Rodrigo da Costa Araújoi
publicado em 31/03/2010 como www.partes.com.br/cultura/livros/alberto.asp
‘Quero morrer
com uma overdose de beleza’
[Vigílias. In: O Medo. Al Berto. 2000. p.519]
‘fui todas aquelas máscaras, e a que trago hoje é um imenso e paciente
trabalho de composição, nela estão fragmentos de todas as outras’.
‘A escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras’
[Doze moradas de silêncio. Salsugem. In: O Medo. Al Berto 2000. p.252]
A impressão digital estampada, em close, na capa do livro O Medo, de Al Berto, nome literário de Alberto Raposo Pidwell Tavares (1948-1997)[1] e as epígrafes postas acima, emblematizam a escritura albertiana picada pela paixão do múltiplo, do fragmento e pela perda do toque da identidade. O corpo em cena, ora revelando-se, velando-se, lido como receptáculo nessa apresentação, sensível e carregado de disfarces, entrega-se ao olhar hipnótico e sedutor do leitor, que o induz a visualizar e descrever o delírio.
Esse corpo de mistérios, ele mesmo jogo entre l’obvie et l’obtus[2], entre o visível e o invisível que, a luz da interpretação ou pelo olhar atento do leitor/espectador, torna-se, agora, a enunciação ou território, numa estrutura opaca, sombria e enigmática. Quem lê os poemas de Al Berto percebe, além desses recursos estilísticos das capas de seus livros, – corpo-imagem, corpo-texto -, as relações de sua produção com as outras artes, outras linguagens, entende-se o sentimento narcísico e desesperador por um desejo de se converter em poema. Sua gestualidade, à feição de um texto a ser decifrado, de um corpo que trama as suas vias e desvios, compõem-se igualmente de nomes falsos, troca de identidades, operação de truques e espelhamentos de mundos, reduplicando metaforicamente a produção artística. Suas poesias instauram o complô: o escritor, ao agir como criminoso, no roubo das citações de textos alheios, forja, ainda identidades, e se esconde atrás de máscaras; o leitor-crítico, por sua vez, ao destrinchar essas pistas, dirige seu olhar para tudo que inspira suspeita e conspiração.
Esgarçando os limites entre Alberto e Al Berto sua poesia é fruto de um narcisismo – como também fez Oscar Wilde, em O Retrato de Dorian Gray – de uma elaboração dramática perceptível em seus versos. Al Berto, nesse sentido, e ao gosto do Decadentismo, assume-se como imagem para ser contemplada, como esteta e função pública, como pose esgarçada ao limite. Suas fotografias, tomadas como parâmetro, paratextos e recompiladas nas capas de sua obra representam visualmente o texto como recurso e encenação de sua produção artística, escondem ou revelam o corpo integrando-o como temática.
Capa do livro O Medo, de Al Berto
Na capa[3] d’ O Medo, a teatralidade, quase barroca da pose, expressa um sentimento ambíguo entre o temor e o êxtase, entre o obscuro e o iluminando, entre profano e o sagrado, jogo ele mesmo planejado e irônico. A tensa gestualidade das mãos, sobretudo a direita, faz desse paratexto[4] que se repete de outros modos em muitos livros do autor, o leitmotiv homoerótico e provocador. Ao mesmo tempo em que esconde, ele também se deixa ver e entrevendo esse discurso, confessa, – “Aqui está a figura de papel onde o corpo escondeu” (Al Berto, 2007, p.39) – perfazendo caminhos oscilantes entre o dado e o subentendido. O rosto, teatralizado na cena e em algumas fotos de outros livros, põe-se como “cara a tapa”, e, também, mira-se fixamente ao leitor, constrói-se, no confronto com seus textos, aos fragmentos, entre o provável e o provocador, entre o vivido e o representado, entre o disfarce e o melancólico – “Colas à pele o remoto perfume das glicínias, e aos lábios o amargor dos corpos condenados à solidão” ( Al Berto, 2007, p.78).
Al Berto é um poeta que se esconde atrás da imagem pública criada pelo desvio de seu próprio nome e expandida por meio de uma poesia totalmente transgressora. Como em Roland Barthes par Roland Barthes [1975], o poeta-esteta ao pretender registrar a experiência do autor, não faz mais que capturar fragmentos e arranjá-los, criando um simulacro de inteireza que se oferece ao leitor. Por isso mesmo, não nos familiarizamos com Al Berto através de sua autobiografia, mas sim através de sua crítica que vemos aos poucos compor esse rosto, que não é único e nem coerente, que não é obra de um autor que o entrega acabado, mas é obra do leitor que vai aos poucos descortinando seus traços, inteirando-se de suas cores, pressupondo sua escritura, seu ânimo.
“caminhar no deserto, reencontrar a magia das palavras e usá-las com maior ou menor inocência, como se as usássemos pela primeira vez, como se acabássemos de as desenterrar das areias. as palavras, esses oásis envelhecidos que me revestem o corpo como um trapo que sempre me tenha pertencido… […] a partir desse momento acumulei infindáveis cadernos escritos; era esta a única maneira de remediar o medo e de não possuir nada, e de ter possuído tudo.” [Al Berto, 2000, p.362]
O corpo, nesse fragmento, é um corpo que escreve, revestido de sentido pelo próprio ato de escrever na metalinguagem que lhe compõe um traço, um gesto significativo de memória, caderno-corpo, cadernos escritos, escrita do próprio corpo. O corpo escrito, processo de autoficção que se repete na descoberta e experimentações. Por outro lado, esse corpo, também, apresenta-se como metáfora da escrita, do livro a ser lido, decifrado e desfolhado ou folheado pelo leitor. À feição de um livro que se abre, as letras apagadas desse corpo vão sendo acentuadas pelas mãos e pelo tato decifrador; histórias de desejo que, infinitamente, serão retomadas. Falando-se pelo corpo, carregando o texto de simbolização, Al Berto constrói sua poesia e seu próprio jogo de nomes (autor e pseudônimo) fixando-se nos significantes. Sistema fiduciário de signos, sua poética trava um processo de simbiose que resulta e se inscreve como representação da representação.
Procurando-se nessa vertigem e estilhaços, nesse jogo inacabado e especular, o eu lírico confessa, como que ecoasse em toda a obra a seguinte voz: “o espelho acende o meu reflexo. não me reconheço nele” ou ainda “conheço-te, sou a tua imagem perdida uma noite dentro do espelho” (Al Berto, 2000, pp. 131 e 363). Esse mesmo processo de fragmentação e desvio em “eus”, de extensa carga dramática e narcísica, carregado de marcas decadentistas, foi a trajetória vital e poética de Mário de Sá Carneiro [1980-1916], um dos ilustres estetas, antepassados da genealogia literária de Al Berto. Não se pode falar, em seu caso, de um referente direto a nível temático ou formal, porém de uma trama psicológica e de questionamentos de ser. Sá Carneiro representa a origem mesmo da modernidade literária portuguesa através do fascinante grupo em que coincide com Pessoa e pintores como Almeida Negreiros ou Souza Cardoso, todos eles em torno da revista Orpheu. A poética do autor de Confissões de Lúcio supõe o deslumbramento de uma linguagem nova a partir da retórica tradicional, o que, de certa forma, anunciou, junto com Fernando Pessoa uma nova era, ecoando nas entrelinhas da poética de Al Berto. Ambos – perseguidores da beleza – anunciam, se espelham e ecoam, como palimpsesto, através da fragmentação existencial e cultural, na produção poética de Al Berto.
Capa do Livro Dispersos [2007], de Al Berto
Associando poesia e vida, como os dois autores paradigmáticos da poesia portuguesa, Al Berto nutre a sua poética na busca incessante pela beleza, na entrega como única forma de viver, de escrever-viver. Nessa derradeira busca de si mesmo, o Grupo da Revista Orpheu proporcionou uma visão de mundo feita de múltiplos artistas que nutriam, por sua vez, as experiências irracionais e deslocadas do Grupo Surrealista de Lisboa (1947), formando em torno das figuras de Mário Casariny e Alexandre O’Neill. Um surrealismo tardio, característico de Portugal, porém com singularidades de alto nível que, de alguma forma, inspiraram os primeiros poemas de Al Berto. Essa experiência surrealista conflui nos anos cinquenta e reforça o viés onírico, visionário, místico e transgressor, sem a qual é difícil fazer uma leitura compreensiva e crítica da poesia portuguesa pós-moderna. Al Berto pertence a esse contexto em versão anos sessenta, acompanhado de poetas já ilustres como Nuno Judice, J.M. Fernandes Jorge, Luis Miguel Nava, Pinto do Amaral ou Joaquem Manuel de Magalhães.
De sua escritura:
“definha-se texto a texto, e nunca se consegue escrever o livro desejado. morre-se com uma overdose de palavras, e nunca se escreve a não ser que se esteja viciado, morre-se, quando já não é necessário escrever seja o que for, mas o vício de escrever é ainda tão forte que o facto de já não escrever nos mantém vivos. morre-se de vez em quando, sem que se conheça exactamente a razão, morre-se sempre sozinho. nunca fui um homem alegre. morro todos os dias, como poderia estar alegre? sento-me e medito na busca de novas palavras. tornou-se quase inútil escrevê-las; chega-me saber que, por vezes, as encontro, e nesses momentos readquiro a certeza d’alguma imortalidade” [Al Berto, 2000, p.365].
Nesse fragmento, apesar de sua aguda toxidez, ressoa também a dupla vertente “escrever-morrer”. Definha-se na escrita e, se não se escreve, preserva-se vivo para se tornar a escrever. Se é certo que a escrita carrega a certeza da morte, – como afirma Blanchot – algumas vezes irrompe também, certeira, a imortalidade, resultante do encontro com “novas palavras” e sentidos. Palavras que, justamente nesse atrito ou limites, renascem com força e beleza poética.
O livro, receptáculo da escrita, objeto do desejo do poeta, parece trazer-lhe, contudo, também algo da experiência da morte: se em sua prece ambígua o poeta não deixa de pedir que a escrita o livre do trabalho de escrever, é porque ele sabe que o livro pressupõe um corte no fluxo das palavras; ele é, numa certa medida, silêncio. Assim, a poesia al bertiana habita o paradoxo: frente ao desejo de “ser livro”, como se tornar livro, se ele se livra de escrever?
Demiúrgica por natureza, a escritura de Al Berto se apresenta menos comprometida com as problemáticas de caráter teórico e se apresenta mais plural na experiência do real e dos sentimentos que gera. Nela relativiza-se o conceito de poesia (confusão entre poesia e prosa, diário íntimo e poesia) ao serem denunciadas as artimanhas que se instauram em torno dessas questões. A marca de identidade em O Medo (2000) se volatiza em simulacros e reflexos, inscreve-se e mistura-se nessa confusão ou confluência, dialogando com uma parcela significativa da cultura de vidro de que nos fala Walter Benjamin, onde desaparecem os traços e se esvazia a aura do objeto e do sujeito. Do cenário de Lisboa ou de outras cidades por onde o poeta percorreu, – originário do espaço transgressor -, cede lugar ao espetáculo de sombras, ruínas de um tempo em que se acreditava na assinatura e na propriedade autoral. Perdendo-se a aura do objeto, são assinadas obras-primas e esconde-se por trás das capas (fotografias) e textos.
“A vida, afinal, talvez seja uma encenação do desespero” (Al Berto, 2001, p.108)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Al Berto. O Medo. Lisboa. Assírio & Alvim. 2000.
______. O Anjo Mudo. Lisboa. Assírio & Alvim. 2001.
______. Dispersos. Lisboa. Assírio & Alvim. 2007.
BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris. Seuil.1973.
______. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris. Seuil. 1975.
______. Leçon. Paris. Seuil. 1978.
______. L’obvie et L’obtus. Essais critiques III. Paris. Seuil. 1982.
CEIA, Carlos. O que é afinal o Pós-Modernismo? Lisboa. Edições século XXI.1998.
DIAS, Joaquim Cardoso. Dez cartas para Al Berto. Dez cartas de Al Berto. Lisboa. Quase Edições. 2007.
GENETTE, Gerard. Palimpsestes: La Littérature au Second Degré, Paris. Seuil. 1982.
______. Seuils. Paris. Seuil. 1987
GUIMARÃES, Gustavo Cerqueira. Espaço, Corpo e Escrita em Al Berto: À Procura do Vento num Jardim d’Agosto. Belo Horizonte. Faculdade de Letras da UFMG. 2005.
MATARASSO, Pierre, e Petitfils, Henri. A vida de Rimbaud. Trad. Antonio Carlos Viana. L&PM Editores. 1988.
PEREIRA, Edgard. Portugal. Poetas do fim do milênio. Rio de Janeiro. Sette Letras. 1999.
PRIEDE, Jaime. Al Berto. Revista Quimera. Acesso em 21/11/2009.
RIMBAUD, Arthur. Uma Temporada no Inferno & Iluminações. Trad. Lêdo Ivo. Rio de Janeiro, Ed.Francisco Alves, 1981.
SILVA, Tatiana Pequeno da. Al Berto: um corpo de incêndio no jardim da melancolia. Rio de Janeiro. Faculdade de Letras da UFRJ. 2006.
Notas:
[1] Al Berto nasceu a 11 de janeiro de 1948 em Coimbra, Portugal. Seu nome de batismo era Alberto Raposo Pidwell Tavares. Estudou em Lisboa, primeiramente, e mais tarde viajou a Bruxelas para estudar pintura. Voltou a Portugal na década de 70, onde passou a dedicar-se exclusivamente à escrita. Publicou vários livros de poesia, como Meu Fruto de Morder, Todas as Horas (1980), Salsugem (1984) e Horto de Incêndio (1997), mas foi a coletânea O Medo, com poemas escritos entre 1974 e 1986, editada pela primeira vez em 1987, que trouxe o reconhecimento da importância de Al Berto no panorama da poesia portuguesa contemporânea, tornando-se o livro mais conhecido do poeta português, ao qual seriam adicionados em posteriores edições novos escritos do autor, mesmo após a sua morte. Al Berto tornou-se um dos poetas mais conhecidos do Portugal pós-Salazar, por fazer de “Al Berto” uma criação poética em que a vida e a obra se entrelaçavam. Atualmente, sua obra é editada pela prestigiosa Assírio & Alvim. Al Berto morreu em 1997.
[2] Aqui faço uma alusão do livro de Barthes L’obvie et L’obtus. Essais Critiques III.
[3] Para Tatiana Pequeno da Silva em Al Berto: um corpo de incêndio no jardim da melancolia [2006, p.70] “a capa d´O Medo, publicado em 1987 pela Contexto traz exatamente uma menção “Na capa: Retrato de Al Berto encenado por Paulo Nozolino em homenagem à Caravaggio”. É conhecida a admiração que o poeta nutria pela pintura caravaggiana, uma vez que uma de suas maiores qualidades residia exatamente na pertinência da pintura enquanto drama, barroco, evidentemente, o que nos remete a uma suposição de que a encenação de Nozolino remete consequentemente Al Berto e seu Medo a uma via dos maiores símbolos da ascese que é o Cristo na sua Paixão”.
[4] Dentro da categoria do paratexto, Gerard Genette (1987, p. 374) distingue o peritexto e o epitexto; o primeiro é constituído pelos elementos textuais que, situando-se à margem do texto, compõem o livro impresso: título, nome do autor, dedicatórias, epígrafes, prefácios capa etc. Esses elementos são percebidos no ato da leitura e direcionam as reações dos leitores, interferindo na configuração de seu horizonte de expectativas. Já o epitexto é constituído por elementos externos ao livro que funcionam como orientações de recepção, tais como as cartas e diário dos autores estudados aqui.
Rodrigo da Costa Araújo é professor de Literatura Brasileira e infanto-juvenil na FAFIMA – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé, Mestre em Ciência da Arte pela UFF e, também, Doutorando em Literatura Comparada pela UFF. E-mail: rodricoara@uol.com.br