Juliano Strachulski
publicado em 03/04/2011 como www.partes.com.br/socioambiental/comunidades.asp
Resumo
A partir da revalorização dos conhecimentos tradicionais, vêm se desenvolvendo cada vez mais trabalhos com o intuito de compreender a relação das comunidades tradicionais com o meio natural e suas características culturais, visando o uso sustentado dos recursos naturais. O conceito de paisagem tem sido parte fundamental destes estudos, pois permite correlacionar os elementos socioculturais com os fatores físico-naturais, na compreensão de sua suas práticas e caracterização da relação com a natureza.
Palavras-chave: conhecimentos tradicionais, recursos naturais, relação com a natureza, características culturais, práticas produtivas.
Resumen
Desde la revaluación de los conocimientos tradicionales, se han desarrollado más trabajos con la intención de entender la relación de las comunidades tradicionales con el entorno natural y las características culturales con miras a la utilización sostenible de los recursos naturales. El concepto de paisaje ha sido parte fundamental de estos estudios, ya que permite relacionar los elementos socio-culturales con los factores físico-naturales, en la comprensión de sus prácticas, y la caracterización de la relación con la naturaleza.
Palabras clave: los conocimientos tradicionales, recursos naturales, la relación con la naturaleza, las características culturales, las prácticas de producción.
Revalorização e estudo dos conhecimentos tradicionais
As comunidades tradicionais como um todo passam a ter seus conhecimentos revalorizados a partir de 1980 quando começam a surgir e se expandir movimentos socioambientais preocupados com a conservação e a melhoria das condições de vida da população rural, motivados pela crescente consciência sobre a crise ecológica do planeta e pela crescente acumulação de evidências empíricas, mostrando a incapacidade dos sistemas produtivos modernos para realizar um uso correto dos recursos naturais. Acompanhando esta tendência, no Brasil ocorre o surgimento e fortalecimento de movimentos como Movimento dos Povos Indígenas, dos Seringueiros, dos Quilombolas, dentre outros, com o intuito de receberem o merecido reconhecimento do governo pelo seu conhecimento e valorização dos recursos naturais, que os mantém até hoje.
Nas últimas três décadas tem-se acompanhado o desenvolvimento de inúmeros projetos e investigações sobre as formas de uso e manejo dos recursos naturais pelas comunidades tradicionais, o aparecimento de publicações especializadas (Indigenous Knowledge and Development Monitor, Etnoecológica, Journal of Ethnobiology, etc.), a criação de núcleos ou sociedades de investigadores e a realização de numerosos congressos nacionais e internacionais focados em tais temas. Com relação aos autores que vem trabalhado com a referida temática destacamos os seguintes: Victor Manuel Toledo, Narciso Barrera-Bassols, Antonio Carlos Diegues, Miguel Altieri, Scot Hoefle, Chantal Blanc-Pamard, Paul Claval dentre outros, que vem empregando esforços na busca da revalorização destes saberes destacando sua importância frente ao domínio da dimensão científica sobre os potenciais dos recursos naturais e do desenvolvimento sustentável.
Os saberes de comunidades tradicionais derivam das limitações impostas pelas condições naturais, tendo nesse sentido uma grande capacidade para se adaptar às especificidades dos ecossistemas. O desenvolvimento de um sistema de conhecimentos tradicionais é coerente, portanto, com a manutenção e o uso sustentado dos ecossistemas naturais (DIEGUES et al, 1999, p. 20).
O estudo de tais saberes pode ser realizado por meio de um complexo integrado de conceitos: o sistema de crenças (kosmos), o conjunto de conhecimentos (corpus), e de práticas produtivas (praxis), e que torna possível compreender as relações que se estabelecem entre a percepção, representação e manejo da natureza (TOLEDO e BARRERA-BASSOLS, 2009, p. 17).
A representação dos elementos naturais por uma comunidade tradicional está ligada à forma como esta coletividade se apropria da natureza, a partir do momento que passa a modificá-la por meio de suas práticas produtivas. A ideologização da realidade é levada ao âmbito geográfico por Milton Santos na idéia de espaço como uma natureza alterada ou a segunda natureza.
A relação com a natureza e as vertentes do conceito de paisagem
Atualmente a interação sociedade-natureza apresenta-se um tanto quanto conflituosa, pois o homem por meio de suas técnicas passa a explorar a natureza não somente de forma sustentável, ou seja, passa a alterar a paisagem, não levando em consideração seus limites e potencialidades. A compreensão científica da natureza pelo viés das práticas e saberes das comunidades tradicionais passa pelos conceitos e noções geográficos como paisagem, lugar e território.
A noção de paisagem ao longo da história do pensamento geográfico teve várias abordagens, morfológica, funcional, histórica, espacial e simbólica (CORRÊA & ROSENDAHL, 1998). A partir da década de 1970 o conceito de paisagem na ciência geográfica ganha novas dimensões com a emergência de uma Nova Geografia Cultural, em virtude da incorporação de novos elementos como percepção, representação, imaginário e simbolismo (CASTRO, 2002).
O conceito de paisagem na perspectiva morfológica apresentada por Carl Sauer citado por Corrêa e Rosendahl é vista como,
[…] um conjunto de formas naturais e culturais associadas em uma dada área, é analisada morfologicamente, vendo-se a integração das formas entre si e o caráter orgânico ou quase orgânico delas. O tempo é uma variável fundamental. A paisagem cultural ou geográfica resulta da ação, ao longo do tempo, da cultura sobre a paisagem natural […] (SAUER, 1998 apud CORRÊA & ROSENDAHL, 1998, p.9).
A visão de Sauer de uma paisagem descrita e analisada pelo que ela é associando-se as modificações por ela sofridas devido à ação do homem traz uma ideia de paisagem que possui em sua matriz fortes elementos culturais (elementos materiais e imateriais), comparativamente à concepção científica da época que dicotomizava a natureza da ação humana. Este método novo de análise da paisagem (baseado na morfologia-fisiografia dos elementos paisagísticos), de acordo com Sauer, tem bases epistemológicas ligada à geografia agrária, que respondia aos estudos das comunidades rurais da sociedade francesa, ainda fortemente ligada à estrutura agrária dos pequenos agricultores.
Por tanto, a análise da paisagem rural nesta perspectiva é importante, pois embasa-nos no sentido de proporcionar o desenvolvimento de estratégias que contemplem tanto saberes vernaculares, como os recursos naturais e a influência do homem na sua modelagem, além de ajudar a entender como a criação de geossímbolos refletem a apropriação de certos elementos da natureza.
Para Milton Santos em sua obra a Natureza do Espaço a paisagem é entendida como “um conjunto de formas que, num dado momento, exprime as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são as formas mais a vida que as anima” (SANTOS, 2006, p.103).
Contudo o conceito de paisagem também é utilizado nos trabalhos de caráter físico da ciência geográfica. Nas palavras de Ab’Sáber “a paisagem é sempre uma herança em todo o sentido da palavra: herança de processos fisiográficos e biológicos, e patrimônio coletivo dos povos que historicamente as herdaram como território de atuação de suas comunidades, que neste caso se inserem as comunidades tradicionais (AB’ SÁBER, 2003).
Neste sentido é importante salientar que as comunidades tradicionais historicamente através da percepção da paisagem e da implantação de suas práticas agrícolas vêm adaptando seus cultivos às condições ecológicas, locais, e desenvolvendo conhecimentos particulares acerca dos elementos paisagísticos, pois a transformação da área modificada pelo homem e sua apropriação para uso próprio são de importância fundamental para planejar a forma de uso dos recursos naturais contidos na paisagem. Para Bertrand,
A paisagem não é a simples adição de elementos geográficos disparatados. É, em uma determinada porção do espaço, o resultado da combinação dinâmica, portanto instável, de elementos físicos, biológicos e antrópicos que, reagindo dialeticamente uns sobre os outros, fazem da paisagem um conjunto único e indissociável, em perpétua evolução (BERTRAND, 1972a, p. 141).
Ainda para o mesmo autor, a tríade Geossistema, Território e Percepção formam o método que possibilitaria o entendimento de como as coletividades se relacionam com as paisagens. Portanto, subsume abordagem complexa, integrando as vertentes sociais e naturais para a compreensão do fenômeno (BERTRAND e BERTRAND, 2002b).
A partir da análise da paisagem é possível estabelecer perspectivas quanto às formas de uso e apropriação de certos recursos naturais, a melhor forma de se realizar estes usos, e prever os possíveis problemas ambientais que serão gerados por tal exploração.
Atualmente presenciamos inúmeros casos de exaustão de determinados recursos naturais isso a priori deve-se a uma apropriação desregrada da natureza com caráter predatório e degradador, num processo constante de alteração das paisagens. Neste sentido é mister destacar a paisagem como elemento transformado e transformador-condicionador (marca e matriz) (Berque, 2004), que compõe aspectos culturais relevantes da sociedade, exprime características próprias de determinada cultura (comunidade) seus valores, e perspectivas futuras.
O significado da paisagem para comunidades tradicionais pode ser compreendido pelas atividades exercidas sobre esta e que foram ou estão sendo desenvolvidas e que são materializadas nas formas criadas socialmente e que produzem geossímbolos diversos sobre o espaço que vão representar as práticas sociais (materiais e imateriais) de uma determinada comunidade.
Para Romero e Jiménez a paisagem,
[…] adverte os tipos e intensidades do aproveitamento do solo, das consequências das atividades humanas sobre o sistema natural e a intensidade dos impactos ambientais, ao mesmo tempo que desperta a necessidade de proteção frente a certas alterações provocadas pelo homem […] (ROMERO; JIMÉNEZ, 2002, p. 23 p.).
Tomando por base os autores acima citados, entende-se que quaisquer que sejam as formas de intervenções antrópicas na paisagem elas causam alterações (lembramos da segunda natureza enfatizada por Milton Santos) segundo as necessidades das coletividades, podendo, na maioria das vezes, resultar em alterações negativas sobre os processos ecossistêmicos.
O sistema societário das comunidades tradicionais é estabelecido por uma interface entre os elementos geobiocenóticos e socioculturais, incluindo aí o sistema econômico. Neste sentido completando o raciocínio Bolós afirma que,
[…] a diversidade das paisagens rurais é fruto da forma de ocupação e exploração do território e em definitivo, do tratamento concedido aos recursos naturais. E que a diversidade espacial da paisagem rural se baseia igualmente nas diferentes formas de uso e exploração própria de cada cultura e nas características naturais climáticas e físicas das paisagens […] (BOLÓS, 1992, p. 14).
Considerações
Com a revalorização dos conhecimentos tradicionais, passa a haver uma maior procura para se estudar tais comunidades, e entender como se dá sua relação com a natureza, surgindo importantes pensadores que apontam as diretrizes para a realização de tais estudos (citados no início do texto). O uso sustentado dos recursos naturais é um pressuposto que advêm da gênese destas comunidades, pois a compreensão das limitações físicas, e a superação destas, pressupõem uma enorme capacidade de adaptação as adversidades, dos diferentes períodos históricos.
Para o estudo de comunidades tradicionais deve-se buscar aliar as relações socioculturais aos elementos físico-naturais, tentando entender como as alterações antrópicas transformam e alteram o meio e como este, por sua vez, proporciona o desenvolvimento de certas práticas que futuramente irão caracterizar culturalmente uma determinada comunidade. Assim o conceito de paisagem, torna-se peça fundamental ao aporte teórico-metodológico capaz de proporcionar um estudo completo acerca de tal temática.
Referências
AB’ SÁBER, A. N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. 3. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. 159 p.
BERQUE, A. Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problemática para uma geografia cultural. In: CORREA, R.L.; ROSENDAHL, Z. (Org). Paisagem, tempo e cultura. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2004, 84-91 p.
BERTRAND, G. Paisagem e Geografia Física Global: Esboço Metodológico. Cadernos de Ciências da Terra do Instituto de Geografia da USP, São Paulo, n. 13, 1972a.
BERTRAND, C. e BERTRAND, G. Une geographie traversiere: l’environnement a travers territoires et temporalites. Paris: Editions Arguments, 2002b. 330 p.
BOLOS, M. Manual de Ciencia del Paisaje, Teoria, Métodos y Aplicaciones. Barcelona: Alev, 1992. 273p.
CASTRO, I. E. Paisagem e turismo. De estética, nostalgia e política. In: YÁZIGI, Eduardo (org.). Paisagem e Turismo. São Paulo: Contexto, 2002. 226 p.
CORRÊA, R. L.; ROZENDAHL, Z. Apresentando leituras sobre paisagem, tempo e cultura. In: CORRÊA, Roberto Lobato & ROZENDAHL, Zeny (orgs.). Paisagem, Tempo e Cultura. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998. 123 p.
DIEGUES, A. C; ARRUDA, R. S. V; SILVA, V. C. F; FIGOLS, F. A. B; ANDRADE, D. Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal. COBIO-Coordenadoria da Biodiversidade. Nupaub-núcleo de pesquisas sobre populações humanas e áreas úmidas brasileiras. Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil. São Paulo, 1999, 208 p.
ROMERO, A. G.; JIMÉNEZ, J. M. El paisaje em el Âmbito de La Geografia. Cidade do México: Instituto de Geografia. 2002. 137 p.
SANTOS, M. A natureza do espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. 2. reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. 259 p.
TOLEDO, V.; BARRERA-BASSOLS, N. A etnoecologia: uma ciência pós-normal que estuda as sabedorias tradicionais. Desenvolvimento e Meio Ambiente, América do Sul, p. 20, dez. 2009. Disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/made/article/
viewPDFInterstitial/14519/10948. Acesso em: 3/7/2010
Juliano Strachulski (STACHULSKI, J.) graduando do 4º ano do curso de Bacharelado em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e participante de projeto de iniciação científica.
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