Contos Cultura Johnny Notariano

Um lapso de tempo

Johnny Notariano

publicado em 02/06/2011

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http://www.wga.hu/music1/schubert/schubert_liszt_ave_maria.mp3

 

Johnny Leonardelli Notariano – notarian@usp.br

Tarde de Inverno, 1975. A chuva fria começava a cair muito tímida como se não fosse chover mais. Na pequena varanda de minha casa no interior de São Paulo eu observava calmo e tranquilamente a chuva. Perscrutava aqueles pingos com os olhos de artista e imaginava-os tocando o chão em câmara lenta. Um espetáculo maravilhoso e memorável. As formas que tomavam os pingos eram cada uma diferente da outra, a estrutura assimétrica lembravam fractais e o resultado, uma obra de arte.

Eu estava bem acomodado sentado confortavelmente em uma daquelas gostosas cadeiras, vez ou outra minha mulher aparecia, tocava meus cabelos, trazia alguma coisa, biscoitos, café ou chá.

O som da chuva incorporava os acordes melodiosos vindos de algum rádio nas proximidades, então eu sabia que eram dezoito horas, a música Ave Maria de Franz Schubert identificava o prefixo desse horário na emissora local.

A tarde já se despedia e levava a chuva fina, fria e fazia brotar de dentro da alma a nostalgia.

No horizonte despontava o tom indescritível de laranja; ouro; amarelo e reluzia com o sol que parecia se recolher ao mesmo tempo cedia lugar ao entardecer espetacular que hoje ainda inspira fotógrafos e artistas de todos os gêneros.

No aposento de minha filha, criança ainda, ecoava um gemido de voz fraca, melancólico que não esqueço. Ao ouvir, a tristeza me invadia o coração e as lágrimas marejavam meus olhos que teimavam em rolar por minha face. Eu as camuflava para que as pessoas ao passar por ali não me vissem chorar e também disfarçava de minha mulher para que a atmosfera triste não se estendesse ainda mais.

Todos alimentavam a esperança e muita fé, mas eu, desolado, não via resposta satisfatória para aquele quadro.

Passei pelo curso de medicina, então tinha noção da gravidade do problema. A ciência médica assimilava progressos nessa área e eu tinha conhecimento que um neuroblastoma havia se instalado no abdome da menina e outros profissionais também diagnosticavam leucemia. Eram neoplasias irreversíveis que atacavam o sistema nervoso periférico e linfático.

Minha tristeza não tinha fim ao me sentir frustrado e impossibilitado de fazer qualquer coisa que não fosse administrar medicamentos para amenizar a dor e orar.

Eu continuava na varanda vendo a chuva e o tempo passar, a noitinha já estava chegando, aquele tom triste ressoava do aposento da menina e me colocava em introspecção, fazia refletir sobre minha infância; adolescência e questionar sem respostas, por que tudo isso.

Meu trabalho era na Capital, estava para me mudar, mas aquela situação me colocava em dificuldades e após alguns meses pude me transferir definitivamente.

Minha mulher serviu o jantar e o quarto em silencio era um sinal que a menina estava dormindo sem problemas. Fui até lá, beijei sua face, toquei seus cabelos louros e fui tentar digerir alguma coisa.

Sem apetite e para relaxar ou disfarçar a tristeza coloquei uma música na velha vitrola, Eternity.

Voltei para a varanda, me instalei confortavelmente outra vez com uma manta quente e aconchegante para apreciar a noite fria e sem vestígios de chuva, sentir no firmamento alguma esperança e contemplar as estrelas que pareciam querer me dizer alguma coisa. Quando criança eu gostava de olhar o céu à noite e admirava aquela beleza que só podia vir de Deus. Diziam que nossos desejos eram atendidos pelas estrelas.

Encostei-me na almofada da cadeira, reclinei minha cabeça e as pálpebras pesadas era convite para uma sonolência relaxante que aos poucos me tomou, olhei o meu relógio no pulso, dezenove horas e vinte e nove minutos.

O tempo foi passando e adormeci.

De repente como a um flash vi tudo se modificar a minha volta. Não era mais noite, pensei estar enlouquecendo, vestia roupas diferentes, de outras épocas, vi pessoas que já tinham partido desta vida, automóveis novos, mas antigos.

Olhei para meus pés, estava eu de \Keds\, nome que se dava ao tênis branco de cano alto, masculino de educação física nos tempos de colegial, diferente dos atuais e eu os adorava.

Lá fora, na rua muito sol e amigos que nunca mais os tinha visto. Um deles parou em minha varanda e perguntou:

– Já almoçou?

Respondi – .

– Então vamos até minha casa, vou pegar meus cadernos, o calção de banho, vamos nadar e depois do clube, estudar.

Incrível! Era 1963, eu tinha uma bicicleta marrom, Monark e ele uma Caloi verde, vi meu pai, minha mãe, meus irmãos e avisei-os que ia sair e lá fomos dois adolescentes de 15 anos de idade para mais uma aventura jovem.

Fomos nadar e ele tinha uma irmã lindíssima que chamava a atenção ao colocar maiô, então na piscina ela dizia – Vai olhar muito as minhas pernas? Ela hoje é professora doutora em uma grande Universidade. Ele se formou médico, um excelente pediatra, mas partiu muito jovem.

Outros amigos e colegas de colegial surgiam e me perguntavam se eu estudaria com eles no dia seguinte. Alguns tinham problemas de física, matemática, línguas e eu de ciências além do compromisso de apresentar um trabalho sobre citologia e tecidos para a próxima aula.

Algumas colegas apareciam e me convidavam para o esperado \bailinho\ dos sábados na casa de algum amigo. Conversas sobre \paqueras\; dos \namoricos\, das paixões e de alguém que estaria a me esperar para falar de amor.

À noite, após os afazeres de casa, me arrumava, pedia um dinheirinho aos meus pais e lá ia novamente para o sadio divertimento.

Não existia Vídeo; DVD; CD; calculadoras de bolso e nem informática, o computador era conhecido por \cérebro eletrônico\, para muitos, utopia e hoje uma realidade em forma de Microcomputador.

Imaginem como era a vida de um estudante ao ter que se debruçar em cima de livros em casa ou nas bibliotecas para adquirir conhecimento, realizar pesquisas, apresentar trabalhos e dissertações. Livros, blocos de rascunhos e caneta eram nossos instrumentos de estudo.

Impressoras? – Nem em sonho, eram máquinas grosseiras de datilografia com papel carbono se quisesse fazer cópias. Xerox? Eram fotocópias tiradas em lojas fotográficas, péssima qualidade e muito cara. Mimeógrafos eram utilizados pelos docentes. A facilidade da Xerox apareceu depois.

Líamos muito durante o ano. Hoje se pergunta a um aluno: – Quantos livros você leu esse ano? – Resposta: – Nenhum.

A minha aventura no passado Continuava, à noite, fui direto ao clube dançar, falar sobre o dia no colégio e jogar um monte de conversa fora. A música era gostosa, Ray Conniff. Depois uma seleção de samba e uma bebida sem álcool ou um Cuba Libre para mostrar que já éramos adultos.

Outra noite eu fui a um dos cinemas e assisti a um dos filmes da série Tammy, romântico, cuja música até hoje é lembrada e apreciada. Sempre acompanhado de alguém de minha simpatia ou a namorada.

Tudo era tão real e na manhã seguinte um grupo de amigos me convidou para ir até uma fazenda de trem. Lá fomos na \Maria Fumaça\. Transporte saudável, seguro e de tempo em tempo um apito soava para alertar da chegada na estação ou uma maneira de cumprimentar colonos por todo o trajeto. Muita alegria.

Obedecer ao horário de volta para casa era respeitado com rigor. Todos tinham horário para tudo. As regras familiares eram mais rígidas, havia o controle da hora de estudar; refeição; diversão; trabalhar e agradecer a DEUS de acordo com o credo religioso de cada um.

Gentilezas e boas maneiras eram coisas primordiais e normais, o único vício era o de ser feliz. Algumas tragadas em cigarros nos \bailinhos\ para mostrar a masculinidade e fazer \poses\.

Assim eu estava vivendo aqueles momentos de adolescência sem entender o que estava acontecendo. Muito feliz.

Quantos problemas eram considerados grandes e hoje tão pequenos que faz rir a exemplo das paixões não correspondidas, a bronca dos pais pela nota baixa ou não atender a um compromisso, coisas de adolescentes.

Na manhã do dia seguinte, 1963, acordei cedo como de costume, calcei meu Keds, peguei minha bicicleta, minha bolsa (não se usava mochilas) e fui ao colégio.

Terminada a aula voltei para casa junto a muitos colegas, amigos e amigas, felizes, muita energia e mil \palhaçadas pelo caminho\. No percurso, um deles, ao fazer gracinhas teve que desviar de um poste e levou um \belo\ tombo. Felizmente não aconteceu nada a não ser por um gemido de dor que se espalhou por todos os cantos.

Foi nesse exato momento, olhei o relógio em meu pulso e fiquei surpreso. Dezenove horas e trinta minutos, 1975.

Estava eu de volta a realidade atual. Fui correndo ao quarto ver o que estaria acontecendo. A menina havia acordado com dores e aí percebi que tudo aquilo se passou tão rápido, um LAPSO DE TEMPO.

Pode ter sido um presente que ganhei ao voltar no tempo para refletir e aceitar todas as situações que nos são impostas. Ter encontrado e ficado muitos dias com meus amigos, meus pais, no colégio, na praça, no cinema, no clube, reviver momentos de prazer em companhia de tudo o que deixei no passado.

Tudo em uma fração de tempo.

Voltei à realidade com mais vigor, mais fé e um pouco mais sábio ao entender que os desígnios de DEUS, que não são fáceis de compreendê-los, são inquestionáveis.

Uma lição, saber que cada um de nós tem um tempo e uma missão aqui na Terra, alguns longos e outros curtos demais; ajudar; aceitar as pessoas e os problemas como nos são entregues.

Hoje ao ouvir e ver a chuva cair, contemplar o firmamento nas noites de inverno, sinto em meu coração a saudades ir de encontro a alguém que de alguma estrela me acena com um sorriso lindo e me diz: – Está tudo bem!

A Giulianna querida,

Que no pouco tempo aqui, foi o bastante para me fazer entender que o amor nos aproxima de Deus e é pelo amor que devemos viver.

Johnny Notariano – 2011

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