Crônicas Gilda E. Kluppel Gilda E. Kluppel

Sou do tempo…

Sou do tempo…

Gilda E. Kluppel

Gilda E. Kluppel é professora de Matemática do ensino médio em Curitiba/PR, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná.

Sou do tempo em que Soft era nome de bala, a moeda nacional denominava-se Cruzado e não existia a cédula para duas unidades monetárias. Apareceu o primeiro bebê de proveta e não se falava em alimentos transgênicos. Do tempo em que se perdeu tanto tempo esperando a passagem do Cometa Halley, o asteroide que quase ninguém viu, da saída da ditadura militar do país e do movimento “Das Diretas Já”. Neste tempo, um ursinho de nome Misha, durante abertura da Olimpíada de Moscou, encantou o mundo inteiro.

No rádio Elis Regina cantava “Alô Alô Marciano” e Chico BuarqueVai Passar”, surgiram as bandas BLITZ, RPM, Ultraje a Rigor e Legião Urbana; Michael Jackson estourava nas paradas mundiais com Billie Jean e aconteceu o primeiro Rock in Rio. Existia a utilitária fita cassete, para gravar músicas, ainda necessitava quebrar um pedacinho na parte de cima da fita para não gravar uma música sobre a outra.  

No cinema passavam os filmes “De Volta para o Futuro”, “Flashdance”, “Crocodilo Dundee”; na televisão, assistíamos às novelas “Roque Santeiro”, “Vale Tudo” e às terças-feiras “TV Pirata”. Alugávamos filmes em fitas VHF, no final precisava rebobinar antes de devolver para a locadora. Paulo Coelho se tornava famoso com o “Diário de um Mago” e “O Alquimista”, livros de grande sucesso.

Frequentávamos festas e não baladas, estava na moda: blusas com enormes ombreiras, trocar as pulseiras do relógio, usar gravatas de crochê, trajar coletes que não precisavam ser à prova de bala. Guardávamos as garrafas de vidro dos refrigerantes para trocar na próxima compra e não pagar mais caro. Tênis se dispunha de poucas opções: Rainha, Le Coq Sportif e All-Star. Do “Amar é…” as tirinhas que as adolescentes da época colecionavam. Perua era chamada apenas a camionete, não existiam tantos modelos de automóvel, sequer possuíam cinto de segurança e alarme; apenas uma trava no volante para os mais precavidos era suficiente.

Entre os comerciais da época, a pipoca com guaraná, o Bom Bril e suas mil e uma utilidades, tudo cabia na geladeira Consul, além daqueles slogans que cansamos de ouvir: “não basta ser pai, tem que participar”, “eu sou você amanhã”, “o primeiro sutiã a gente nunca esquece” e a “Melissinha vinha com uma pochetezinha”. Usávamos fichas para telefonar nos orelhões, os cães não frequentavam butiques e qualquer objeto piscando no céu pensávamos ser um disco voador.

Os produtos não tinham prazo de validade para o consumo e se alguém falasse em bala perdida, procurava a guloseima…codinome era apenas para o Beija-flor de Cazuza. Naqueles tempos o professor sempre tinha razão, raramente era contestado e os trabalhos escolares eram feitos em folhas de papel almaço.

De uns tempos para cá, a gripe virou virose, derrame se chama de AVC, acidente vascular cerebral, japona é agasalho, a trema foi embora e pode-se ter ideias sem acento. As pesquisas escolares são realizadas no Google e não na biblioteca. Risco de vida virou risco de morte e aquele saboroso ditado “o que não mata engorda” não convence mais, agora o que engorda mata. Tomar banho de sol sem protetor solar, de no mínimo número vinte, tornou-se perigoso e ficar não significa deixar de ir. Os jovens não conseguem imaginar como vivíamos sem computadores, celulares, microondas, CDs, DVDs, GPS, e-mail, redes sociais, amigos virtuais e sem shoppings, o paraíso dos consumistas.

Sempre ouvimos os mais velhos falarem dos tempos da sua juventude como se fossem os melhores de todos. Entretanto, o tempo da nossa juventude, seja em qualquer época, sempre ficará marcado pelas primeiras sensações e tendemos a fantasiar os momentos em que estávamos descobrindo os encantos da vida. Logo, todas as lembranças têm um sabor especial. Parece até que éramos felizes e não sabíamos.

Tendemos a fantasiar também ao acreditar que tudo funcionava melhor naquele tempo, não existia a corrupção, a ganância, a falsidade, entre outras coisas deste gênero. Contudo não podemos fugir de certas verdades, embora não faça parte das nossas lembranças, infelizmente, isto também existiu…

 

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