Valmir da Silva[1]
publicado em 04/07/2010
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Resumo: O trabalho procura abordar questões da relação entre o ouvinte e a música transmitida pela mídia. Pois, as mudanças nas formas de recepção e transmissão musical acarretadas pelos avanços tecnológicos contribuiu para diversas alterações nos hábitos culturais dos sujeitos. A partir da perspectiva crítica de Adorno sobre o fetichismo na música, esse trabalho procura analisar os processos de industrialização e comercialização assim como, as consequências da apropriação dos ritmos, sons e melodias. E para compreender o fenômeno do gosto musical na era do advento das mídias em sua criação e recepção, empregamos a proposta de Adorno sobre a tipologia da escuta.
Palavras Chaves: Mídia, apropriação e recepção, educação.
1 – Considerações iniciais
Com o surgimento das mídias aconteceram inúmeras mudanças na música, na audição, na percepção, etc., e suas consequências na sociedade foram analisadas pelo filósofo Adorno. Ele faz uma clara análise dos novos gostos musicais gerada pela recepção musical através das mídias. Segundo ele, o gosto musical não só regrediu, mas permaneceu, de forma geral, em um estado infantil. Adorno ressalta que essa escuta se caracteriza pela postura do ouvinte frente à música mais cômoda e comum e dessa forma, o sujeito acaba exigindo sempre a repetição do que já é conhecido. Isso que Adorno diz, explica de certa forma as “tribos” da cultura musical, o funk, pagode, samba, rock etc.
Esse tipo de preferência se tornou predominante devido à adesão entusiasta às músicas de sucesso, o que contribuiu, juntamente com a forte popularidade do cinema, por exemplo. A tendência preponderante de uma escuta padronizada, de certa forma contribui para um processo de liquidação do indivíduo. Esse, por sua vez, se acomodou ao hábito de escutar sempre e somente o que lhe era oferecido e, consequentemente, acarretou uma perda da sua capacidade de livre escolha consciente da música. Nesse sentido, me questiono que papel deve ter tido a escola nesse processo? Uma vez que o ouvinte passou a adotar as mídias como principal referência para a sua escolha do repertório musical, as músicas comuns começaram a ser aquelas que ocupavam uma posição na parada de sucesso. Dessa forma, o ouvinte se dispôs ao domínio do comum e aceitou sem objeções a renúncia de sua liberdade na procura da falsa segurança de uma consciência acomodada.
Acredito que dessa maneira a qualidade da transmissão e recepção sonora causou uma disseminação da música em massa, o hábito de separar um tempo exclusivo para se escutar música foi gradualmente sendo substituído por uma audição desconexa e efêmera de estilos. As pessoas foram desaprendendo a dar atenção e a exercer uma melhor compreensão no que ouviam. Assim sendo, a recepção passou a ser caracterizada, de um modo geral, pela distração e pela perda do esforço de uma escuta consciente. Adorno considera, também, a homogeneização do repertório que se tornou normalizado e semelhante entre si, exceto algumas particularidades, como reforço para essa crescente incapacidade de conexão (ADORNO 1938, p. 92).
Entre outras consequências trazidas pelo advento das mídias, as pessoas passaram gradativamente a excluir de suas vidas o interesse pelo aprendizado musical, substituindo os instrumentos musicais de suas casas pelos aparelhos reprodutores de som, assim, a prática musical deu lugar a audição pacífica, esses acontecimentos como um todo colaboraram para aquilo que Adorno assinalou como regressão na audição. A contraparte da regressão na audição, ou o seu fenômeno gerador segundo Adorno, é o fetichismo na música, utilizando-se dos meios de comunicação, esse poder teria como objetivo gerar necessidades supostamente legítimas para manter as pessoas carentes e ávidas por novos produtos, o que na verdade significa apenas um incentivo para exercer o poder de compra. Por meio dos critérios fetichistas dominantes a Indústria Cultural teria a capacidade de cercar com exclusividade todas as possibilidades de escolha do consumidor.
Segundo as observações de Adorno, a essência desse falso encantamento consistiria em projetar imagens nos meios de comunicação para refletir nos consumidores algo que eles já percebem em si mesmos e, através do processo de identificação fazer com que as massas se espelhem em um produto recomendado como um objeto de sua própria ação, da qual não conseguem subtrair-se (ADORNO 1938, p. 91). Nesse sentido, Adorno declara que “deve-se assegurar aos fãs da música de sucesso de que os seus ídolos não são excessivamente elevados para ele” (idem p. 74). Desse modo, o fetichismo da música estaria apoiado no princípio totalitário do sucesso acumulado. Para Adorno, os ouvintes e consumidores em geral foram acostumados a ansiar e exigir exatamente aquilo que lhes era imposto obstinadamente pela mídia (idem, p. 91). Adorno considera tal procedimento como um “círculo vicioso fatal” em que “o mais conhecido é o mais famoso e tem mais sucesso, consequentemente, é mais gravado e ouvido, e com isso se torna cada vez mais famoso”. (idem p. 75). Portanto, o fetichismo na música não seria outra coisa se não, uma estratégia da Indústria Cultural em manejar o consumidor com o intento de aumentar as oportunidades de venda.
2 – O fetichismo e seu efeito cultural
Uma vez demonstrado o método fetichista e o seu caráter ilusório, partiremos agora para o estudo das suas implicações na escuta musical. Uma particularidade que já foi previamente mencionada e demonstrada refere-se ao caso da improvável figura de alguém que escuta música, pois na realidade não se trata de uma atividade especificamente direcionada para a audição musical, mas uma conciliação entre uma determinada ocupação como distração.
Outra consequência da escuta regredida deriva da rápida rotatividade na substituição das músicas da moda e dos ídolos de sucesso. Esse tipo de procedimento resultou em uma escuta que se caracteriza pela expectativa do ouvinte de estar sempre a par da próxima novidade. Isso faz com que ele não escute mais a música propriamente dita, mas aquilo que ela promete ser, assim como as novidades que ela aparenta ter. Percebe-se que a Indústria Cultural é muito estrategista em suas ações.
Outra propriedade da escuta regredida seria o sintoma daquilo que Adorno denominou como coisificação (ADORNO 1938, p. 84). O conceito significa a autonomia dos objetos em relação ao homem. Na música refere-se a uma maior valorização do material do que a experiência musical. Para explanar esse dado, Adorno lembra a decisiva importância atribuída a voz. A supervalorização da voz encarada pelo público como uma dádiva divina que justifica o direito de adoração ao ídolo premiado com um supremo bem sagrado que o torna digno de todo o seu sucesso. Nesse sentido, Adorno apresenta uma eficaz revelação dos processos de industrialização na música. Ligada a mercantilização, e a produção obedecendo quase que obrigatoriamente as normas rigidamente normalizadas e padronizadas pelos padrões e modelos que já fizeram ou estão fazendo sucesso.
Para que aconteça essa apropriação da escuta das massas exige além de todo um empenho uma minuciosa estratégia de marketing. Assim, essas músicas exercem um extenso domínio no espaço sonoro acústico ao serem “inculcadas aos ouvintes através de amplificações e repetições contínuas sem que a organização do conjunto possa exercer a mínima influência contrária” (ADORNO, 1938, p. 81). Adorno cita um exemplo típico de uma dessas estratégias publicitárias que se utilizam, até mesmo, de recursos comerciais intrínsecos a música.
A música de sucesso, na penumbra de seu conhecimento subconsciente, permanece benfazejamente esquecida, para tornar-se por alguns instantes dolorosamente clara, como na luz repentina de um reflexo. É-se quase tentando a equiparar o momento desta recordação com aquele em que ocorrem à vítima o título ou as palavras do início do refrão da música de sucesso: talvez se identifique recordando-a, e assim incorpore a sua posse. É possível que essa coação o leve a refletir sobre o título da música de sucesso. (ADORNO, 1938, p. 92).
Na tática de somente expor ao público aquilo que ele já esteja familiarizado, seus ouvidos devem ter sido previamente programados para que reconheçam os códigos, sons e melodias da música de consumo distribuída pela mídia. Portanto, o que a indústria de mercadorias realmente quer ao proporcionar prazer momentâneo e diversão é desobrigar os ouvintes de pensarem e refletirem sobre o que ouvem, convertendo-os em simples compradores passivos de bens de consumo imediato.
Mas como identificar os diferentes estereótipos de consumidores da música? Segundo Adorno, entre tantos existem, por exemplo, o bom ouvinte, ele não é um profissional da música, seu conhecimento musical procede da sua intimidade com o próprio costume de ouvir música. Ele tem autonomia suficiente para não seguir o critério arbitrário de gosto imposto pelo fetichismo. Para ele, a coerência musical é devido à natureza experiênciativa apreciativa. Talvez, o bom ouvinte se encontre naqueles grupos de pessoas que receberam alguma orientação cultural no processo de sua educação.
O ouvinte consumidor de cultura defende sua posição de apreciador da música. Porém, sua afinidade com a escuta perpassa pela interferência do fetichismo. Isso se explica pelo fato dele ser o típico colecionador. A coleção incondicional das coletâneas e discos produzidos que ele preserva e conserva como um patrimônio cultural é tido como verdadeiros troféus em sua estante. Ele gosta de ouvir música, assim como, a prática da leitura dos encartes de disco que de fato, é o que mais desperta o seu interesse, pois, o mantém informado sobre os dados biográficos e a importância dos artistas.
Entre eles, segundo Adorno, está o ouvinte emocional usa a música como uma espécie de álbum de memória sonora para os momentos de emoções marcantes da sua vida. Sua experiência na escuta tem primeiramente que se remeter a algum acontecimento externo a música. É comum ouvir desse sujeito: “essa é a música, que marcou nosso primeiro beijo, meu amor”, “essa música lembra minha infância”, etc. E assim o indivíduo vai significando sua vida com uma trilha sonora característica e particular. Nesse sentido, a música que mais o agrada é aquela que mais bem revive as suas emoções. Por conseguinte, quanto mais coisificada for a música, melhor servirá para comover o seu ouvido romântico.
O ouvinte ressentido é aquele que guarda o seu ouvido no mausoléu da antiguidade daquilo que estima como resquício musical. Esse sujeito adoraria ter nascido na época dos grandes mestres da história da música, no tempo que, segundo ele, as músicas eram regenciadas por valores legitimamente artísticos. Defende a interpretação musical de acordo com a história autêntica, desconsiderando outras possibilidades de escutar diferentes versões que diferencie a sua música. O que se pode aferir desse sujeito é que ele se utiliza da música como um escudo sonoro para se blindar contra a possessão do fetichismo na música.
O ouvinte de entretenimento é o indivíduo que foi convertido pelos valores ideológicos do fetichismo. Ele consome o que a Indústria Cultural estabelece e, com isso, assegura o gordo lucro da Indústria Cultural. O seu desejo pela música se adaptou ao alto rodízio da moda, que na sua essência, se fortalece pelo consumo de massa. Ele faz parte do grande público alvo do mercado, público que pode ser usual para se explicar os inúmeros veículos midiáticos usados como estratégias de marketing. Sua relação com a música é de caráter operacional, ele agrega o ouvir música com as ocasiões de lazer. Quando afrontado pela música que exige reflexão, ele se opõe com intensidade buscando argumentos para justificar a sua atitude fidedigna nos meios de comunicação e no gosto da maioria como comprobação dessa irrefragável validade. Desse modo, ele consentiu em aceitar pacificamente o totalitarismo das mídias a favor de um suposto conforto que se sustenta numa exoneração do pensamento autocrítico.
Essas são questões hipotéticas levantadas por Adorno para caracterizar não indivíduos incondicionais, mas determinados comportamentos reentrante que determinados sujeitos costumam professar em seus hábitos de apreciação da música.
3 – Considerações finais
A pós ter esclarecido o concludente fetichismo musical provocado pela industrialização comercialização e apropriação da música pelo sistema midiático e diagnosticado os sintomas da regressão da audição, partiremos agora para a fase de realmente ouvir música. Se considerarmos a perspectiva crítica de Adorno como uma proposta de juízo crítico, estaremos admitir, mais uma vez, a veracidade de suas ideias sobre a regressão da audição. Nesse sentido, o ouvinte deve, inicialmente, desempenhar um posicionamento crítico no que desrespeite ao seu costume de ouvir. Adorno sugere uma escuta que não espere somente resultados imediatos em conformidade com os padrões estabelecidos pela Indústria Cultural. Nesse sentido, o rompimento da dependência dos meios de comunicação em massa como fonte prioritária para a escolha musical consiste no ir além do que é naturalmente óbvio e do que não exige esforço.
Até o presente momento, o estudo da escuta musical na era do advento das mídias e a sua ideologia na recepção midiática validadas pelas ideias de Adorno foram, de um modo geral, adequadamente compassivo, apesar de alguns propósitos ecoarem como ideais. Porém, quando nos defrontamos com os parâmetros de ajuizamento estético de Adorno para estimar o valor artístico das músicas recorrentes nos meios de comunicação de massa, o aproveitamento se torna inexequível.
Com este trabalho, acredito ser possível colocar em discussão parâmetros justos no reconhecimento de uma música de valor artístico na mídia de massa. De maneira suposta, para se considerar uma música de cunho artístico e não um bem de consumo ela deveria, por exemplo, conter as seguintes características: capacidade de suportar o processo vital do tempo e de encerrar a possibilidade de se tornar um pertence permanente do mundo (ARENDT, 1972, p. 258). A experiência de fruição pode ser perpetuada através dos séculos, o prazer que ela transmite ao espírito se renova a cada audição, ela desperta a crítica, a análise reflexiva e a sua escuta é mais ativa do que passiva. Poderia ser resumida em uma só palavra, ela é possuidora daquilo que o grande pensador Walter Benjamin denominou de aura (BENJAMIN 1955, p. 14), em outras palavras, é algo vivo, movente e composta de toda uma singularidade única.
Referências Bibliográficas
ADORNO, T, W. O Fetichismo na Música e a Regressão da audição. In: BENJAMIN, W. Textos escolhidos. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1982. p. 173-199.
______________. Idéias para a Sociologia da Música. In: Os pensadores. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1983. p. 259-268.
ARENDT, Hannah. A Quebra entre o Passado e o Futuro. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979. p. 28-42.
BENJAMIN, W. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: Obras Escolhidas. v. 1: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985. p. 5-25.
FERRARETTO, L. A. O hábito de escuta: pistas para a compreensão das alterações nas formas do ouvir radiofônico. Ghrebh. Res., n. 9, p. 1-20, 2007. Disponível em:<http://www.revista.cisc.org.br/ghrebh9/artigo.php?dir=artigo&id=Ferraretto>. Acesso em 03 abr. 2007.
[1]Vinculação Institucional: Aluno da Pós-graduação do Curso de Especialização em Tecnologias da Informação Aplicadas a Educação/EAD/UFSM. Formação: Graduação Licenciatura Plena em Pedagogia, UFSM/2008 – Pós-graduação Especialista em Gestão Educacional, UFSM/2010 – E-mail: professor_valmir_rs@yahoo.com.br |
Como pode ser citado:
SILVA, Valmir da. O Concludente Fetichismo Musical Provocado pela Industrialização Comercialização e Apropriação da Música pelo Sistema Midiático. P@rtes. São Paulo. Julho de 2010. Disponível em: <www.partes.com.br/cultura/musica/fetichismomusical> |