O desenvolvimento e as transformações do conceito de saúde
Andreisa Damo*
RESUMO
A elaboração quanto à compreensão do que seja o conceito de saúde é uma busca constante da ciência. Como para todo e qualquer conceito, o entendimento sobre o que seja saúde é um processo dialético de desenvolvimento, onde atuam forças que a tornam uma compreensão mutável e sócio-historicamente determinada. Nossa busca está em abordar dialeticamente o conceito de saúde, como superação à herança positivista, aos reducionismos e mecanicismo que entendem a constituição humana como um ser social cultural e histórico, condicionado pela totalidade do ambiente ao qual se relaciona.
Palavras-chave: saúde, abordagem dialética, totalidade, ambiente, ser humano.
RESUMEN
El desarrollo en la comprensión de lo que el concepto de salud es una búsqueda constante de la ciencia. Al igual que con cualquier concepto, la comprensión de lo que la salud es un proceso dialéctico de desarrollo, donde las fuerzas de trabajo que conforman la comprensión y el cambio socio-históricamente determinada. Nuestra misión es hacer frente a la concepción dialéctica de la salud, tales como la superación de la herencia positivista, y el reduccionismo mecanicista al entender que la constitución humana como una historia social y cultural, condicionada por la totalidad del medio ambiente a que se refiera.
Palabras clave: la salud, el enfoque dialéctico, la totalidad, el medio ambiente, el ser humano.
A elaboração quanto à compreensão do que seja o conceito de saúde é uma busca constante da ciência. Essa busca geralmente se apóia em um modelo explicativo de saúde, como forma de instrumentar ações de assistência, que direcionem as condutas dos profissionais da área, tendo em vista a uniformização da assistência em saúde sob a forma de atendimento igualitário.
Como para todo e qualquer conceito, o entendimento sobre o que seja saúde é um processo dialético de desenvolvimento, onde atuam forças que a tornam uma compreensão mutável e sócio-historicamente determinada. Desse modo, a saúde deve ser vista em suas configurações dinâmicas em processo de mudança e evolução, o que gera um grande paradoxo aos sistemas reducionistas-mecanicistas de saúde vigentes (CAPRA, 1988).
Hipócrates, médico e filósofo grego freqüentemente associado ao termo “pai da medicina” superou o condicionamento divino da relação saúde-doença, conferindo-lhe um caráter científico. Suas obras fornecem uma série de descrições clínicas pelas quais se pode diagnosticar doenças, além de escritos sobre anatomia.
Desde este importante pensador a saúde vem sendo submetida ao modelo cartesiano de ciência, baseado em uma visão linear da saúde, já que implica quase sempre nas relações de adaptação/desadaptação, ou equilíbrio/desequilíbrio dos seres humanos em relação a um meio externo que tende a perturbar sua harmonia. Esta visão linear da saúde-doença supõe duas formas de estado: a adaptação ou o equilíbrio como a condição de saúde, e ao contrário: a desadaptação ou o desequlíbrio como a condição de doença. Isso condiciona o ser humano a padrões que oscilam entre a normalidade e o estado patológico.
Aqui nos aproximamos do pensamento de Georges Canguilhem (2007), quando, em discordância ao modelo positivista que vem conduzindo a epistemologia na medicina, entendemos que esta oscilação entre o normal e o patológico não se expressa em termos quantitativos, mas sim qualitativamente, sempre em relação a um meio ambiente que influencia a vida e a convoca a lutar para manter-se em estado de saúde.
É preciso que façamos um esforço na direção de compreender a saúde como o processo da vida, pois é assim que ela se apresenta na consciência das pessoas. Sendo assim, na visão do doente, a doença é realmente uma forma diferente de vida. Citando Leriche em seus escritos traz Camguilhem: “A saúde, diz Leriche, é a vida no silêncio dos órgãos” [73, 6.16-1]. De forma inversa, a “doença é aquilo que perturba os homens no exercício normal de sua vida e em suas ocupações e, sobretudo, aquilo que os faz sofrer” [73, 6.22-3].
Encaminhando a compreensão da saúde como o próprio processo da vida Camguilhem nos lembra que “a medicina existe porque há homens que se sentem doentes, e não porque existem médicos que os informam de suas doenças”(p. 59). O autor nos conduz a entender como a doença, assim como a saúde, compreendidas pela consciência humana, representam a própria vida nas manifestações de risco à existência, sofrimento, ou de normalidade, ausência de preocupação, respectivamente. Interessante notar que, na representação do indivíduo, “o estado de saúde apresenta-se como a inconsciência de seu próprio corpo. Inversamente, tem-se a consciência do corpo pela sensação dos limites, das ameaças, dos obstáculos à saúde”(p. 57).
Ou seja, na vida em harmonia, o estado de saúde, o corpo passa desapercebido pela consciência humana. A saúde, caracterizada na inaparência do nosso organismo, leva-nos a uma visão de vida “normal”. Ao contrário, a presença de dor, calor, paralisia, o sofrimento do corpo que grita e pulsa pela doença, faz-nos, enquanto seres ontologicamente em busca da felicidade, notar a existência do corpo, dos órgãos, dos mecanismos e das funções fisiológicas, como uma “vida diferente”, pois o sofrimento nos faz crer que algo ameaça a vida, limita-a, desarmoniza-a.
A compreensão que temos da dialeticidade da relação saúde-doença não nos permite concordar com o modelo cartesiano, já que, por meio de uma visão linearizada, este tende a excluir relações de interdependência que estão muito mais próximas de uma compreensão de totalidade da saúde e do ser humano, do que de uma compreensão reducionista e fragmentada de ambos.
O modelo cartesiano de ciência sob o qual surgiu a abordagem científica da saúde subdividiu o ser humano em sistemas, e seu enfoque voltado ao diagnóstico e tratamento das doenças (o estado de desequilíbrio). A visão de totalidade a qual estamos trazendo não pretende reduzir-se ao aspecto da remediação, mas busca as causas que influenciam os processos de saúde-doença. É possível supor que esta abordagem em saúde aproxima-se de um modelo preventivo[1].
Temos uma tendência, que parte do nosso fundamento teórico-metodológico, a enxergar a saúde numa perspectiva dialética, quando os diversos elementos que constituem o sujeito participam, por meio da existência de contradições, no estabelecimento da saúde ou da ausência desta, a doença. Partindo de uma concepção de ser humano em sua totalidade, não podemos considerar somente o aspecto orgânico, a biologia do indivíduo, mas também os demais fatores que, em maior ou menor grau influenciam os processos de saúde e doença em cada sujeito.
A autora Bader Burihan Sawaia, em seu texto “O sentido ético-político da saúde na era do triunfo da tecnobiologia e do relativismo” (2003, p. 83 in GOLDENBERG; MARSIGLIA e GOMES), de certa forma vem afirmar o que foi dito, quando coloca que:
É preciso revolucionar a ontologia da saúde e da doença, concebendo-a como um processo dialético em que o subjetivo e o objetivo, o ético e o biológico nem estão cindidos, nem se confundem, mas se dilaceram, acrescentam-se, identificam-se e superam-se ao mesmo tempo.
Ao colocar nesta sua escrita o que a autora vem chamar de o sentido ético-político da saúde, a mesma traz uma crítica ao sentido dado à saúde num contexto neoliberal, que, ao contrário de utilizar as biotecnologias para promover a felicidade e a emancipação, faz uso desta para a disciplinarização desumanizadora.
Um ponto importante discutido pela autora ainda é o questionamento aos modelos tradicionais de medicina, os quais tendem a focar o aspecto orgânico na constituição do sujeito, defendendo o confinamento da saúde ao funcionamento biológico. Nesse sentido é sugerida uma abordagem que considere a saúde em sua complexidade, com ênfase na importância das forças sociais e culturais, sem, contudo negar o elemento orgânico desta. Isso significa dizer que saúde e doença não são determinadas apenas pelo aspecto biológico, à função ou disfunção orgânica, mas envolvem também, em importância compatível, os condicionantes sociais e culturais.
A atenção individualista, a centralização do cuidado aos aspectos específicos das doenças e suas manifestações biológicas e psíquicas, pode relegar ao segundo plano, ou mesmo esquecer a saúde no seu sentido amplo, que traz consigo todas as causas que influenciam no processo de “estar saudável”, bem como implica na reflexão que leva ao conhecimento das razões do adoecimento. Nesse sentido, os autores Granda e Breilh (1989, p. 7) nos atentam para um dos maiores obstáculos quando se trata de investigação em saúde: “a maior dificuldade reside em passar de uma investigação que prioriza o objeto de estudo individual a outra onde o objeto é coletivo e, consequentemente, o modelo é social”.
Focar no aspecto biológico, clínico da doença é necessário para que possamos reconhecer os sintomas e os sinais indicativos que nos levam ao diagnóstico de determinadas doenças. Porém, é preciso ter em mente que, diante da totalidade do ser humano, o qual também reflete a totalidade de seu mundo, que é uma totalidade complexa em seu sentido dialético, não podemos permanecer restritos à causa orgânica, mas precisamos compreender o movimento de expansão desta causa restrita para outras causas que fogem ao “olhar” biomédico, e que encontra nos condicionantes sócio-culturais influência importante para a dinâmica saúde-doença.
Falamos nos aspectos naturais, sociais, culturais, mesmo sem comentar sobre a totalidade relativamente particular que cada um deles constitui, o conjunto de relações envolvidas, que são próprias destas esferas. É possível dizer que estes aspectos constituem o ambiente próprio da experiência humana no mundo. Essa nossa compreensão de ambiente, enquanto um complexo conjunto de relações interdependentes, porém relativamente autônomas abre espaço a uma abordagem preventivo-educativa da influência ambiental nas relações de saúde-doença.
Partindo do princípio de que a saúde dos seres humanos depende diretamente da qualidade, ou da salutabilidade de seu meio, é possível operacionalizar ações em saúde preventiva no sentido de tornar as condições materiais do ambiente – e não somente o ambiente ocupacional, do trabalho, mas o ambiente onde vivem cotidianamente as pessoas – adequadas para que seus habitantes possam ter saúde.
Existem inúmeras condições que contribuem para a deterioração da salutabilidade dos ambientes onde vivemos, ou de ambientes particulares, como aqueles relacionados a um determinado trabalho, por exemplo. Podemos exemplificar o exposto com as diversas formas de poluição: do ar, da água, do solo, poluição sonora e visual, que ao contaminarem os ambientes constituem causas potenciais para o comprometimento de nossa saúde.
Em relação ao ambiente particular do trabalho, temos também fatores que comprometem a saúde daqueles que desenvolvem suas atividades laborais. Como exemplos podemos citar os riscos de ocorrência de acidentes de trabalho, as diversas formas de contaminação, e insalubridade associada às próprias relações interpessoais estabelecidas neste ambiente particular.
Também nos ambientes da vida cotidiana, que não apenas os relacionados ao trabalho, encontramos elementos prejudiciais ao desenvolvimento humano e à saúde dos mesmos. Além das diversas formas de poluição, e fatores associados ao condicionamento social e cultural, como falta de condições adequadas de existência, a exemplo de saneamento básico, água encanada, moradia, alimentação, temos uma preocupação mínima ou mesmo inexistente com seres humanos, esquecendo que sem estes não há sociedade e não há humanidade.
Finalmente, nessa prática necessária de valoração do humano, é preciso enfatizar que as ações no âmbito da saúde ambiental não devem estar voltadas simplesmente à assistência da população, com programas muitas vezes questionáveis de assistencialismo que nada contribuem para a resolução dos conflitos e suprimento das necessidades reais da população em determinados contextos ambientais. Nesse sentido é que a atenção preventiva e educativa se faz necessária, como forma de levar a uma melhoria eficaz nas condições de saúde das populações beneficiadas.
[1] Modelo de abordagem em saúde desenvolvido por Leavell e Clark (1976) por meio do que se convencionou chamar de história natural da doença. Esse modelo admite que a influência do meio ambiente enquanto causa externa pode contribuir para o desenvolvimento de doenças, do qual se supõe que o mesmo afeta, desta forma, o processo de saúde dos sujeitos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico.[tradução de Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas] 6 ed. Ver. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
CAPRA, Fritjof. O Ponto de mutação. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1988.
CLARK, E. G.; LEAVELL, H. R. Medicina Preventiva. São Paulo: McGraw-Hill, 1976.
GRANDA, E.; BREILH, J. Saúde na sociedade. 2.ed. São Paulo: Cortez, 1989.
LERICHE, R. Introduction générale; De la santé à la maladie; La douleur dans les maladies. Où va la médecine? In: Encyclopédie française, t. VI, 1936. In CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. [tradução de Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas] 6 ed. Ver. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
* Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e Mestranda da Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande (PPGEA-FURG). E-mail: andreisadamo@yahoo.com.br.