Anna Carolina Cerato Confortin, Liane Camatti, Rossana Cassanta Rossi, Luciana Azambuja Alcântara
publicado em 02/08/2011 como www.partes.com.br/educacao/producaogaucha.asp
Anna Carolina Cerato Confortin*i
Liane Camatti*ii
Rossana Cassanta Rossi*iii
Luciana Azambuja Alcântara*iv
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar como aspectos culturais, construídos na contingencia histórica, são legitimados no espaço de uma instituição de ensino. Para isso, parte-se de eventos festivos incorporados às atividades oficiais do Instituto Federal Farroupilha – Campus Alegrete. A partir disso, identidades gaúchas são constituídas através da captura de artefatos culturais ligados à tradição gaúcha.
Palavras-chave: tradicionalismo gaúcho, cultura, identidade, escola.
Abstract
The aim of this paper is to analyze how the cultural aspects, built in historical contingency, are legitimized in an educational institute. For this purpose, we take into account festive events which are incorporated into the official activities of the Instituto Federal Farroupilha – Campus Alegrete. From this, Gaucho identities are constructed through the capture of cultural artifacts related to the gaucho tradition.
Keywords: tradition from the south of Brazil, culture, identity, school.
Este artigo objetiva apontar possíveis facetas das manifestações culturais inerentes ao tradicionalismo gaúcho em um espaço de educação escolarizada e suas interfaces com a constituição da identidade gaúcha. Para realizar esta pesquisa, tomou-se como objeto de análise algumas atividades desenvolvidas no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha – Campus Alegrete, as quais são previstas no calendário oficial do Instituto. A opção por analisar a circulação de artefatos culturais e a instituição de identidades no espaço escolar se deu por ser esse um lócus de formação das identidades gaúchas, ao passo em que, através do currículo, do contato com outros sujeitos, de práticas como comemorações e festas, as formas de ser gaúcho são aprendidas (FREITAS, 2007).
O interesse está em compreender de que forma ocorre, através de eventos festivos, a captura curricular de artefatos ligados ao tradicionalismo gaúcho. Para melhor situar a análise que se busca aqui fazer, este artigo foi construído a partir de dois eixos. Inicialmente, serão pontuados alguns eventos festivos, tomados aqui como materialidade e objeto de análise. Após, serão feitas algumas possíveis leituras dos efeitos que essas práticas têm na constituição identitária do sujeito gaúcho.
Antes de pontuar os objetos de análise em si, faz-se oportuna uma ressalva. Trata-se de destacar que não se põe como objetivo unicamente descrever ou apontar manifestações culturais e produtos relacionados ao tradicionalismo gaúcho. Com a transformação semântica ocorrida na Modernidade, a palavra cultura passou a, dentro de jogos de linguagem, determinar o que de melhor havia nas produções da humanidade e, consequentemente, se tornar critério para movimentos de segregação e classificação (CAMATTI, 2011). Dessa forma, assume-se a perspectiva de não pontuar o caráter produtivo da cultura. Ao invés disso, considerando a tomada de sua função como elemento de ordenamento, o objetivo central deste trabalho é o de compreender como os artefatos da cultura gaúcha vêm sendo reforçados e legitimados através do espaço escolar e, com isso, identidades gaúchas vêm sendo constituídas.
Este artigo, assim, vai tratar da circulação dos artefatos culturais ligados à tradição gaúcha, justamente no que tange às comemorações e festividades contempladas nas práticas pedagógicas oficiais do Instituto Federal Farroupilha – Campus Alegrete. Sistematicamente, abordaremos o “Encontrão”, as atividades da Semana de Aniversário da Instituição e as comemorações da Semana Farroupilha.
Artefatos culturais da tradição gaúcha: da tematização ao festejo cultural
O primeiro evento temático abordado nesta seção é o Encontro Tradicionalista Gaúcho, conhecido como “Encontrão”. Trata-se de um evento itinerante que ocorre anualmente e se articula a partir de uma proposta de integração cultural e tradicionalista entre Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia da região sul do Brasil. A primeira edição do Encontrão ocorreu no ano de 1986, na antiga Escola Agrotécnica de Alegrete, reunindo outras instituições agrotécnicas convidadas. No ano de 2010, já na 19ª edição, o evento retornou ao Campus Alegrete e ocorreu durante três dias, os quais foram contabilizados no calendário oficial do Campus. Os alunos participaram do evento desde a organização até as competições nas provas temáticas.
O Encontrão contou com uma série de atividades, como mateadas (rodas de chimarrão), mostra histórico-cultural e provas de integração: circuito rural, corrida de carroça, tômbola musical (atividade que se assemelha à dança das cadeiras, porém é realizada com os participantes montados a cavalo), gineteada em touro mecânico, laço em vaca parada e tiro de laço a cavalo. Além disso, para participação nas provas, os concorrentes deviam permanecer com roupas típicas gaúchas. Em relação à culinária, manteve-se comidas campeiras: churrasco, carreteiro de charque, arroz com linguiça, puchero (pirão), vaca atolada (ensopado de costela com mandioca), etc. Os dias do Encontrão iniciavam com alvorada festiva, mateadas e finalizavam com bailes gaúchos e concursos de invernadas (grupos de danças típicas).
O segundo evento objeto de análise deste trabalho são as comemorações da semana de Aniversário do IFFarroupilha – Campus Alegrete. Anualmente, a Instituição promove uma semana de festividades durante o mês de abril em homenagem ao seu aniversário. Uma das atividades promovidas é a gincana, na qual uma série de provas são relacionadas à práticas tradicionalistas gaúchas: laço na vaca parada (só podem competir participantes pilchados), casal de laçadores, truco gaudério e competição de melhor trova – as quais sempre possuem motivos tradicionalistas.
Por fim, o terceiro e principal evento de celebração das questões ligadas ao tradicionalismo gaúcho ocorre durante a Semana Farroupilha, na qual a participação dos alunos é intensa. É oportuno mencionar que o IFFarroupilha conta com um Departamento de Tradições Gaúcha – DTG Herança Farrapa – com sede própria dentro da estrutura da Instituição. Nesse espaço, alunos se reúnem em horário de lazer e, nesses momentos, uma série de artefatos passam a compor o cotidiano dos estudantes, desde atividades – fogo de chão, contos de causos, jogo de truco, tiro de laço em vaca parada – até a culinária – comida campeira, chimarrão de cambona, café de chaleira, churrasco e café com bolo frito.
As atividades do DTG permanecem ativas durante o ano todo, mas se intensificam na época da Semana Farroupilha, na qual há uma programação específica, com torneios de truco, torneios de laço em vaca parada, concursos de culinária, além de atividades relacionadas às festividades da cidade durante a Semana Farroupilha. Nessa, acontece o deslocamento da chama crioula por todo o Estado do Rio Grande do Sul, a qual é distribuída para as regiões tradicionalistas. Nesse processo, o DTG do IFFarroupilha recebe uma centelha da chama crioula, a qual é levada através de uma cavalgada de alunos até a sede do DTG no Campus Alegrete e lá permanece acesa durante todos os dias de realização das atividades da Semana Farroupilha. Nota-se que há uma notória disputa por parte dos alunos para definir quem será o contemplado para carregar a chama.
Também é relevante destacar que durante esse período, cresce significativamente o número de alunos que permanecem pilchados durante todo o tempo de atividades das aulas. No dia 20 de setembro, data em que se comemora a Revolução Farroupilha, é feriado no Rio Grande do Sul. Neste dia, ocorre um grande desfile temático na cidade de Alegrete e, mesmo sendo feriado, essa atividade é contabilizada como dia letivo no calendário oficial do IFFarroupilha – Campus Alegrete.
A partir desses três eventos festivos abordados, fica evidente que a estrutura organizacional e pedagógica do IFFarroupilha – Campus Alegrete significa com acentuada relevância as manifestações culturais ligadas ao tradicionalismo gaúcho. Com isso, é possível traçar algumas análises acerca da recursividade da cultura no contexto escolar com vistas à constituição de identidades.
A fixação da identidade gaúcha no contexto escolar
Na liquidez da Contemporaneidade, há um movimento paradoxo de liquefação das relações, multiplicação da constituição de identidades e, paralelamente, uma recursiva busca por formas de assegurar condições de manifestação, manutenção e fortalecimento de identidades. Assim, sendo a escola uma das mais poderosas máquinas de subjetivação e de constituição de identidades já projetada pela Modernidade, parece estratégico fazer com que artefatos culturais ligados ao tradicionalismo gaúcho circulem dentro das práticas pedagógicas oficiais do espaço escolar. Com isso, é possível afirmar que as questões culturais produzem através do espaço escolar as identidades dos sujeitos pedagogizados no contexto em questão. A constituição das identidades gaúchas, nesse sentido, é atravessada pelos aspectos culturais, especialmente a partir da concepção de que a cultura pode ser tomada como “constitutiva da vida social, ao invés de uma variável dependente” (HALL, 1997, p. 27).
Desse modo, as contribuições da virada linguística são pertinentes, ao passo em que essa assume o caráter não representacional da linguagem e a intrínseca relação entre eventos discursivos e não-discursivos com a constituição, invenção e cerceamento da “realidade” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 10). Da mesma forma, a constituição das identidades é sempre imanente a regimes discursivos e a instituição de significados. Portanto, parece relevante buscar compreender, no caso do IFFarroupilha – Campus Alegrete, de que forma se busca manter a essência da cultura gaúcha através de questões que circulam formalmente na Instituição.
Se há, nesse sentido, a possibilidade de localizar a cultura nesse conflituoso e assimétrico campo de instituição de significados, há também formas e recursos buscados pelos sujeitos na Contemporaneidade, a fim de conseguir afirmar e galgar um espaço um pouco melhor para seus significados. Trazer isso para a escola é produtivo na medida em que ela confere legitimidade a tais manifestações, não apenas aceitando, mas utilizando, incorporando às práticas pedagógicas cotidianas as manifestações culturais relacionadas ao tradicionalismo.
Concluindo esta análise, tem-se que a força adquirida pelo movimento tradicionalista gaúcho é também atribuída à possibilidade de enaltecimento e de fixação da identidade gaúcha. Em outros termos, e retomando os processos de identificação com o outro, é necessário traçar algumas características que façam parte do gaúcho, engessando suas possibilidades de existência e buscando uma pretensa identidade gaúcha pura. Para isso, características histórica e socialmente produzidas são naturalizadas, compondo um padrão identitário, gerando um rol de práticas e artefatos aceitáveis no âmbito do tradicionalismo e que precisam ser não apenas conhecidos, mas preservados e, sobretudo, praticados. Dessa forma, capturar no cotidiano da escola práticas como as descritas significa possibilitar que elas circulem com legitimidade e que instituam formas específicas de delineamento do sujeito gaúcho.
REFERÊNCIAS
CAMATTI, L. A emergência do sujeito pedagógico surdo no espaço de convergência entre comunidade e escola de surdos. 2011. 91f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2011.
FREITAS, L. F. R. A sala de aula como um espaço que constitui a identidade gaúcha. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 32, n. 2, 2007, p. 49-52.
HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, 1997, p.15-46.
VEIGA-NETO, A.; LOPES, M. C. Identidade, cultura e semelhanças de família: as contribuições da virada lingüística. In: BIZARRO, R. (Org.). Eu e o outro: estudos multidisciplinares sobre identidade, diversidade e práticas culturais. Porto: Areal, 2007.
i Anna Carolina Cerato Confortin, graduada em Zootecnia e Mestre em Zootecnia- produção animal pela Universidade Federal de Santa Maria. Docente do Instituto Federal Farroupilha – Campus Alegrete. E-mail: annaconfortin@al.iffarroupilha.edu.br
ii Liane Camatti, graduada em Educação Especial e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria. Docente do Instituto Federal Farroupilha – Campus Alegrete. E-mail: lianecamatti@al.iffarroupilha.edu.br
iii Rossana Cassanta Rossi, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Licenciada em Letras, habilitação Português/Inglês e respectivas Literaturas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Docente do Instituto Federal Farroupilha – Campus Alegrete. E-mail sanarossi2@al.iffarroupilha.edu.br
iv Luciana Azambuja Alcântara, docente do Instituto Federal Farroupilha – Campus Alegrete. Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal de Santa Maria (2010). Bacharel e Licenciada em Desenho e Plástica (2001 e 2008). Especialista em Design de Estamparia e em Arte e Visualidade (2004 e 2006), pela mesma instituição. E-mail: luciana.alc@ibest.com.br