A DISTRIBUIÇÃO TEMPORAL DAS ATIVIDADES PRODUTIVAS DO POVO ZORÓ
Francisco Tarcisio Lisboa[*]
Publicado originalmente 30/09/2011 em como www.partes.com.br/socioambiental/povozoro.asp
Resumo: O contato interétnico provocou profundas mudanças no modo de viver dos povos indígenas e de suas culturas. Na Amazônia esse processo continua a ocorrer em função da vasta dimensão territorial e consequentemente, do processo de povoamento e expansão das fronteiras, de forma que ainda hoje etnias continuam desconhecidas. No caso do povo Zoró, o contato acontece no ano de 1977, o que permitiu conhecer as práticas tradicionais de produção através dos relatos dos anciãos e também porque muitas delas estão vivas no cotidiano.
Palavras-chave: Índios Zoró, Amazônia, Contato interétnico, Atividades Produtivas.
Resumen: El encuentro o sea, el contacto interetnico, ha cambiado el modo de vivir de los pueblos indígenas y de sus culturas. En Amazonia sigue ocurriendo este proceso devido al largo territorio de las fronteras, de forma que encontramos todavía etinias desconocidas. Tenemos como ejemplo la etnia de los Zoro, que en el anõ de 1977, se pudo conocer sus prácticas tradicionales de producción por intermedio de los indios de edad y que siguen vivas hasta hoy.
Palabras-llave: Indios Zoro; Amazonia; Contacto interetnico; Actividades productivas.
Introdução
A ocupação da região amazônica pelo não-índio de forma mais incisiva é decorrente dos modelos de exploração econômica. As primeiras incursões na região se dão pelos espanhóis na busca das cidades míticas feitas em ouro, mas a instalação de povoados ocorre primeiro pela exploração do extrativismo vegetal chamado de drogas do sertão, segundo pela extração do látex ou ciclos da borracha, e por último pela colonização agrícola a partir de 1970. Nos dois primeiros modelos de exploração econômica os caminhos utilizados para penetração do interior são os grandes rios existentes, diferentemente, a colonização utiliza as estradas de terras firmes.
Para os povos indígenas a chegada do não-índio foi uma verdadeira catástrofe: escravidão, morte por doenças e guerras, e expropriação de suas terras. O povo Zoró só vai conhecer essa realidade com a colonização acontecida a partir da década de 70 do século passado. Esse fato possibilitou conhecer aspectos culturais desse povo que talvez tivessem sido perdidos se a época do contato fosse outra, como aconteceu com outros povos da região.
Este artigo pretende descreve de forma sucinta as atividades produtivas tradicionais do povo Zoró, habitantes da região Noroeste do estado do Mato Grosso, que manteve contato permanente com a sociedade nacional envolvente no ano de 1977. Embora o povo conserve parte da cultura tradicional, algumas práticas estão sendo substituídas pelo modelo ocidental. O texto não tem conotação saudosista, mas, o interesse em descrever práticas antigas e diferentes das utilizadas no presente.
COMO SE ORGANIZAVA A PRODUÇÃO ZORÓ
As atividades produtivas do povo Zoró antes do contato permanente com a sociedade nacional envolvente podem ser divididas em três modalidades: roçados, expedições coletivas de coleta de alimentos e atividades produtivas individuais. Os roçados são atividades mais relacionadas à família, uma responsabilidade do homem guerreiro que provê os seus descendentes. Tanto é realidade que muitas das histórias falam sobre a necessidade da disponibilidade do homem para o trabalho, e nas narrativas sobre o casamento, o sogro escolhia o genro com coragem de trabalhar. Este também era requisito básico para tornar-se um zawi-ai – ou cacique, como popularmente se conhece os chefes indígenas no Brasil. Dessa forma, o trabalho se caracterizava como um atributo importante de status. Embora os roçados pertencessem (ou pertençam) às famílias, o uso dos produtos sempre se dá de forma coletiva, porque culturalmente não há um controle rigoroso sobre os bens ou uma ideologia da individualidade.
As expedições coletivas faziam parte de atividades de caça ao porco, pesca com timbó, coleta e exploração do território. Conforme Carmen Junqueira em um artigo sobre os Cinta Larga – povo vizinho aos Zoró, de língua Tupi-Mondé, com mitos e forma de organização bastante parecidos – algumas dessas expedições “[…] se desdobram em longas perambulações” (JUNQUEIRA, 1984, p. 1285). Mais à frente, no mesmo artigo ela afirma que:
As expedições são organizadas para coletar mel, castanha, taquara para flecha, ou visam o consumo farto, em plena mata, do produto das caçadas ou pescarias. Durante as andanças o ambiente é detidamente observado: verifica-se o desenvolvimento dos frutos silvestres, das plantas medicinais, das reservas de matéria-prima, enfim, localizam-se as fontes dos recursos disponíveis que serão coletados no retorno à aldeia ou em outra oportunidade. (JUNQUEIRA, 1984, p. 1285)
As atividades produtivas individuais estão relacionadas geralmente à caça de pequenos animais e a pesca, à coleta nas proximidades da aldeia e a confecção de instrumentos e artefatos úteis no provimento das famílias. Porém, se em algumas dessas investidas o resultado gera uma quantidade acima do esperado para a família, o excedente é repartido com os demais da aldeia. De forma geral essa era a forma que o povo se organizava para produzir, distribuir e consumir os alimentos. A produção dos instrumentos de uso habitual no trabalho ou em outras atividades era uma atividade individual orientada pela divisão sexual do trabalho. É considerada nesse texto, como produtiva, porque em determinado momento poderia ser utilizada como forma de pagamento por um serviço realizado.
Em relação à divisão temporal das atividades produtivas, eram os fenômenos ambientais ou o regime climático que orientava os períodos adequados para sua realização. Para construção daquilo que pode ser chamado de calendário Zoró, sete fenômenos eram observados. A melhor forma de representá-lo é em forma circular (conforme figura 1 abaixo), uma vez que não é possível determinar o início ou o fim dos períodos de forma quantitativa como no calendário ocidental. É como falou um índio Zoró durante a pesquisa: “não existe calendário para nós, é tudo direto”.
FIGURA 1. Calendário Zoró.
O calendário representado na figura acima surgiu em decorrência de um exercício feito pelos professores indígenas e assessoria pedagógica das escolas das aldeias junto aos anciãos do povo para representar graficamente a organização do tempo dos Zoró. Esse calendário mostra como o povo organizava seu tempo para dar conta das diferentes atividades culturais e de produção.
Cada uma das sete partes do círculo representa um período importante. Didaticamente os períodos foram comparados aos meses do calendário gregoriano em que se começa a observar os fenômenos ambientais. O ano começa quando a árvore do murici floresce. Nesse período os índios se preparavam para roçar a mata (cortar os cipós e as árvores mais finas) e depois fazer a derrubada das árvores do local onde será plantada a roça. No segundo período, muitas estrelas grandes, está começando o frio, continua a roçada da mata e em alguns casos começa a derrubada propriamente dita, é o fim do período chuvoso nessa parte da Amazônia. O terceiro período muito frio e começando sol quente é início da estação seca e época de derrubada da mata. O quarto, muito sol quente e rio seco, bom para matar o peixe com timbó, é a época das queimadas e de andanças pelos rios para fazer a pesca com timbó. No quinto período está começando chuva, é época de plantio das roças. No sexto período, todos os dias há chuva, coleta do fruto conhecido como pama (Clarisia ilicifolia). O último, muitas chuvas. Fim do ano. Estrelas pequenas. É o período de maior intensidade das atividades culturais, da coleta de frutos como a castanha (Bertolethia excelsa), preparação para os rituais religiosos e colheita de milho. Se comparado ao calendário ocidental, corresponde ao período de novembro a abril.
Algumas atividades produtivas não precisavam de um período específico regido pelo sistema climático para que fossem executadas, embora o resultado variasse bastante, é o caso da caça e da pesca. Quanto à coleta, a floresta sempre disponibiliza certa quantidade de frutos e sementes durante o decorrer do ano, mas é na época da estiagem (ou verão amazônico) que é mais evidente.
Considerações
Os povos indígenas deixaram um grande legado para humanidade como bem lembra Berta Ribeiro (1987) em sua obra “O índio na cultura brasileira”. Reconhecer a sua importância na cultura brasileira e conhecer seus modos tradicionais de vida é colocá-los no lugar de destaque que merecem.
A divisão temporal das atividades produtivas do povo Zoró leva a imaginar a previsibilidade das ações e da vida, bem como a baixa expectativa de mudança social. Mostra também formas eficientes de viver e de se relacionar com o meio ambiente de forma considerada sustentável.
Referências
JUNQUEIRA, Carmen. Sociedade e cultura: os Cinta-larga e o exercício do poder do Estado. Ciência e Cultura, v. 36, n. 8, p. 1284-1287, ago. 1984.
RIBEIRO, Berta G. O índio na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1987.
[*] Pedagogo, Mestre em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente. Foi assessor pedagógico da Aldeia-Escola Zawã Karej Pangyjej do Povo Zoró de 2002 a 2010. Professor das Faculdades Integradas de Ariquemes – FIAR. e-mail: ftlisboa@hotmail.com