Andreisa Damo*
publicado em 05/07/2011 como www.partes.com.br/reflexao/saudeetotalidade.asp
RESUMO
Este artigo tem por objetivo relacionar a categoria filosófica da totalidade, uma das categorias do fundamento teórico-metodológico do Materialismo Dialético ao contexto da saúde. Esta relação admite que os seres humanos constituem sua própria totalidade, da qual se sobressaem os aspectos natural, social e cultural. O singular, que é o ser humano em sua individualidade ganha sentido em razão das relações que este estabelece com a totalidade do meio ambiente que o condiciona.
Palavras-chave: saúde, totalidade, ser humano, materialismo dialético.
RESUMEN
En este artículo se pretende relacionar la categoría filosófica de la totalidad, una de las categorías de base teórica y metodológica del materialismo dialéctico en el contexto de la salud. Esta relación reconoce que los seres humanos son su propia totalidad, lo que pone de manifiesto los aspectos naturales, sociales y culturales. La única, que es el ser humano como un individuo tiene sentido debido a las relaciones que establece con todo el entorno que condiciones.
Palabras clave: la salud, la totalidad, el ser humano, el materialismo dialéctico.
Ao falarmos na categoria filosófica da totalidade, estamos conduzindo este artigo sob o fundamento teórico-metodológico do Materialismo Dialético, proposto por Karl Marx como método de análise da realidade. A totalidade, juntamente com a contradição, é uma categoria do Materialismo Dialético que representa o conjunto de relações e ligações estabelecidas no âmbito do fenômeno real; ou seja, o concreto real em suas múltiplas determinações. O enfoque deste condicionará a categoria da totalidade ao contexto da saúde, no que tange à totalidade da constituição natural, social e cultural dos seres humanos.
Karel Kosic, em sua obra “A Dialética do concreto”, vem nos lembrar que a totalidade é um todo real, não um todo artificial, abstrato, no qual se somam as partes, mas as interconexões e inter-relações entre as partes constituintes do todo:
Totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de atos, conjuntos de fatos) pode ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não significa, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimentos de realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético – isto é, se são átomos imutáveis, indivisíveis e indemonstráveis, de cuja reunião a realidade sai reconstituída – se são entendidos como partes estruturais do todo (1976, p 35).
Nesse sentido Marx (1999, p. 39) nos traz que “o concreto é o concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, isto é, unidade do diverso”. É assim que os seres humanos, bem como os processos e fenômenos da realidade tornam-se concretos, reais, quando vistos em sua totalidade. Em outras palavras, cada ser humano, processo ou fenômeno só existe pela interação das inúmeras ligações e relações que os condicionam. É importante entendermos que cada ser humano, na totalidade que o torna singular, relaciona-se com a totalidade de seu ambiente, a qual também apresenta um conjunto de ligações e relações que lhe são próprias.
É desta forma que, na relação que estamos propondo fazer entre a saúde e a categoria da totalidade, é preciso entender o sujeito no interior do seu próprio processo de saúde, ou de adoecimento. E não como elemento passivo, não relacionado, alheio ao processo de existência da saúde ou da doença. Tomando a sociedade enquanto totalidade multideterminada, podemos também localizar no seio desta a totalidade de cada sujeito social: o ser humano em sua totalidade. Este sujeito reúne em si um conjunto de “movimentos dialéticos do todo”, constituinte deste ser e responsáveis pelo seu processo de “equilíbrio dinâmico” e de transformação.
A totalidade que constitui os seres humanos é dissonante e contraditória, o que lhe confere uma determinada organização e a possibilidade de transformação. Sendo assim, não é possível simplificar a relação saúde-doença enquanto “estado de saúde”, ou “estado de doença”. Considerando as multideterminações que tornam o ser humano concreto, é possível compreende-lo em um processo contínuo de movimento dialético, onde um “estado” não anula o outro, mas ambos coexistem constantemente, em luta, expressando-se no movimento dialético desta relação saúde-doença. É o conflito constante das multideterminações que constituem a totalidade de cada ser humano.
Isso nos leva ao entendimento de que ao buscarmos compreender o sujeito em sua totalidade, e partindo do pressuposto de que toda totalidade possui partes constituintes, que não se somam, mas se inter-relacionam, iremos reconhecer três aspectos essenciais da constituição humana: os aspectos natural, social e cultural, os quais estamos considerando neste estudo para representar a totalidade deste sujeito, lembrando que cada um destes aspectos considerados genericamente reúne em si uma série de elementos que lhe são próprios. É nesse sentido que, no âmbito da saúde, partindo desta compreensão da totalidade, ou das multideterminações que constituem o ser humano poderemos então compreender os processos que o levam a estar saudável ou não saudável.
Os estados de equilíbrio[1], os quais de forma geral chamamos saúde refletem-se na expressão orgânica, a série de sintomas e sinais que podem ser diagnosticados como estado de saúde ou doença. É assim que a medicina convencional tem enfocado o sujeito: nos aspectos orgânicos que evidenciam estados de saúde ou doença. Esta abordagem no campo da saúde é necessária, pois sem ela estamos rompendo logo de início a totalidade do ser humano, esquecendo o aspecto natural de sua constituição. Porém a mesma não basta para que seja eficaz a ação no campo da saúde, pois é necessário que também os elementos sociais e culturais constitutivos dos sujeitos, ou as demais partes do todo, sejam objeto de análise para que se reconheçam os processos de saúde/doença.
Em sua obra “A Dialética Materialista: categorias e leis da Dialética“ Alexandre Cheptulin coloca que:
o conhecimento das propriedades e das conexões universais da realidade, que se exprimem nas categorias filosóficas, é absolutamente indispensável ao homem para sua orientação, para que possa determinar as vias que lhe permitirão resolver as tarefas práticas que surgem no processo de desenvolvimento da sociedade (1982, p. 1).
Também no âmbito da saúde, quando consideramos a categoria da totalidade, devemos ter em mente que esta vem nos auxiliar em nosso empenho em compreender os aspectos da constituição dos sujeitos que fazem com se favoreçam processos de promoção e manutenção da saúde, ou, em seu contrário, processos de adoecimento.
No âmbito da saúde, a tendência a considerar o ser humano em seu aspecto natural, bem como de isolar a parte, o fragmento, em contraposição a uma análise da totalidade compromete a eficácia das ações em saúde, sejam elas preventivas, ou resolutivas. Quanto mais compreendermos o ser humano nos aspectos constituintes de sua totalidade, tanto mais poderemos intervir na transformação de suas condições de saúde.
A totalidade corresponde a uma das categorias mais importantes do materialismo dialético. No âmbito da saúde esta vem representar a própria forma (e conteúdo) da constituição dos sujeitos enquanto seres naturais, em sua estrutura orgânica, sociais, no sentidos das relações que vivenciam em sociedade, e culturais, quando falamos nas convenções humanas que condicionam modos de viver em sociedade e contribuem para as diferentes formas de subjetividades.
Não podemos, pois, considerar os seres humanos isolando-os em partes, as quais julgamos constituí-lo. É preciso que consideremos a nós mesmos, enquanto seres complexos, de relações, produtos e, produtores de cultura. Unidade de elementos que nos constituem, sendo eles naturais, sociais e culturais, ou seja, totalidade estruturada por meio de relações e ligações entre as partes, as quais não devem ser consideradas isoladamente.
É importante enfatizar que a saúde convencional centraliza o aspecto natural, a disfunção orgânica, mas é preciso reconhecer que os aspectos social e cultural são fatores que têm se mostrado indissociáveis no processo de saúde dos sujeitos, já que se expressam, ou manifestam-se na própria disfunção orgânica. Portanto, não podemos, a título de crítica aos modelos “biologizantes” de abordagem em saúde, esquecer que esta abordagem é a que permite comumente o diagnóstico, tratamento e cura de doenças, embora muitas vezes possua a desvantagem de não considerar as causas. É assim que, de forma a tratar a raiz do problema, precisamos investir no aspecto preventivo-educativo e na redução dos condicionantes sociais que influenciam negativamente as condições gerais de saúde dos sujeitos.
Todos os elementos que nos constituem enquanto seres humanos relacionam-se entre si, interagem, mesmo que indiretamente e em diferentes níveis de interdependência. Pensar a nós mesmos dissociando-nos em partes, separando-as, para analisá-las isoladamente como pretende o método científico convencional, é cair no equívoco de afastar a teoria da necessária prática social, já que tal abordagem de ser humano torna difícil a sua aplicação, quando no plano teórico foram negligenciadas as relações e interdependências que nos constituem.
É nesse sentido que a saúde, enquanto recurso social cuja função é atender às necessidades humanas, deverá se afastar de uma compreensão fragmentada de ser humano, mas sim enxergando a este na totalidade que o constitui. Só assim a sua ação será eficaz, quando há o respeito à constituição complexa e diversa do ser humano em seus aspectos natural, social e cultural. A uniformização do atendimento em saúde, que necessariamente implica em uma uniformização na concepção de ser humano dificulta a realização da função social da saúde.
É assim que a saúde, quando deseja contribuir com o desenvolvimento dos sujeitos deve considerá-lo em seu contexto social e cultural, e não apenas focar o aspecto das disfunções orgânicas (o aspecto natural da constituição do sujeito). Por exemplo, compreender que na totalidade da constituição e nas relações estabelecidas pelo sujeito social e culturalmente condicionado, existem inúmeros fatores que podem influenciar tanto positivamente quanto negativamente o seu processo individual de saúde.
[1] Esse equilíbrio não deve ser entendido em uma visão funcionalista ou organicista do ser humano, que é um ser social. Desconsiderar a especificidade histórica, social e cultural dos sujeitos é supor que o equilíbrio seja restaurar ou manter o bom funcionamento de um sistema, sem levar em conta o que seja realmente necessidade, o que seja saúde para os seres humanos condicionados socialmente, culturalmente e historicamente, assumindo, assim, uma postura conservadora de atender ao imediato (o assistencialismo em saúde) sem buscar superar as causas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHEPTULIN, Alexandre. A Dialética Materialista; Categorias e Leis da Dialética. [tradução de Leda Rita Cintra Ferraz], São Paulo: EDITORA ALFA-OMEGA, 1982.
GOLDENBERG, P.; MARSIGLIA, R. M. G.; GOMES, M. H. A. (Org.) O Clássico e o Novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.
KAPRÍVINE, V. Que é o Materialismo Dialético: ABC dos conhecimentos sociais e políticos. [tradução de G. Mélnikov], EDIÇÕES PROGRESSO MOSCOVO, 1986.
KOSIC, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
MARX, Karl. Para a crítica da economia política. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.
* Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e Mestranda da Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande (PPGEA-FURG). E-mail: andreisadamo@yahoo.com.br.