Pedro Coimbra
Ela nasceu em uma grande fazenda denominada Segredo, nas fraldas da Serra do Carrapato. As terras de seu pai, Coronel Anselmo, se perdiam de vista, num suceder de vales, planícies e montes. Dedicadas à mineração, à criação de gado e ao plantio de café as propriedades só prosperavam.
Aos pés de uma árvore de óleo balsamo ele ergueu um enorme casarão, adequado ao seu poderio. No andar superior os cômodos familiares, uma grande sala, a copa e a cozinha. Nos porões alojavam-se os escravos sempre escolhidos como muito cuidado nos leilões e trazidos para trabalhar diante do maior rigor.
Coronel Anselmo era considerado pelas cercanias um homem mau, que abusava das negras e vivia a fazer malvadezas com os negrinhos. Era pai de seis filhas e a última delas era Lia, que nasceu fora do tempo e foi criada no meio dos grandes seios de uma mulher que os brancos chamavam Maria e os negros de Yao.
Era uma menininha de cabelos alourados e encaracolados, com uma perna definhada, que andava pelos cantos do casarão, ensimesmada.
Naquela época as revoltas dos escravos, principalmente dos que viviam do trabalho na mineração eram comuns em todas as Vilas e lugarejos. Foi o que aconteceu na Fazenda Segredo numa noite sem lua. Os escravos fugiram das senzalas, mataram o Coronel Anselmo, seus familiares e incendiaram o casarão.
Só Sá Lia escapou no que foi considerado seu primeiro milagre. Andou por entre as barricas de sal que os revoltosos haviam espalhado pelo chão para que nada mais surgisse naquele lugar amaldiçoado. Pouco a pouco foi aprendendo a sobreviver de raízes que encontrava e de insetos.
Depois sentava-se num tronco, coberta de andrajos e punha-se a murmurar ladainhas ininteligíveis. As negras escravas trazidas por Yao, saiam de um quilombo formado nas cercanias e entregavam os seus rebentos para serem curados das doenças do dia a dia.
Seu segundo grande milagre foi tirar das mãos dos capitães do mato e dos aventureiros franceses um líder negro do quilombo chamado Belisário. Diziam que Sá Lia o salvara voando por cima do acampamento.
Um padre alemão, Cônego Francisco, condoído com sua vida sofrida a levou para morar na sua casa na Vila e colocou-a a fazer trabalhos domésticos e cuidar das coisas da Igreja. Mesmo assim filas de formavam as suas portas para que benzesse as pessoas de todos os males.
Numa missa vespertina aconteceu seu grande milagre, pelo qual seria para sempre lembrada. No momento da comunhão vários fiéis testemunharam que cascatas de sangue jorraram sobre sua cabeça. Deixou de ser Sá Lia e passou a ser denominada Santa Lia, sobre cuja cabeça caiam constantemente pétalas de rosa branca.
Cônego Francisco, a quem toda aquela movimentação desagradava muitas vezes acabou por construir uma capelinha no alto de um morro e um casebre para abrigar Santa Lia. Ela viveu por muitos anos e despediu-se deste Vale de Lágrimas já centenária, nos braços da multidão.
Os anos se passaram e muito antes das autoridades eclesiásticas determinarem um processo de santificação que todos os fiéis ansiavam, um advogado e jornalista, Jacinto Melo, que escrevia num jornal da capital, resolveu investigar a vida de Santa Lia.
Seu artigo repercutiu como uma bomba a começar pela manchete: “A santa que nunca foi santa”. Dissecava cada um dos milagres a ela atribuídos, a começar pelo de sua salvação quando da revolta dos escravos que tudo dizimaram. A garotinha fora acordada pela negra Yao e se escondera numa arca de jacarandá até o morticínio acabar. Não conhecia nenhuma oração especial e seus murmúrios continham palavras desconexas. Não levara pelos ares Belisário que saiu de sua prisão mercê de muitas mortes de seus companheiros. O grande milagre ocorreu num dia que a igreja estava vazia, com o Cônego Francisco e mais duas beatas. As versões para o fato eram contraditórias e o sacerdote nunca aceitou que algo sobrenatural houvesse acontecido. Ao contrário do que podia parecer Santa Lia tinha muitas ligações com os grupos políticos que dominavam a região…
A grande revelação do jornalista era que tivera acesso a cartas que Cônego Francisco deixara ao morrer, que comprovavam sua situação de amásio de Sá Lia, que resultou em pelo menos três rebentos.
Jacinto Melo foi execrado e sumiu na história, sendo que muitos atribuíam sua morte prematura a “aquela doença ruim”.
Para Santa Lia não ouve processo de beatificação ou santificação, mas até hoje, centena de milhares de devotos peregrinam até a sua capela…