Aparecida Luzia de Mello*
publicado em 31/03/2010 como www.partes.com.br/terceiraidade/tantoriso.asp
Grossas lágrimas desciam daquele rosto magro e envelhecido…
Com a mão direita, rapidamente, ele puxava a gola da camiseta e secava as lágrimas.
O baile mal começara e os músicos ainda afinavam os equipamentos tocando uma música de Benito de Paula – Retalhos de Cetim – enquanto isto os convidados vinham chegando, sempre em pequenos grupos. O salão estava decorado com grandes máscaras, muita serpentina e um pouco de confete.
Quando a cuíca gemeu, o baile começou! O surdo já se fazia ouvir e Allah-La ÔÔÔÔÔ, foi a marchinha que saudou o público em geral. Dai em diante era uma atrás da outra – A jardineira, ali-babá, chiquita bacana, gelinho, as pastorinhas, máscara negra, mamãe eu quero, bandeira branca, sassaricando, ta-hí, pó de mico, cachaça, entre outras..
Curiosamente a cada início de uma nova marchinha, ele chorava com mais intensidade e repetia o ato de secar as lágrimas na gola da camiseta. De longe, quem o observasse via que, ora um, ora outro – pessoas que ali trabalhavam, aproximavam-se dele e lhes diziam alguma coisa, mas ele apenas acenava com a cabeça negativamente.
Durante a festa, cordões circulavam no salão, alguns dançavam em rodas, outros em duplas, outros ainda dançavam sozinhos e alguns poucos apenas apreciavam. Fantasiados, mascarados, com colares, perucas, chapéus ou cartolas, os foliões se divertiam. Sorriso para todo lado e muita cantoria acompanhando as melodias. Só ele era exceção!
Houve uma parada para o lanche, devido a festa o cardápio era especial – pastel, refrigerante e sorvete para todos – um abuso tolerado naquele dia.
Os músicos descansaram, comeram, beberam, tomaram fôlego e minutos depois com a cuíca gemendo novamente, voltaram a cantar e a turma a dançar..
Quando finalmente a banda começou a tocar “está chegando a hora”, acenos de despedida eram vistos em todo o salão e aquele que fosse observador, poderia ver no rosto de muitos a saudade antecipada que esta festa deixaria.
A dança é uma atividade física de corpo e alma. Somos um corpo inteligente, um corpo que sonha, reage, se emociona, sofre e que têm afetos. Cada um tem uma história corporal. Nosso corpo cresce com a experiência da atividade que praticamos com ele. (SÉ, 2008).
Acenos, abraços, beijos, agradecimentos e a promessa de voltar, encerraram o evento.
Isto aconteceu numa ILPI1 com muitos cadeirantes, na tarde de domingo de carnaval deste ano.
Dentre os projetos educacionais realizados com esse segmento, destacam-se aqueles que incluem atividades musicais, pelo seu significado relacionado à satisfação e ao prazer. (LUZ e SILVEIRA, 2005, p. 253).
Depois dos equipamentos de som desmontados, espaço varrido e móveis no lugar, a equipe de voluntários foi despedir-se de todos idosos, um a um.
Quando chegou a vez da despedida do idoso choroso, que vitimado por vários AVCs2, mexia somente o braço direito e a cabeça, e vivia amarrado na cadeira de rodas por cintas especiais para ser deslocado de um ambiente para outro e poder participar de algumas atividades, alguém curioso, abraçando-o carinhosamente, lançou a pergunta:
-: por que tantas lágrimas derramadas num baile de carnaval? O Senhor não gostou? Estava com dor? Porque não aceitou a proposta dos cuidadores para ir para seus aposentos descansar?
Afinal, todos ali presentes sabiam que ninguém era obrigado a participar das festas promovidas naquele abrigo de idosos, e carnaval, principalmente, costuma ser assim – a pessoa ama, ou odeia – não há meio termo.
Com toda dificuldade que lhe é peculiar para falar, ele repondeu:
-: é que a cada marchinha, meus dedos do pé esquerdo começavam a sambar!
Obs.: Até aquele domingo ele mexia só o braço direito e a cabeça, a partir daquele dia passou a mexer os dedos do pé esquerdo também!
Nossos agradecimentos a banda MVSOM que, carinhosamente, há 6 anos nos acompanha neste evento solidário voltado para idosos nesta ILPI.
Bibliografia:
LUZ, C. M., SILVEIRA, N.D.R. Música na terceira idade: uma concepção metodológica de sensibilização e iniciação à linguagem musical. Revista Kairós, São Paulo, 8(1), jun. 2005, p 253.
Sé, E. V. G. Dança ajuda a exercitar mente, concentração e memória. <Disponível em: http://www2.uol.com.br/vyaestelar/mentenaterceiraidade_danca.htm>. Acesso em: 22/06/2008.
* Advogada, Mestre em Políticas Sociais, Pós-Graduada em Gestão e Organização do 3º Setor, Psicogerontologia e Memórias. Palestrante, professora, dirige o PEEM Ponto de Encontro e Estudo da Maturidade, voluntária da 3ª Idade e Recanto do Idoso Nosso Lar.
Email: cidamell@uol.com.br
1 Instituição de Longa Permanência para Idoso
2 Acidente Vascular Cerebral