Silas Corrêa Leite
publicado em 01/06/2010
As batalhas nunca se ganham. Nem sequer são travadas. O campo de batalha só revela ao homem a sua própria loucura e desespero, e a vitória não é mais do que uma ilusão de filósofos e loucos. Wiliam Faulkner, O Som e a Fúria |
Ricardo Guilherme Dicke, Prêmio Walmap, Magnífica Literatura Arrojada em seu Esplendor Literário |
O cavernoso romance (novel?…) “DEUS DE CAIM” do surpreendentemente estupendo escritor Ricardo Guilherme Dicke, agora muito apropriadamente relançado em alto nível pela LetraSelvagem, na coleção Gente Pobre, sob a organização do escritor-editor Nicodemos Sena, bem faukneriano e contemporâneo ainda, destila verbos, venenos, e inventaria brumas da relação ser/sociedade, vida/morte, amor/dor, fantasia/frustração, carne/espírito, dilemas/sentido e percepção, moendas (interiores)/engenhos (de almas atribuladas), tormentas pertinentes/insanidades comportamentais arrazoadas, Deus e o diabo no húmus entre Pasmoso e a profunda cauda narrativa que flui com densa liquidez expressionista/existencialista, e os cárceres das tentativas. A prosa do espaço, a dialética do exterior e do interior “as geografias solenes dos limites humanos”(Paul Éluard) e a porção carbono-C rusoé de cada ser. E Nelly Novaes Coelho (crítica literária, USP) já no início do livro ricamente editado já muito bem levanta panos e tintas:
“O homem interrogante; aquele que sonda o vazio existencial (…); em Dicke predomina a sondagem dos escuros do homem (…); Deus de Caim escava fundo um dos interditos que alicerça a civilização cristã ocidental (…); tempo de caos; romance labiríntico (…)”.
Toda arte de alto nível é cheia de pontos de interrogações como se propositalmente desinterligados. A arte de escrever nos leva a afirmação da vida em nós. Lágrimas não ficam para sementes, senão na arte? É melhor ser triste do que arrogante. Quatrocentas páginas de puro deleite que, explorando o fluxo narrativo (em júbilo?) do autor, vai de casa a casa, de ambientes a embustes, de fachadas a desfrutes, do historial ao fabuloso, entre o espanhol ao francês, nacos de poesia propositalmente semeadas, levantando lebres, apontando sítios letrais e escavando horrores quase que impossíveis de serem silenciados. Escrever é teatro de ocupação?
Artista plástico e filósofo, de pai alemão, Ricardo Guilherme Dicke pintou sua literatura de tintas brilhantes, novíssimas para a época em que foi inventada, um épico com cargas humanas, demasiado humana, como diz, fragmento de ensaio a respeito do livro (Ronaldo Cagiano):
“Nos 21 capítulos da obra a história da família Amarante vai se desdobrando numa colcha de retalhos de situações conflituosas e metaforizam a própria historia do Brasil (…)” (In, Carlos Herculano Lopes, Caderno Pensar, Estado de Minas, 06/02/10).
Aliás, Hilda Hist o considerava “um gigante”. Caim, Abel, Lázaro; personagens desbiblificados entre sombreados com querelas, acontecências, traições, taras; a vida nua e crua revelando sinais de pânicos e disfarçando conflitos, neuras. A par disso, bem pintados, filosofados, livros bons acabam joias preciosas. O medo nos delimita? Existe mais insanidade do que sensatez na vida, nas cargas dos ombros dos homens, no mundo. Somos todos espécies transfiguradas de paisagens com passagens de agonias, sonhadores ao extremo, não moscas-de-frutas. O Deus de Caim soma tantos pontos de interrogações até sobre palavras não ditas; dadas a entender.
“Romance capaz de abalar a nossa ficção” – (Guimarães Rosa). O âmago das crueldades destrinchadas em núcleos cênicos e traços existenciais carregados de ferramentas de crueldade e características psicológicas. Os arquétipos da fantasia e de uma loucura surda, enviesada, tudo em DEUS DE CAIM, a partir do mote de um irmão atentando contra o outro. A realidade é mais embaixo.
A consciência, a inconsciência, o que afinal resta dos refinamentos de uma ótima ótica para ver/sentir/; escrever com domínio da pena. Dicke naturalmente arrasa quarteirões, expõe as vísceras de momentos retratados, mas, ainda assim, com a ótica apurada de um pintor, desqualifica e expressa o horror (de viver?); teatro de ocupação reinando o tempo todo, num vareio de linguagem. Você só acredita porque está lendo. Como é que pode? No mundo da fantasia os monstros engordam parágrafos; na verdade, sangue/suor da dura e inominável vida real. Real?
Contundente, impoluto, altamente criativo, perspicaz, denso, e ao mesmo tempo de uma fineza extraordinária. É difícil ler Dicke e ficar indiferente. Não há neutralidade na sua leção. A atônita realidade captada em parágrafos que vão embora… Realidades sentenciadas com estilo e alto pendor estético, num talento literário surpreendente, agora reconhecido. Quem sairá do labirinto do livro sem se impressionar com as virtudes?
A história fala de nós, segundo Horácio, em sua sabedoria latina. Às vezes temos demônios e anjos à flor da pele. Nas dissonâncias há mais pureza do que no estojo linear das ideias. A arte de buscar o incompreensível nos leva à afirmação da vida. É o paradoxo de sobreviver além da sentição, e campear o lado pensador do humanus. A meditação não é escrachante quando aponta o humano vagando em suas erranças existenciais e sublógicas. Pode isso?
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“(…) Lembremos que toda pessoa tem o direito à vida, não é? Mas de onde lhe advém esse direito? Da Bíblia. E tirá-la, é claro, equivale a tirar um direito fundamental que constitui, desde o tempo de Moisés, violação à lei (…). O problema é este – chegar-se a um plano utópico em que não haja necessidade de leis e necessariamente todos os preconceitos se tornarão cinza inútil, relegada aos museus da morte e das coisas extintas. Imagine o que é não existir nem poeira desses preconceitos de agora que tanto nos martirizam, imagine uma cidade futura e ideal, em que todas as aspirações e inibições que jazem em nós sufocados, reprimidos e inexprimidos, aliadas à técnica elevada à perfeição, o que não seria! Por enquanto só algo mui longínquo disto se delineia em algumas obras de artes. Aliás, toda obra de arte é utópica” (Pg 135).
Você lê se palpitando no entressombreado do livro Deus de Caim e as cinzas aqui e ali soturnas das horas, relações e desmontes de significâncias, e reserva para a sua surpresa seduzida, um lugar para uma nova releitura ainda mais significante a seguir, e quiçá compreenda melhor, inteiro, se isso for possível, como a obra que vale o peso, a fama, a própria paixão de ler e de escrever. Obra única, feito um Cem Anos de Solidão, O Perfume, Baudolino, Invenção de Onira, A Espera do Nunca Mais, Vidas Secas, Grandes Sertões: Veredas. A narração é a redenção?
“Lidando com uma simbologia a que ele dá um sopro vital, fora do comum, Dicke não deixa coisa alguma de fora (…). O homem de fora está cercado de outra mundologia, as realidades violentas e subversivas da narração de Dicke envolvem com rapidez. Sexo e morte são evidentes (…). (Antonio Olinto, da Academia Brasileira de Letras). O ser humano precisa sentir sua exata sensação de estar e ser no mundo. Dicke tira pertencimentos das trompas da cólera, do desamor, da vida fugaz em sua saciadade de aproximação com estados calamitosos. Nada é impossível para ele. Desde Caim e Abel, a história nos fez acorrentados a culpas e sentimentos de medo e opressão.
A irrazão humana. A emoção humana tão desnaturada. Surpreende-nos Dicke em cada parágrafo, mesmo quando a narração ou enfoque vara páginas de limbos. A invisível esquizofrenia costumizada da apática sociedade decadente e falsificada para consumo. O biscoito da vida não é da sorte, não é de vida plena. Lágrimas não são guloseimas. Sentir dói. Em que lugar ficamos livres de tantos nós, senão nas asas da literatura? Bruce Hood dizia: “Nascemos com o cérebro desenhado para encontrar sentido no mundo. Esse desenho às vezes nos leva a acreditar em coisas que vão além de qualquer explicação natural.”
Uma obra clássica como Deus de Caim não se explica, mas se justifica pela excelência do autor. Em esmerada edição agora pela LetraSelvagem, Ricardo Guilherme Dicke é resgatado no auge do que a sua historicidade criativa congrega e vem-nos assim reeditado em sua maior obra-prima. Os porões da alma clarificados. Os subterrâneos da vida distinguidos com sua pena distinta, singular. Os sótãos de cabeças e sentenças nominados. É incrível a “lógica” funcional do escritor extremamente crítico, irônico, criativo e, claro, agora mais do que nunca, cult.
Literatura pura, de primeiríssima qualidade. Não há babel, bezerro de ouro ou cepo de Abrahão que esconda o sortilégio e o trágico fruto de Caim que vem enlutando a história da humanidade desde os primórdios. Escrever é pagar um preço? Escrever não é apenas cutucar onça com vara curta, é soltar todos os bichos. E Dicke faz isso muitíssimo bem, assustadoramente muito bem, liberta os seus (os nossos?), abre as comportas de seus próprios diques criativos interiores. Ah os escuros recônditos das almas embrutecidas com a fúria de ter que comparar, sobreviver, parecer que é o que não é.
E o Deus de Caim – que paira sobre todos nós – acode para uma leitura a altura, exige atenção pontuada, ao mesmo tempo olhar de remanso, para deguste e assim se poder sacar o esconderijo das ideias que ventila, ramifica, aponta e crava com o crivo de uma criação única. E quem sai ganhando é o leitor que se envolve dele, surpreso com a qualidade que custa assentar. Não é fácil. A vergonha, o incesto, a mentira, a dissimulação, o que pode parecer bizarro ou sexista. Quer mais humano do que tudo isso?
O estado decrépito do ser enclausurado em suas mesmices, masmorras e memórias cênicas, filosofando sobre conjecturas ou o que poderia ser e não foi, muito além das fronteiras das almas e seus estágios vivenciais estarrecedores. Ou seja, a humanagente no seu viveiro de contrastes. Vejamos a pintura literária:
“(Considerações, entretexto) O vermelho é a paixão e a força telúrica do Sol Matrogrossense, o azul são as paixões da noite e o negro a melancolia do sangue remotamente flamengo. O amarelo é a ânsia, o ouro, o desejo e as outras coisas nunca alcançadas. As formas que lembram labirintos e meandros ora são vegetações, ora caminhos, ora nervos em expansão, ora o ideal de um laboratório em que busco as equações de um mistério, de um nepentes ou de um descobrimento perfeito. Quero que quem os veja sinta uma contração pulsar e repulsar. E ao mesmo tempo, indague o que é o mundo – com múltiplos e infinitos signos estranhos – o que é o mundo, estas linhas, estas cores, esta massa, este movimento, este ser. Rilke disse que uma obra de arte é de uma solidão infinita. Quero pois que quanto mais solitário melhor. Cada qual encontre um pouco de seu eco que se perd e. É a natureza que recrio – e se fosse Deus – assim a recriaria – e é a relembrança dos países que não fui, no tempo das harmonias. É minha alma e a sua capacidade de entender alguma coisa que em mim não se perde para sempre, como as outras coisas que se perdem para jamais. É a poesia que não fui. As cores que eu amo e minha intenção de buscar entender o efêmero (…)”. Pg 251.
A extravagante literatura caudalosa (e por isso mesmo ocasionada de parágrafos em narrativas angustiantes) de Dicke; uma pintura extravagante de situações sociais em ermos e fugas, estados espúrios, de decomposições da efêmera vida social e sócio-familiar, quase árido, ou, como diz João Ximenes Braga (In, Dicke: o vôo da eternidade): “Dicke realiza uma estranha alquimia de política com metafísica na temática, e de realismo social como barroco no estilo (…) E ainda há intervenções de personagens místicos que o aproximam do realismo mágico (…)”. Pois Deus de Caim é uma soma disso tudo, e surpreende nos entremeios, na narrativa, nos belíssimos enfoques que o autor destaca e desenvolve com a paleta da escrita que mistura tintas de situações e aparências entre cores de convergências sociais apontando embustes; tirando etiquetas do armário, uma espécie as sim de romance-ensaio se reportando a conflitos, traumas e sequelas da natureza humana em decadência.
Um dos maiores romances escritos no Brasil, e mesmo tendo sido inicialmente lançado e premiado há cerca de quarenta anos atrás (Prêmio Walmap 1967), permanece muito atual, como toda obra de arte que se supera superando o tempo real, indo além de sua época como consagração de vanguarda e reconhecimento de talento e estilo próprio. Ricardo Guilherme Dicke, assim, escreveu um épico num estilo raro, único, onde concilia fluência e domínio absoluto da linguagem e da criação em seu esplendor, a verdadeira arte romancesca. Bravo!