessante experimentação, danças de ansiedade, as práticas educativas carecem de uma filosofia que lide com o devaneio e o peso de certa tradição.
Evocando o pensamento Benjaminiano, percebe-se que os ditos do filósofo não são tardios, em contrário extremo, mostram-se profundamente atuais, dando um matiz lucidamente controverso aos modelos educacionais da nossa sociedade.
Walter Benjamin não escreveu sobre educação em específico. Assim, este artigo propõe uma aproximação entre seus pensamentos e suas possíveis consonâncias na educação. Não busca descrever métodos e práticas alicerçadas nos escritos do filósofo, antes parte da arquitetura de suas ideias para pensar e repensar proposições para a educação, em tempos em que consumir é mais hábito do que necessidade.
Um de seus personagens, o Flâneur é evocado neste texto não como protagonista, mas como engrenagem que movimenta as ideias desenvolvidas no artigo. Ele é o fio condutor, que leva às reflexões a Educação na sociedade capitalista.
Um transeunte, de olhos atentos… percepções alteradas. Um tipo de indivíduo que dificilmente será encontrado pelas ruas. Não pela sua não existência, mas por simplesmente, pessoas como Flâneur, estarem dissolvidas em meio a uma subjetividade coletiva. Este personagem vem corroborar as ideias deste artigo, como um contraponto ao sistema capitalista.
A rua se torna moradia para flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são como adorno de parede tão bom quanto, ou melhor, que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninhas onde apoia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas (BENJAMIN, 1989, p. 35)
A descrição de Benjamin mistura-se ao modo de perceber seu personagem, protagonizando uma sensibilidade de incrível sutileza, atenta a detalhes… modos de olhar, perceber que não encontramos mais.
A mídia dissemina-se por diversas linguagens, banaliza o olhar com um severo volume de imagens. Seus conteúdos são descartáveis… servem para o consumo rápido, “fast-food”, ou melhor, “fast-view” para os olhos. Estas imagens têm uma simples tarefa: alimentar o desejo de consumir. Elas revelam-se tão encantadoras, que não vendem mais um simples produto, mas a idéia do produto, os valores, códigos morais, modos de ser materializados por determinados objetos, ou conjunto deles… não são inocentes, são mensagens rápidas, estimulantes ao consumo.
A cada passo, o andar ganha uma potência crescente; sempre menor se torna a sedução das lojas, dos bistrôs, das mulheres sorridentes e sempre mais irresistível o magnetismo da próxima esquina, uma massa de folhas distante, de um nome de rua. (BENJAMIN, 1989, p.186)
No trecho citado, Flâneur parece ironizar a presença das seduções, olha para tudo com relativo encanto, situando placas e anúncios no campo da Arte, da pura contemplação, como se, despretensiosamente, nada quisessem informar, atrativos do belo.
Empobrecimento da experiência
As ruas são a morada do coletivo. O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente agitado, que entre os muros dos prédios, vive, experimenta, reconhece, inventa tanto quanto os indivíduos ao abrigo de suas quatro paredes. (BENJAMIN, 1989, p.194)
O texto que trago para sobrepor minhas idéias foi escrito no contexto de firmação do sistema capitalista e de grande desenvolvimento industrial. Os contemporâneos deste momento viram suas paisagens se transformar, ganhar matizes de cinza, assim como os relacionamentos sociais perderam suas cores para a mecanização dos afetos, juntamente, com a mecanização do trabalho.
As relações de trabalho sofreram grandes transformações com o modelo fordista de produção e, tempo mais tarde, com o modelo taylorista. O homem foi privado de sua inventividade, abandonou os acasos da produção artesanal e passou a ter sua subjetividade construída no enfadonho trabalho especializado. O indivíduo passa a sujeito, tornando-se uma peça do sistema, trabalha para consumir.
O ritmo das cidades passa a ser outro… o tempo é o mesmo, mas passa mais depressa. E assim, progride o capitalismo, nas relações de consumo, seja pelo consumo de bens materiais, seja no consumo pelo trabalho, nos afetos, nos seres… a formação de uma grande multidão alienada, com olhos adormecidos.
Neste descaminho, a experiência vai se extinguindo. Os indivíduos absorvem impensadamente códigos, valores. A centralização dos conhecimentos e a construção de metanarrativas vão transformando em poeira a experimentação do cotidiano, deixando nas mãos de quem diga o que fazer.
Assistimos hoje a mídia penetrar nas visões de mundo. Antes de qualquer educação formal, a infância está entregue a uma formação pelas redes de comunicação e interação. As letras não fazem sentido agrupadas lado a lado, são apenas abstrações incoerentes. No entanto, o conjunto abstrato das sensações causadas por determinadas cores, linhas e texturas transformam-se em imagens e mensagens visuais, reconhecíveis sem muito esforço. Em oposição, tem livre transito na formação do imaginário infantil. À respeito disso, Solange Jobim & Souza (1994) diz que
(…)quanto à criança, é por meio da família, da TV, da Escola, engaja-se num processo complexo de formação da sua subjetividade, ao termo do qual deverá estar adaptada às funções produtivas e sociais que a esperam na sociedade. (JOBIM & SOUZA, 1994, p.65)
Ou seja, nos diversos âmbitos que a educação se dá e as diversas faces que assume, orienta suas práticas para o mercado, formando multidão de trabalhadores e consumidores de um sistema, que se alimenta de seus próprios insumos.
Coisificação: Educação e mercado de indivíduos
O fenômeno da banalização do espaço é fundamental do flâneur. (…) Por forças desse fenômeno, tudo que acontece potencialmente neste espaço é percebido simultaneamente. O espaço pisca ao flâneur: o que terá acontecido em mim? Fica ainda por esclarecer, decerto, como esse fenômeno se relaciona com a banalização. (BENJAMIN, 1989, p. 188)
A educação pós-moderna passa por um período de crise e confusão paradigmática. Ao contrário de priscas eras, não há um modelo pedagógico a ser seguido, que se vê é um pluralismo de pedagogias coexistindo, sobrepondo-se e contradizendo-se. O educador passa para um estado de autonomia relativa, oferecido pelo Estado.
O modelo de produção taylorista deixou profundas marcas no sistema de educação, que se agravaram com o advento das políticas neoliberais. Ao promover a divisão do trabalho, encontraram-se também, fragmentados os conheceres, o ensino tornou-se um mosaico de peças incomunicáveis.
O ensino atual não via uma formação completa do indivíduo, apenas instruí em determinadas áreas do conhecimento, deixando a formação crítica e estética em planos inferiores. Estas, responsáveis pelo posicionamento do sujeito perante o mundo que vive, fica a regalo da mídia, formadora de opiniões e educadora do olhar, enviando um sem número de mensagens visuais por dia.
Habitam este modo de ensinar neoliberal um comprometimento com o mercado e a banalização do sentir. Uma educação empenhada com a formação de trabalhadores, cada vez mais especializados, em que o conhecimento é líquido e fugaz, aos limites do efêmero. As tecnologias avançam tão acirradamente que não há mais tempo de se saber tudo, sabe-se um pouco de cada coisa, ou muita coisa de um pouco só.
A história passa a ter um lado. Embora inúmeros estudos multiculturais se fundem e até mesmo se façam presentes na prática de alguns educadores, a Escola é um local de exclusão, onde as metanarrativas reafirmam a história de vencedores, dos “burgueses” a quem Benjamin refere-se na citação que começa esta reflexão. O mito de uma história acabada, sem volta e sem solução. Alimenta-se a todo instante a condição frágil em que nos encontramos na sociedade, sem voz… em meio a uma multidão, de barulhos diversos, surda para a reinvenção dos fatos.
A razão instrumental, fruto do sistema capitalista, favorece a técnica em detrimento da conscientização social de fato. Um mito de progresso. Pois na verdade, a medida que avançam as tecnologias, torna-se o sujeito mais periférico de sua condição de cidadão. A massificação do sentir, a banalização dos afetos faz com que os indivíduos percam sua capacidade de resistir.
Educação e desvio: à guisa de conclusão
Não é o caso de vitimizar o humano, mas simplesmente de delatar a sua apatia frente aos acontecimentos. Para tanto, além de uma série de dispositivos, a educação pode ser evocada como possibilidade de subverter.
Um professor flâuner, como proposta. Não um vagabundo, por descaso com a sua responsabilidade social; apenas um apreciador, que passeia entre as histórias, as contempla. Faz parte da multidão, da massa que absorve… mas é o ponto colorido dentro do cinza do sistema neoliberal. Ele é o ponto de negação do sistema, não embrutece o olhar, fica atento os acontecimentos do detalhe. Reflete a oposição do todo em sua particularidade.
Estimula a percepção, ou simplesmente não deixa que ela se perca, atenta os olhos para as pequenas epifanias, propõe a desacomodação. Sentir o mundo, construindo filtros para os filtros. Permitir que o acaso faça parte do cotidiano. Mantendo a convicção de que a percepção precede o conceito, pois o se deixar afetar pelo mundo, antecede os conceitos e as qualidades que aferimos as situações.
Manter o encantamento do olhar contemplativo, o olhar que procurar ou que simplesmente encontra. Uma atenção que vai se deslocando do comum estabelecido, para um usualmente escondido, que só se mostra àqueles que transcendem a percepção pré-estabelecida.
Para tanto, se faz necessária uma educação do olhar, ou para ele, que contemple o ensino no sentido de estimular a percepção para o mundo, pois “(…) ela [educação estética] é uma tentativa de enfrentar a desumanização das relações sócio-afetivas e culturais na sociedade capitalista, e resgatar o reencontro do homem com sua própria liberdade.” (JOBIM & SOUZA, 1994, p.41)
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo, Brasiliense, 1987.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Charles Baudeleire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo, Brasiliense, 1989.
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades, 2002.
SOUZA, Solange Jobim e (org.). Subjetividade em questão: a infância como crítica da cultura. Rio de Janeiro, 7Letras, 2005.
SOUZA, Solange Jobim. Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas, SP, Papirus, 1994.
Daniela da Cruz Schneider – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFPel). Especialista em Educação (UFPel) e Graduada em Artes Visuais (UFPel). Bolsista CAPES. Colaboradora do Projeto de Pesquisa “as representações sociais da infância ente os professores da educação infantil da rede municipal de Pelotas” e integrante do Núcleo de Arte, Linguagem e Subjetividade (NALS – UFPel) – email: danic.schneider@gamil.com
SCHNEIDER, Daniela da Cruz. Flanar sobre educação: multidão de consumo, multidão de olhar. P@rtes. Xxx
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, pela Universidade Federal de Pelotas. Especialista em Educação e Graduada em Artes Visuais, ambas titulações pela Universidade Federal de Pelotas. Bolsista CAPES. Colaboradora do Projeto de Pesquisa “as representações sociais da infância ente os professores da educação infantil da rede municipal de Pelotas” e integrante do Núcleo de Arte, Linguagem e Subjetividade (NALS – UFPel)